O Parque e a gente

O Parque e a gente

As pessoas são sempre aquilo que de mais importante nos fica dos lugares por onde passamos. Quando ancorei em Lisboa, há mais de vinte e cinco anos, o Parque Mayer já não ocupava o lugar central da boémia artística de Lisboa que fora seu, por direito conquistado, durante várias décadas. Mas continuava a ser um espaço de encontro de gentes diversas, palco de histórias umas mais amorais do que outras, lugar de sonhos de todas as cores. E era, já então, um sítio carregado de muitas memórias: de Palmira Bastos, Maria Matos, Alves da Cunha, Estevão Amarante, Vasco Santana, Maria Lalande, Villaret, António Silva, Costinha, Humberto Madeira – gente com que já não me cruzei, mas cujos nomes ecoavam ainda por ali, num misto de saudade e veneração.

O meu contacto com o Parque Mayer sedimentou-se sobretudo na década de 80 do século passado, durante os anos em que fui essencialmente repórter de espectáculos no Se7e, cuja redacção era mesmo quase ali em frente, do outro lado da Avenida da Liberdade. Naturalmente e sem esforço, o Parque e os lugares em volta, com destaque para a Ribadouro e o Choupal, tornaram-se poisos habituais da rapaziada do jornal: para além de tudo, entre nós e a gente do Parque partilhava-se a mesma matéria-prima – o espectáculo – e o mesmo universo de encantos e desencantos.

Hoje, o Parque reduz-se a pouco mais do que o Teatro Maria Vitória – ele próprio renascido das cinzas como um símbolo de perseverança – mas nesse tempo não era assim. E, entre os teatros todos que ainda funcionavam e as mesas do «Manecas», do «Chico Carreira», d’«A Gina», do «Bariedades» – e principalmente d’«O Manel» (outro resistente) e da «Mimi» (na verdade o restaurante chamava-se «Retiro da Amadora», mas todos o conhecíamos pelo nome da mais nova das três irmãs que o geriam) – fui sobretudo testemunha do crescimento daquela que se tornou a «última geração» do velho Parque, de que fazem parte nomes hoje consagrados como a Marina Mota e o Carlos Cunha, o Fernando Mendes e a Rosa do Canto, a Maria João Abreu e o José Raposo.

Foi, também, no Parque Mayer que falei pela primeira vez com Jorge Amado, num encontro apadrinhado pelo meu mestre Fernando Assis Pacheco. E foi por ali que andei com o Afonso Praça, o António Macedo, o Fernando Relvas, a Maria João Duarte, o Manuel Vieira, o Zé Zambujal, eu sei lá quem mais!, em muitas tardes e noites de animação frequentemente abrilhantadas por pândegos ocasionais de que nunca chegámos a saber os nomes. Porque então o Parque ainda era um mundo. Mesmo sem o brilho de outros tempos, apesar dos sinais de degradação que já começavam a fazer-se sentir, o Parque ainda era o Parque.

Pelas suas ruas e vielas, entre as barraquinhas de farturas e de tiro-ao-alvo, o «cantinho dos Artistas» e vários tascos avulso, passeavam-se ainda alguns mitos do Teatro cujos nomes me eram familiares desde a infância e que ali pude conhecer mais de perto. Lembro-me, por exemplo, da Ivone Silva e do Eugénio Salvador, do Henrique Santana sempre desconfiado com tudo o que cheirasse a jornalista, da sempre simpática Luísa Barbosa, actriz e anfitriã do «Dominó». E lembro-me do Neves de Sousa, carregado de sede, de histórias e de notícias. E do António Rolo Duarte, autor de alguns espectáculos que revolucionaram o teatro de revista, a meias com o Chico Nicholson, o Gonsalves Preto, o Nuno Nazareth Fernandes.

Dos «velhos» empresários teatrais sobrava ainda Sérgio Azevedo. Mas já por lá andava o Hélder, claro. E o Vasco Morgado Júnior, o Vasquinho, que sempre me pareceu ter mais jeito para o convívio do que para o negócio. E havia ainda o senhor Manel, minhoto orgulhoso, solidário e atento. E o Beringela, vagabundo em grande estilo. E o alfarrabista de cujo nome já não me lembro, mas cujos livros ainda guardo religiosamente. E um cauteleiro que nunca conseguia vender nada e passava a vida a barafustar contra o dinheiro. E havia, claro, o Mário Alberto, mestre cenógrafo, pintor e anarquista, companheiro de muitas emoções irrepetíveis, tão generoso para os amigos quanto implacável com os inimigos. E cuja casa, autêntico museu vivo do Parque, tem resistido às sucessivas demolições, como que para mostrar aos que hão-de vir que há gente que nunca se rende.

O «meu» Parque Mayer é o lugar de toda esta gente e de todos os outros, tão importantes como estes mas que não cabem no espaço necessariamente curto de um texto-de-programa. É um lugar feito de muitas memórias, de risos e de lágrimas, de morte e renascimento. Não sei como vai ser no futuro, sabendo embora que vai ser diferente. Como não sou dado a saudosismos inúteis e acredito que o mundo é composto de mudança, acredito que continuará a ser, como até agora, um lugar capaz de contribuir para a nossa felicidade. Que é como quem diz: um lugar com pessoas, gente viva e que não desiste de lutar, nem que seja apenas por um sorriso. Afinal, foi sempre isso e apenas isso que valeu a pena no Parque Mayer.

Texto incluído no programa de A Revista é Linda
Teatro Maria Vitória, Lisboa | 2005