Pero nosostros volámos...
José Luis Posada, pintor cubano
Éramos jovens e pensávamos. Lembro-me: a cidade ainda não existia, Ílhavo era apenas Ílhavo, heróico poema das canções do Professor Guilhermino, vila maruja dada a devaneios de aquém e de além mar, traduzidos em histórias que o tempo transformou em lendas. Lembro-me dos doidos e dos outros, dos temores e das dúvidas, dos silêncios, dos beijos tímidos. Lembro-me também que por vezes era de noite e levavam-nos os amigos ou a família, para a guerra ou para a prisão. Havia medo, apesar da inocência que exibíamos nesses tempos. Mas havia também outra gente e outra ainda, muita gente. E foi assim que se chegou ao tempo da revolução, o tempo da revelação.
Há que dizer, antes de prosseguir, que, por circunstâncias da época que me foi dado viver, sou duma raça que teve o privilégio de voar. Queríamos o mundo e tivemos o mundo. Queríamos o sonho e fizemos o sonho. À semelhança de Che Guevara, fomos realistas: exigimos o impossível. A liberdade e o resto, tudo. Umas vezes fomos felizes, outras vezes sofremos as dores inevitáveis do crescimento, encantámos e desencantámos muitos feitiços, amámos e sofremos. Mas voámos, lembro-me bem. E não foi imaginação nem foi por engano, sabemo-lo agora: nós queríamos mesmo voar.
As evocações de tempos idos têm destas coisas e obrigam-nos a falar assim destas verdades, para que o discurso não tenda a parecer-se com os panegíricos do Cinco de Outubro que os velhos republicanos, coitados, produziam com toda a dedicação - e só não falo nos sobreviventes do Primeiro de Dezembro porque nunca ouvi nenhum. Espero conseguir fugir ao tom, mas em todo o caso tentarei passar rapidamente ao tema. E esse é a poesia de Vieira da Silva, o António que me cabe prefaciar, mesmo sabendo que, como escreveu (num prefácio) o Sérgio Godinho, muitos prefácios "esparramaram antes do tempo o mistério-mesmo que eu me propunha descobrir".
Na circunstância, o mistério é não haver mistério algum. Isto é: este livro só peca por tardio, tanto que se arrisca a já ser conhecido de cór por muitos dos que o vão ler. É que, não nos esqueçamos, o Vieira da Silva é um poeta que se fez divulgar pela música - e eu sou desse tempo em que as pessoas voavam, estão a ver? Foi pelas canções que nos aproximámos da poesia e dos livros dos poetas: Manuel Alegre por Adriano; Sidónio Muralha e Gedeão por Manuel Freire; Eugénio de Andrade, O’Neill e Mário-Henrique por Fausto; Guerra Junqueiro e Papiniano Carlos por Luís Cília; Zeca, Vinícius e Ferré por eles mesmos. E o Sérgio, e o Zé Mário. E os outros, tantos, que rapidamente fomos descobrindo.
Desenganem-se, no entanto, os que estão à espera de um livro de cantigas. Claro que elas, as cantigas (ou os seus poemas), também aqui se encontram, parte integrante e superiormente digna do percurso do seu autor. Mas essencialmente este é um livro - um belo livro - de poesia. E era disso, da Poesia ou do Autor, que, supostamente, deveria falar agora. Na verdade, nenhuma destas é tarefa fácil. Discorrer sobre a poesia quando a poesia é, como neste caso, tão clara, tão profundamente simples, iluminada? Sobre o homem que a escreveu, companheiro antigo de lutas e de projectos? Ou deverei antes trautear umas modas estilísticas ao jeito dos jornalistas culturais da moda? De todas as hipóteses, confesso, não escolho nenhuma. Os versos do Vieira da Silva e as vidas do Toni são apenas diferentes perspectivas da história de um menino que foi jovem e não desistiu de ser gavião, aprendeu que cantar claro é que é difícil, quis mais para o seu povo triste e rebelou-se contra o desespero fatalista a que o queriam condenar. Os barcos são estes. Partamos.
António Manuel Vieira da Silva é o nome de baptismo do cidadão agora presente a julgamento em forma de brochura. Nasceu em Ílhavo, mas eu também, e isso não explica tudo. E sobretudo não explica a opção de vida que o moço fez nos tempos de estudante e cantigueiro regular: o antifascismo não era propriamente uma coisa com fundas tradiçães no burgo de origem, ainda que entre os nossos conterrâneos mais ilustres figurem alguns homens dignos que desafiaram o medo e enfrentaram a ditadura – Mário Sacramento, que morreu jovem, é o mais conhecido, mas houve (e há) alguns outros, quase todos ignorados. Ou talvez deliberadamente esquecidos, como o coronel Sacramento Marques, nome da primeira linha da Revolução de Abril, também ele desaparecido antes do tempo, que a sua terra teima em fingir que não existiu. Deve ser da vizinhança: José Afonso nasceu em Aveiro mas, ali, parece que também poucos se deram conta disso...
Desde muito antes dos anos da brasa que encontramos o Vieira da Silva como jogral da nova consciência colectiva. Nos históricos convívios organizados pela revista “Mundo da Canção” (de que mais tarde foi director), em pequenos espectáculos de colectividade ou nas primeiras luzes de esperança que surgiram na televisão e na rádio – ele esteve presente. Nas sessões de baladas mais subversivas ou menos legais – ele aparecia. Quando as universidades começaram a agitar-se, em Coimbra, no Porto ou em Lisboa, e era preciso quem desse voz às causas – podiam contar com ele. E, em Abril, ele lá está, com os outros, no amplo movimento popular que a queda do regime gerou. Foi sobretudo nessa época que os nossos caminhos mais se cruzaram. Nos projectos, nas lutas, nas escritas. Foi nessa época que voámos.
Arrefecida a euforia revolucionária e reconduzido o sonho ao redil que a vida real engendra, Vieira da Silva, como aconteceu com muitos outros, passou para segundo plano nos projectos editoriais das discográficas, agora mais preocupadas em gerir catálogos de soft music do que em cantigas para agitar a malta. Passou e deixou-se passar, como fizeram Manuel Freire ou Francisco Fanhais, para quem a música e as cantigas eram um modo de estar na vida e não uma forma de a disputar. Entre a competição e o prazer, escolheu o essencial. O cantor cedeu lugar ao médico, mas o poeta manteve-se. E, de quando em quando, ia dando notícias. Em poeminhas dispersos, publicados aqui e ali, mais ou menos divulgados, até que uns malucos se lembraram de chapar com aquilo tudo na internet. O sítio chama-se O Silêncio dos Poetas, discreta homenagem a Alberto Pimenta e a outros versejadores dignos. Como Vieira da Silva.
Poesia necessária como o pão de cada dia, assim a proclamou Gabriel Celaya. Poesia para comer, disse Natália Correia. Poesia como arma, nua e crua. Poesia de rigor, sem truques nem batota. É assim esta lírica que honrosamente hoje vos apresento. O jeito assumidamente popular de alguns textos, o tom culto e prudente de outros, conjugados com a sabedoria de uma mão treinada e de um espírito lúcido, conferem a este poemário uma identidade não facilmente catalogável à luz das tendências dominantes. Não vale a pena buscar-lhe as referências, que esta é uma poesia que se estende pela rota das lutas, dos afectos, das ideias, tornando-se universal sem nunca perder o sabor a mar – nasceste em Ílhavo, meu caro António, terás de carregar para sempre o rasto do moliço e do sal. Há sinas piores.
Habituado a provocar reacções em palco, o poeta investe nos seus textos, com a força das ideias simples. E as palavras, sempre: “hoje / não ouvi o que disseste / estive / preocupado / em ouvir o que não disseste.” Ou então: “nunca vi tanta mentira / disfarçada de verdade / todos dizem que sou livre / viva viva a liberdade.” Ou ainda: “dói-me / este protesto só palavras / lançado para a rua deste dia / este berro / que vou dando / enlouquecido / meu grito / mais alívio que revolta / este meu gesto / mais esboço do que vida”. Porque “não podemos esperar / as madrugadas / prometidas / em discursos de euforia / que esta noite já vai longa / e as palavras / não acendem a fogueira de outro dia”.
Propositadamente, Vieira da Silva faz conjugar na mesma fiada um grande conhecimento do mundo com uma aparente ingenuidade, muito próxima daquilo a que José Afonso chamava a pureza original: o entusiasmo juvenil de A Sudoeste contrasta com a poesia vivida e sofrida de Canção da Mágoa, mas o rumo é igual. Os sonhos amadureceram, por vezes desencantaram-se, mas continuam lá. Tão reais como no tempo em que voávamos. O poeta não desiste, insiste. Persiste, e faz muito bem.
Este livro mistura textos escritos em épocas diferentes o que acentua, em vez de sacrificar, a unidade do conjunto: a poesia, quando é verdadeira, sobrevive a todas as épocas. Uma referência ainda para esta edição: ao que sei, ela deve-se também, em boa parte, à persistência do João Balseiro e do Geraldo Alves. Os amigos, uma vez mais, e sempre. Vidas e cantigas e poemas, como deve ser. Bem hajam por serem teimosos e não desistirem, mesmo quando os ventos não estão de feição – e lá estou eu outra vez a marejar a linguagem. O Vieira da Silva merecia este livro há muitos anos. Fazê-lo, agora, é apenas uma questão de justiça elementar. E já não é pouco. Agora, só podemos ficar à espera de mais.
Éramos jovens, dizia, e pensávamos. Ílhavo não era cidade, era outro lugar: nem melhor nem pior, apenas outro. No Verão apanhávamos camarinhas e íamos, de bicicleta ou de dedo esticado, para a Costa Nova. Depois apanhávamos a barca para A Bruxa, onde havia uma jeropiga que parecia ser a melhor coisa do mundo e havia os mundos que nós inventávamos. No Inverno ficávamos pelos cafés do costume, com uma ou outra escapadela pelo meio. Se não fosse o clima aceso da época dir-se-ia que não se passava nada – e no entanto, passava-se tudo: apaixonávamo-nos, descobríamos os mundos do mundo, ouvíamos a música dos silêncios, cavalgávamos o Sete Estrelo.
Agora, Ílhavo mudou, como o País. Novas ruas, vistas renovadas, prédios que foram abaixo e levaram com eles a memória das pedras. Nós, todos, também mudámos. Para melhor ou para pior, para mais longe ou para mais perto, partimos. Mesmo os que ficámos. E, sobretudo, vivemos. E de termos vivido o que vivemos nunca me arrependi, e tenho a certeza que o Vieira da Silva também não. Porque, se calhar, o que distingue os poetas das pessoas normais é mesmo só isso: ser capaz de descobrir, sempre, um mundo novo à sua volta, onde quer que seja; elevar as palavras à condição de diamantes, sem se deixar ofuscar pelo seu brilho; saber que os poemas só valem a pena quando têm gente lá dentro, com ossos, nervos, veias, emoções. Porque o sonho, esse, vale sempre a pena. Nós sabemos, porque voámos.
Prefácio a Marginal - Poemas breves e cantigas, de Vieira da Silva
Edição MC – Mundo da Canção, 2002