O putativo futuro primeiro-ministro, Santana Lopes, foi à Televisão defender a evolução na continuidade que seria a sua nomeação, se o PR seguisse os conselhos do PSD e do CDS e não convocasse eleições antecipadas. Diz Lopes que Sampaio deve deixar governar a maioria parlamentar, nomeando-o para o cargo deixado vago por Durão Barroso. E apresenta como razão maior o facto de também Sampaio ter desistido a meio do mandato de presidente da Câmara de Lisboa, sem que tal obrigasse a novas eleições.
Uma vez mais, Lopes foi desonesto na argumentação apresentada. Mas o seu alegado motivo anti-eleitoral é também um dos que mais objectivamente sustentam a posição de quem defende a dissolução do parlamento e nova consulta popular como a mais democrática solução para a crise que Durão Barroso criou. Porque, ao contrário do que Lopes agora quer fazer crer, a substituição de Sampaio por João Soares aconteceu no respeito pelo acordo pré-eleitoral estabelecido entre os partidos da coligação de esquerda que se apresentou às eleições em 1989 e 1993. E isto não é uma mera questão formal, é o cerne da questão estrutural: os lisboetas que por duas vezes elegeram Sampaio, sabiam de antemão qual seria o sucessor se o presidente por qualquer motivo deixasse de o ser.
Ora, por sua vez, a coligação da direita que está no governo nunca foi sufragada. Mas, mesmo admitindo como legítima a coligação PPD-CDS, supõe-se que os eleitores que apostaram neste cavalo o fizeram dando o seu voto a um projecto encabeçado por Durão Barroso. Que nessa altura prometeu não fazer como António Guterres e levar o mandato até ao fim: «O que está em causa é saber se o governo deve ser de quatro meses ou de quatro anos», afirmou o então líder do PSD, dois dias antes de ser eleito. «Não vou desistir no governo, tal como não desisti na oposição, enquanto não fizer de Portugal um país mais avançado», disse também, acrescentando: «Portugal pode contar comigo». Uma determinação que reafirmou de modo categórico no discurso da vitória: «Pelo meu lado, farei tudo o que estiver ao meu alcance para dar a Portugal uma situação de estabilidade e de segurança».
Obviamente, Barroso não cumpriu a palavra que deu ao país. Em vez disso, mudou de nome e de emprego – vai presidir à Comissão Europeia e passará a ser tratado por José Barroso – mas ainda assim quer impôr, aos seus eleitores e aos outros, um homem que nem sequer para dirigir o partido a que pertence foi votado. Pelo contrário: a ele se devem as maiores fracturas que o PSD conheceu, e só chegou ao lugar que hoje ocupa porque os barões do partido sucumbiram ao «golpe de estado» que Manuela Ferreira Leite começou por denunciar – antes de ela própria se render.
O resto é já é do domínio público: Lopes subiu o degrau que faltava para tomar conta do partido, mas não deixou de ser o demagogo de sempre, capaz de tudo para alcançar os seus objectivos, seja no Sporting, na Figueira da Foz, na Praça do Município de Lisboa ou em São Bento. Para já. E o pior é que não se trata sequer de um «déspota iluminado» – desses que, pelo menos, deixavam florir o Renascimento – mas apenas de um dandy caprichoso, que encara o exercício do poder com a mesma leviandade de quem vai às putas: é apenas um projecto de satisfação pessoal, em que, por vontade do próprio, o resto do país seria ocupado por figurantes em lugar de cidadãos.
Não os conhecesse desde há décadas, e ficaria espantado com o medo que estes democratas têm da Democracia. E com a desfaçatez com que agora se dispõem a ultrapassá-la em nome de alegados «superiores interesses da nação». Porém, entre os vários argumentos que o PSD, o CDS e respectivos comentadores independentes apresentaram contra a perspectiva da convocação de eleições antecipadas, há um que nos faria rebolar de riso, se não escondesse velhos hábitos que, trinta anos depois de Abril, se julgavam já erradicados do Portugal democrático: um processo eleitoral fica caro ao país, dizem eles. O doutor Salazar, que era um homem poupado, achava o mesmo. E foi o que se viu.
Para Consumo da Causa | 7.Jul.2004