Maio, que duro Maio

Maio, que duro Maio

Antigamente, Maio era uma luta, ainda que fosse um luto.
E gritava-se, e morria-se, por ele.
Depois, quando o mundo antigo ardeu e Abril se abriu em Maio, fez-se a festa, mãos unidas na alegria de um só braço e outro abraço, irmão.

Como esse dia do primeiro Maio, já não voltou a haver. Por mais que se quisesse repintar a alegria, não se pode pedir que um mesmo foguete suba e estale duas vezes.

Era festa, mesmo assim. Festa quase ritual, de sangue e de luta e de sonho, porque é sempre assim nas celebrações, porque nascer só se nasce uma vez. Depois, não cabe senão lembrar o instante, esse instante em que a luz do mundo se acende em corpo e alma.

E lembrar é bom, porque recorda-se e faz-se a festa de renascer. Em Maio costumava fazer-se a festa de Abril.

Até que a peste veio e o mundo enfim parou. E Abril perdeu a cor, e o mês de Maio perigou. Por pouco não se ofuscou.


De modo que, desta vez, a festa foi na Graça, não de graça, mas com ela. Juntos e presentes, amigos, dois, com nomes de gente boa: Júlio e Pedro, um antigo, outro ganho no momento. E outros mais que lá estavam, mesmo ausentes.

Júlio, o velho, mestre-irmão de muitas lu(t)as. Pedro, o novo, com nome de filho querido – o mais querido, que é o meu, pois, que outro seria? Ainda mais longe no espaço, mas tão perto na minh'alma, sinto junto a Bem-Amada. Ela que nestes e em todos os dias segura o meu coração, frágil, à conta de amor e riso, sete mil quilómetros a sul, na liça do ganha-pão que a pátria-mãe lhe negou.

Digo-vos: há muito que não se via, nem havia, uma festa como esta. Discursos? Não. Só palavras. Trôpegas, sôfregas, ziguezagues de notícias e lembranças. Talvez mais, talvez com ais: mês e tal fechado em casa com dois gatos tem tudo para acabar mal. E os gatos nem são gatos, mas são gatas, o que até poderia dar-se a piadas meio assim para o ordinário. Mas não vamos por aí – Maio é um mês honrado e há que o manter elevado, na lábia como nos dias.


E eu falei, nós falámos. Talvez a mais, não demais. Os amigos, velho e novo, deram corda ao palavrame. E sendo que as conversas são, diz-se, como as cerejas, lá fomos de baga em baga, rosto em rosto à procura de outros rostos. Uns mais vivos, outros menos, todos presentes, mesmo os que já não estão, nem voltam: um Adriano e dois Mários, um Afonso e dois Fernandos, mais dois Zés, uma Natália e uma Edite, e um Vítor, e um Rogério, e um Armando.

Um, que de Avintes veio e de lá por fim se foi. Outro que trocadilhava o nome pela barragem (do Lindoso?, não, Lindolfo), ou aquele que foi rei – da noite, do Parque, e tudo. E o Praça, do Felgar. E o Assis, que poeta!, de Coimbra e Pardilhó. E Relvas, o verdadeiro, com a vida feita em risco. E o Cafonso, e o Pires. E a que cantava lírios e espantava canivetes. E a Soeiro leal, que nunca jamais transigia. E aquele que muitas vidas de tudo e todos sabia, e fazia, & etc. e tal. E o outro, de Moncorvo. E o grandalhão da Ajuda que era de toda a Lisboa, e de mais longe.

Estes, que são já mortos, dizem (não creiam). E outros, ainda vivos: Zé Xavier, Manuela, uns Antónios, Luíses, Anas, e a Cláudia mais a Teresa, a Margarida e a Flor, uma Nina e uma Inês, um Sérgio, um Fausto, um João. E outro, e outro ainda. E uma Isabel e um Ricardo. E as Marias que são tantas. E mais Josés. E Manuéis. E outros Pedros. E Paulos. E assim sucessivamente e por diante. Brindamos a eles, e a elas, e com eles, e com elas, ausentes mas não distantes. E aos demais, de um lado e outro da vida.

Saúdo ainda, ao sopé, um Alberto também Zé, feito de sol e pimenta: viva!, meu poeta irmão tão grande que ali está, num sótão da Mouraria com vista para o Castelo, e só não está aqui connosco porque já lhe custa andar. Mas anda.

Desfilamos nesta alameda particular que fazemos, e a rua é toda nossa, do miradouro ao boteco. E brindamos outra vez, lembramos e revelamos uns aos outros as histórias e as memórias, tropeçamos na bebida e na emoção desta tarde, que é tão tarde.


No céu, um avião agiganta-se, e nele dou pelo rosto suave da Amada que já deve estar em dores, se não lhe ligo nem digo. Nada digo, cão que sou. Mas ela mais que ninguém me entende, eu sei, e logo serenará. Pois não há como as mulheres, algumas, para perceber a fundo estas coisas do afecto.

Ocorre-me pensar que, ali, os três em rosário de lutas passadas e presentes e suadas, somos, se não melhores, mais contentes que os demais, os que em coro afinado cantam – unidade, unidade, unidade! – a dois metros uns dos outros de distância social. Penso neste mundo em que exploradores e explorados são, não iguais, tão diferentes do mar manso onde agora desagua a multidão que não há. O mundo é de funcionários – colaboradores, colaborados – como assim de tudo isto diria um outro Júlio, o Pinto que há vinte anos fez a trouxa e zarpou, sem querer, deste para outro mundo. Sorrio cá para mim, só pode ser de emoções, o vinho nem cá passou.


Chego a casa já um bocadinho bêbedo pelos éteres deste dia. Os amigos, velho e novo, seguram-me a asa ferida. Se calhar – não, de certeza – descumprimos com as regras sanitárias, sociais, sei lá mesmo se as legais. Mas que se foda!, é para isso que cá estamos, e não vai ser um cabrão dum bicho que nem sequer se vê a entravar-nos de existir até mais não. A vida sem viver é mais segura, é. Mas não presta para nada, bem sabia o velho O'Neill, esse Alexandre grande com quem só vagamente me cruzei, há muitos, muitos anos, nos corredores duma rádio quase imaginária de tão real.

Encosto-me e passo a sonho solto pelo sono, pois que a luta, sempre sempre, também cansa. Quando desperto, estrovinhado, as gatas cuidam de vigiar, e me velar e zelar: Blimunda, sempre alerta, Alice num ronron leve em meu colo. Ligo logo à Bem-Amada, encafifado – mais pela angústia que pela culpa. Ela beija-me e acalma-me desde lá longe onde está, naquele sorriso dela, tão doce e tão único, e tão grande e tão bom, que um dia ganhei desmerecido na lotaria da vida.

E agora tudo está bem. Esteve sempre tudo bem, e ela também já o sabe. Retribuo outro sorriso, remansado. Beijo-a de volta, e ela sabe, e ela sente e sinto-a estremecer por debaixo dos meus dedos no ecrã. Boa noite, meu amor – diz – dorme bem. E adormeço, enfim, feliz.

A luta continua.

In Torpor - Passos de voluptuosa dança na paragem brusca, Maio 2020