A voz do desassossego

A voz do desassossego

«Águas das fontes calai / ó ribeiras chorai / que eu não volto a cantar…» Por um instante, a voz de Zeca estremece e emociona a plateia, onde muitos não conseguem conter as lágrimas perante a crueza premonitória deste verso, aquele que ainda hoje em primeiro lugar me ocorre de cada vez que penso nessa noite mágica de 29 de Janeiro de 1983.

Raras vezes um tema musical terá sido tão perturbador para um auditório como o foi essa Balada de Outono cantada por José Afonso no palco do Coliseu dos Recreios. Nenhum de nós o dizia, mas todos sabíamos que aquela era, com certeza, a última vez que o teríamos ali connosco, a cantar como só ele as coisas que mais ninguém sabia fazer assim.

No entanto, e apesar disso, ainda hoje sou incapaz de pensar naquela noite como uma despedida. Porque o que ali se passou foi uma celebração da vida, não foi uma evocação antecipada. Foi «um recital insuportavelmente belo», como o definiu, com as palavras certeiras que sempre usou, o Fernando Assis Pacheco. Foi uma festa. E era assim mesmo que o Zeca queria que fosse.

Dessa noite, além da lembrança individual e indelével de cada um dos que ali estiveram, ficou este registo audiovisual que, quase trinta anos depois, surge pela primeira vez publicado em DVD. Mas ficou muito mais: não exagero se disser que este concerto marcou as vidas de todos os que a ele assistiram – e não foi apenas pela grandeza das músicas ou pela proximidade dos textos, pelas emoções repartidas ou pela memória de duas horas irrepetíveis. Este espectáculo deixou marcas porque foi, acima de tudo, um acto de grande e indomável Liberdade.

Expliquemo-nos. Zeca Afonso era um genial poeta e compositor e cantor, dono de uma obra que a cada ano que passa não perde um instante de brilho, antes consolida uma já irrefutável intemporalidade e se mantém ainda na vanguarda da música feita hoje em Portugal. Mas o Zeca era também um homem político, e era-o no sentido mais nobre que desde Aristóteles damos à palavra. Tenhamos em conta que esta não é uma questão de somenos importância, nem ele gostava que a víssemos como tal. A música, para José Afonso, era acima de tudo um pretexto – «um utensílio», disse-me uma vez, «como quem faz um par de sapatos» – mas o que verdadeiramente lhe interessava era aquilo que podia descobrir e construir a partir dela: «os contactos que estabeleço, os amigos que arranjo, esta irmandade progressista que se vai estabelecendo à medida que vamos correndo as terras, descobrindo que nessas terras vivem indivíduos que têm determinado tipo de preocupações.»

Estas eram as coisas de que verdadeiramente Zeca Afonso gostava de falar, e as que mais lhe ocupavam o pensamento. Nos anos em que tive com ele um razoável convívio (e pese embora o facto de várias das nossas conversas terem sido motivadas por razões, digamos, “profissionais”), bem vistas as coisas falámos sempre muito pouco de música e de cantigas, mas nunca deixámos de referir as causas que, em Zeca, eram sempre tão ou mais importantes do que tudo o resto. Para ele, cada entrevista – como cada concerto – era também um acto de intervenção cívica, e logo que podia arrumava o assunto «das cantigas» e punha-se a falar daquilo que o inquietava no país e no mundo.

Deste modo, o espectáculo do Coliseu foi, também, um grande acontecimento – um acontecimento político, não tenhamos pudor no uso da palavra – com uma singularidade que só voltaria a repetir-se quatro anos depois, justamente por ocasião do funeral do cantor: foram talvez as últimas grandes manifestações populares verdadeiramente unitárias do Portugal de Abril. Perdoem-me se insisto neste ponto, mas a verdade é que José Afonso não merece ser privado deste capítulo central da sua biografia. Irrita-me uma certa tendência actual para desvalorizar a matriz lutadora e libertária de Zeca em favor da incontestável genialidade da sua obra – como se esta não fosse uma consequência directa daquela, como se a música não tivesse sido afinal o seu modo de participar na luta por um mundo melhor a que voluntária e generosamente empenhou toda a sua vida – na tentativa de gerar uma unanimidade que ele, Zeca, sempre rejeitou.

Foi, de resto, porque a «carreira artística» pouco lhe dizia que só já depois de ter passado os 50 anos fez um espectáculo em nome próprio no Coliseu dos Recreios. Este espectáculo. Gerado em condições difíceis, com organização da Cooperativa Eranova (de que Zeca era fundador e que então reunia os mais significativos criadores e intérpretes portugueses), e que em rigor ninguém podia saber exactamente como ia decorrer. Não só pela proverbial «descontracção» de Zeca quando colocado sobre um palco, mas também, e sobretudo, pelo seu estado de saúde que já na altura era preocupante.

A doença, que se sabia incurável, tinha-se declarado um par de anos antes e obrigou a precauções redobradas por parte da organização. Em off, uma voz pede ao público que se abstenha de fumar (sim, nesse tempo ainda se podia fumar, de tudo, no Coliseu!) e pede mais uns minutos de paciência. Ninguém fumou, mas a ansiedade do público era indisfarçável, o que tornava ainda mais longo o compasso de espera entre a hora marcada e a hora de início do concerto – duas coisas que, como se sabe, em Portugal quase nunca coincidem. Depois apagaram-se as luzes. E de repente éramos todos cidadãos da Capital da Alegria.

Os primeiros acordes do concerto indiciam o que está para vir. A evocação instrumental da Balada do Mondego, de Artur Paredes, situa o cantor no lugar onde tudo começou, e é como se dissesse: vamos olhar para o que foi e construir o que há-de ser, que é como se alimenta a Liberdade. E então entra o Zeca. A sala explode num oceano de aplausos.

«Do Choupal até à Lapa / foi Coimbra os meus amores.» Os primeiros versos que Zeca canta são o tributo a Edmundo Bettencourt e às origens coimbrãs. E são também o início de uma viagem que vai prolongar-se por toda a noite. Por toda a vida. O cantor descontrai-se um pouco, passa a um tema tradicional, Senhora do Almortão, cede a boca de cena a Octávio Sérgio que toca A Dor na Planície, regressa para a Balada de Outono, o arrepio colectivo. Depois chama Rui Pato, parceiro antigo, que toca Avenida de Angola antes de ilustrar a voz de Zeca na iluminada Canção de Embalar, no Natal dos Simples e, claro, n’Os Vampiros, que foi onde verdadeiramente começou a festa.

Quatro mil vozes livres são a prova de que, mais que não fosse por esta partilha, já teria valido a pena fazer este espectáculo. Depois deste imenso coro, anuncia-se um intervalo, mas há quem não arrisque sair de onde está: a sala é um ovo de gente, e as garantias de ter o lugar livre cinco minutos depois não são muitas. Nesta altura, a ansiedade inicial já passou, todos querem apenas que aquela noite não acabe, todos ficariam ali uma parcela da eternidade.

Zeca regressa com A Morte Saiu à Rua. E, porque há que não esquecer os males passados, recorda José Dias Coelho, o pintor assassinado pela Pide nos anos 60, que inspirou a canção. Evoca também Adriano Correia de Oliveira, companheiro de lutas e cantigas cuja morte prematura, três meses antes, impediu de participar, como com certeza gostaria, na grande festa colectiva deste Coliseu.

No Comboio Descendente, o retrato pessoano da modorra lusa, surge antes de novo manifesto, expresso n’O Homem Novo Veio da Mata – nessa altura ainda havia motivos para acreditar no «homem novo do MPLA» – quando o clima de festa já tomou definitivamente conta da sala. Volta ao seu povo com Milho Verde, para de seguida anunciar «uma cantiga que não tem moral nenhuma mas nos diz que, às vezes, vale a pena saber esperar». É a Canção da Paciência, uma composição indispensável, que só virá a gravar depois, no álbum Como Se Fora Seu Filho.

Há uma nova pausa de Zeca, que confia o palco aos músicos para dois temas instrumentais. Ao longo de todo o concerto, senta-se várias vezes, bebe um pouco de água, procura atenuar a dificuldade que visivelmente sente. Aparenta, porém, uma grande tranquilidade, e mesmo quando as coisas correm menos bem no palco aproveita para exercitar o sentido de humor, que tinha de sobra e não se acanhava de praticar.

Depois, acompanhado pela viola de Fausto, mostra-nos mais uma canção nova, Papuça, e parte para esse tema complexo e fascinante que se chama Era Um Redondo Vocábulo. Torna ao futuro com Utopia, ao tempo também ainda inédita. E de novo o passado com Venham Mais Cinco, enquadrado no cenário, comum por esses anos, de centenas de isqueiros acesos na plateia: «Não me obriguem a vir para a rua gritar…»

O concerto está a chegar ao fim, Zeca retira-se no meio de uma aclamação indescritível que deixará marcas nas mãos e na alma de quase todos. Mas ninguém está disposto a permitir que a noite acabe já. Regressam os músicos e o cantor para lembrar que «o que faz falta é agitar a malta», «é libertar a malta», «é dar poder à malta». E depois a apoteose final com «essa canção nova, que ninguém conhece», a celebração da nossa esperança colectiva nos versos de Grândola Vila Morena.

Zeca chama os amigos, vão os que foram chamados e alguns dos outros, o Coliseu é agora um corpo enorme de gente, braços dados, vozes em coro. Cravos vermelhos são lançados sobre o palco, Zeca apanha um e ergue-o no ar. Sorri. O Joaquim Lobo, repórter de olho atento, capta o momento sem saber ainda que acabou de obter uma imagem que vai tornar-se um ícone. E quando, a custo, saímos para as Portas de Santo Antão começamos lentamente a perceber como o Zeca mudou as nossas vidas.

Esta é a razão central que faz deste DVD muito mais do que um documento, muito mais do que o registo de um espectáculo xis num dia tal de uma época em que nos julgávamos mais próximos de ser felizes. Os tempos de hoje são paradoxalmente mais incertos, e menos empolgantes, mas por isso mesmo ver e ouvir este concerto torna-se um prazer mais útil. O audiovisual é hoje um meio de excelência para aquilo a que José Mário Branco chama «a partilha diferida» de emoções. E este é-o por todas as razões: porque é o último registo de um concerto deste criador de excepção, porque foi filmado com paixão por Luís Filipe Costa, e porque, vendo-o, nos podemos tornar melhores pessoas. O que, nos dias que correm, é o melhor que se pode querer.

Uma breve nota final: após este concerto, o estado de saúde do cantor não lhe permitiu voltar a apresentar-se em público – exceptuando um último recital, em Maio, no Porto, e breves aparições em homenagens que lhe foram feitas em Coimbra e Beja. Mas ainda teve forças para publicar Como Se Fora Seu Filho, nesse mesmo ano de 1983, e para acompanhar as gravações de Galinhas do Mato, dois anos depois – um disco único a que já não pôde dar voz, mas que dirigiu e acompanhou faixa a faixa, com tal rigor e minúcia que, ouvindo, sentimos que ele está sempre lá.

Ainda assim, impedido de cantar por força da inveja dos deuses, nem por isso Zeca se resignou ou se desinteressou pelas coisas do mundo e da vida. Daí que uma das últimas recordações que guardo dele seja a invectiva que lhe ouvi em fins de 1985, justamente por altura da publicação desse último disco: «O que é preciso é criar desassossego», dizia. «Quando começamos a procurar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado! Acima de tudo é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de ‘homenzinhos’ e ‘mulherezinhas’. Temos é que ser gente, pá!»

Pois é. Foi há vinte e cinco anos, mas podia ser hoje.

Introdução ao DVD Ao Vivo no Coliseu, de José Afonso
Ed. Companhia Nacional de Música/RTP/FNAC | 2010>