Cantata em azul

Cantata em azul
Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso,
e as pessoas andavam de um lado para outro, e encontravam-nos, a eles,
ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade.

Herberto Helder, Os Passos em Volta

Lembro-me das casas e das flores silvestres, do canto recatado à beira-ria por onde fugíamos à cavalgada na noite, das mulheres jovens que sorriam envergonhadas aos nossos devaneios. Lembro-me de como éramos belos e tontos, convencidos de que o mundo só avançava porque nós assim o desejávamos, crentes de que poderíamos fazer parar o tempo com as palavras mágicas do amor. Lembro-me de ouvir o rugido do mar e não ter medo. Lembro-me de pensar em todas as coisas que haveria do lado de lá e acreditar que poderia voar sobre as ondas se fosse essa a minha vontade. Lembro-me.

Então, ainda não tinha idade para saber que era feliz. O mundo era um lugar pequeno onde não cabia eu e os meus sonhos. Deve ter sido por isso que quando fiz vinte anos decidi ir-me embora. E uma manhã levantei-me, disse «Adeus pai, adeus mãe», e apanhei a camioneta que passava na Vila todas as semanas com a pontualidade de um galo do campo, rumo à cidade grande onde cheguei várias horas e muitos quilómetros depois, dormente de ansiedade, olhos abertos para o bulício e mãos estendidas para tudo. Para trás ficaram memórias e algumas alegrias, amores fugazes, encantos e desencantos. E um menino feliz que não sabia.

Quando a camioneta parou, num largo onde se amontoavam vendedores, magalas, pedintes e proxenetas em quantidades variáveis, descobri que estava só. A maioria dos companheiros de viagem tinha a esperá-los um tio, uma prima, um amigo da família, mas para mim não havia mais do que a cidade em tons de prata que apenas conhecia de visitas breves e bilhetes-postais baratos. Era um dia de sol claro a contrastar com a minha timidez de gato sem dono e tudo me parecia demasiado grande e feroz. Uma mulher de olhos claros floriu num sorriso, mas achei que não era para mim e comecei a andar. Meti-me por uma rua larga na direcção do rio e andei, andei sempre até desaguar numa casa velha e cheia de silêncio sem flores nas jarras. Sentei-me ao pé da janela a fumar, perguntando-me se era aquilo a felicidade.

Viviam-se então ainda os ecos dos tempos encantados em que julgávamos ser donos de nós e do futuro. Não fomos, mas ainda assim lhe digo: valeu a pena. Valeu, pois claro, que um homem também tem direito às suas ilusões. E foi assim que, nos dias e nas noites que se seguiram, a vida nova por que ansiava se me foi revelando em todas as suas cores, como um arco-íris. A pouco e pouco tomei posse da cidade e desvendei os mistérios dos seus lugares secretos à medida que ia crescendo por dentro e por fora.

Os psiquiatras chamam a isto conquistar a maturidade, ou qualquer coisa assim. Para mim era antes uma descoberta, uma peregrinação frenética por entre os lugares e as coisas. Tinha medo de ter medo, mas acreditava que um mundo novo, o meu mundo, começava a ganhar forma por entre os rostos dos homens e das mulheres que me abriam as portas de outras casas menos velhas onde havia camas e cadeiras, flores nas varandas, crianças, uma vez por outra um cão ou um peixe vermelho num aquário. Eram homens e mulheres como eu, também eles e elas à procura de um caminho, homens e mulheres com dúvidas e dores de crescimento. Eram pessoas, e nisto de pessoas, como diz o poeta, amá-las é que é bom. Era assim, também, o que eu pensava.

Falemos, então, do amor. Que é como quem diz, falemos da poesia. Houve um tempo depois desse em que pensei que amar era coisa simples, ainda não sabia que o amor é um lugar muito longe onde não se chega quando se quer, apenas quando se pode e se sabe, e muitas vezes só o sabemos quando já nos parece demasiado tarde. Obscuros mistérios, estes do amor, dirá você. E tem razão. Mas sempre lhe digo que estive lá. Com inquietação e algumas mágoas, naturalmente. É inevitável falar de mágoas quando se fala do amor. Inevitável. Apesar disso amamos, e continuamos a amar, uma e outra vez, sempre na esperança de que desta vez chegamos lá. E há um dia em que já podemos e sabemos, e nunca é demasiado tarde.

E agora aqui estou, uma vez mais no ponto de partida. Perguntará porque voltei, e não sei que lhe responda. Deve pensar que são saudades, mas digo-lhe que não. Os velhos lugares eram bons porque foi neles que vivemos e fomos jovens. Mas os novos lugares são melhores, porque é neles que vive tudo aquilo que está para acontecer.

Confesso: em todo este tempo fui feliz, apesar das dores e dos enganos. O resto são mágoas passadas. A cidade ainda lá está, agora sem segredos nem mistérios, tal e qual este pedaço de mundo. Em todos estes anos aprendi a ter menos certezas, estive em lugares fantásticos, vivi coisas belas e terríveis. Provei o sabor da alegria e o ardor da amargura, amei e chorei, intensamente, como nos romances antigos. E agora estou aqui, já sem medo de ter medo.

Acho que apenas quis olhar uma última vez estas casas e estas flores. Chove, e sinto a água que escorre nos meus olhos e pinga do meu queixo, serena e doce como as palavras do amor. Cumpre-se assim a tradição da alegria do regresso a casa. Daqui irei talvez para o mundo do lado de lá do mar, em voo ameno sobre as ondas. Não acredita? Ah, meu amigo, sabe lá do que é capaz a vontade de um homem!

Inédito, 2006