Começo pelo óbvio: este álbum é um acontecimento, e como tal deve ser celebrado. De Samuel, as últimas notícias em disco de nome próprio chegaram há quase vinte anos, num cd com canções de Adriano Correia de Oliveira a que apenas alguns privilegiados tiveram acesso. Mas ele nunca deixou de andar por aí. Esteve onde achou que devia estar, e pagou por isso o preço que sempre é cobrado aos homens livres. Não esgotou coliseus, não andou nas bocas do mundo, mas em contrapartida nunca deixou de fazer aquilo de que gosta, e como gosta. E não consta que se tenha arrependido.
Mas o que transforma esta pouco mais que dúzia de cantigas numa ocorrência incomum não é (apenas) o facto de Samuel, intérprete e compositor de quase todas, ser um artista pouco dado a competições mediáticas. O que aqui se pode ouvir é francamente bom, e isso deve-se não apenas ao rigor dos arranjos de José Mário Branco, mas sobretudo ao talento de quem idealizou este encontro e dá voz a estas canções. O Samuel, claro está, que já merecia há muito ter gravado um trabalho como este. Fê-lo só agora, mas ainda bem que o fez.
Devo dizer que me é difícil ser imparcial ao falar disto. O Samuel é dos primeiros amigos que fiz quando desaguei em Lisboa, vai para 40 anos, e o Zé Mário idem. Gosto muito de ambos e daquilo que fazem, e o mesmo posso dizer de vários outros (poetas e músicos) participantes neste cd. Nem sempre teremos estado lado a lado, mas estivemos sempre do mesmo lado, e isso é o mais importante.
Falo, por isso, da obra de um amigo em que tomam parte activa outros amigos. Isto, dito assim, quase parece uma alocução de Carlos Paredes (amigo eterno, também), mas quem conhece o Samuel sabe que o que afirmo faz sentido: ele vem de um tempo em que cantar era um modo corajoso de resistir e em que a amizade tinha, também por isso, um valor superlativo. E, felizmente para nós, seus amigos e seus ouvintes, nunca deixou de seguir por esse caminho.
Mas devo ser rigoroso, e para isso é importante realçar alguns factos. Por exemplo, que o Samuel é não apenas uma das vozes mais afinadas que conheço, mas também um intérprete exímio, tanto das próprias músicas como de criações alheias. Quem já o ouviu cantar Adriano ou Zeca sabe do que falo. Mas o Samuel é, acima de tudo, um homem atento. À música, sim, mas mais ainda à vida, às pessoas e às coisas que valem a pena.
Para lá das palavras e dos sons, as canções têm uma alma própria, por vezes capaz de mudar o rumo da nossa vida. Já aconteceu, e nós fomos disso testemunhas. Traduzir no canto a alma que lhe corresponde é a função do cantor, e Samuel sabe disso muito bem, como se prova neste álbum.
É a segunda vez que aqui utilizo esta expressão, hoje caída em desuso – álbum – para me referir a este trabalho, e não é por acaso. Era assim que, numa época não muito longínqua, se designavam os discos em formato LP, e embora a expressão pudesse nomear indiscriminadamente qualquer vinil de longa duração, os mais antigos lembram-se com certeza de que era utilizada sobretudo para referir os registos de maior qualidade e/ou consistência. Aqueles que não se limitavam a ser meros aglomerados de cantigas e, pelo seu valor intrínseco, já mereciam um outro tratamento. Um álbum era um álbum, o resto eram apenas discos.
Neste álbum, Samuel retoma os temas que lhe são mais caros: o amor e a querença, a partilha e a luta, o sonho e o desejo. Fá-lo como sempre fez, como se fosse a coisa mais natural do mundo, com um aparente desapego que mais não é do que um modo de estar, um modo sincero de ser. Tal como quando nos fala, cantando, daquilo que existe e do que se quer inventar, de dúvidas e de (in)certezas, de alegrias e de lugares, do passado e do futuro.
Há quem desista e há quem insista. O Samuel pertence claramente a este grupo, e continua a cantar para lá do foguetório, mesmo sabendo quanto isso lhe vai custar. Ouvi-lo é, pois, mais do que uma vontade, uma necessidade. E um prazer, também, que se renova a cada cantiga.
Introdução ao CD Sempre um fim, sempre um começo, de Samuel | 2017