A última vontade

A última vontade

Já passa da uma da manhã. A minha mulher continua sem aparecer e a gata Genoveva não pára de me lamber os calcanhares como se fossem gelado de limão. Dantes, as coisas e as pessoas eram muito mais simples, mas a tecnologia transformou tudo. Até as gatas. Escureço aos poucos na calma idílica dos subúrbios enquanto Ian Dury, preso nas ondas da telefonia, continua a sussurrar o seu convite: «Walk up and make love to me.» Não entendi ainda se será uma alusão discreta à minha mulher ou à gata mas, bem vistas as coisas, vai dar ao mesmo.

Ian não se preocupa e vai por aí, como se fora um fantasma de Régio em busca de horizontes proíbidos. Nota a nota, dedo a dedo, quase literariamente. Os tempos de «Sex and drugs and rockn'roll» são hoje uma leve imagem do passado quando ainda havia tempo para sonhar. Quando a juventude era um acto irreverente a caminho do futuro. Pelo que me diz respeito, perdi de vez os sonhos e as ilusões. Já não duvido sequer de que a minha gata - disse-vos já que se chama Genoveva - nunca vai ser a protagonista da «Tragédia da Rua das Flores», nem sequer em versão soft-cora de um grupo amador da Pampilhosa. Alguns amigos tentam ainda convençer-me de que isso acabará por acontecer, mas esgotei todas as esperanças. A pobre Genoveva está inevitavelmente condenada a nunca passar de raticida com patas.

Dizem-me, no entanfo, que nem tudo está perdido. E apontam-me como alternativa a música dos Duran Duran. A custo faço por ouvir. Como seria possível viver sem os Duran Duran? Como poderia suportar a infidelidade da minha mulher e as lambidelas teimosas da minha gata, se não fossem os Duran Duran? Como acordaria amanhã se os Duran Duran não existissem? Sem os Duran Duran, a minha passagem pelo mundo dos vivos ficaria inevitável e indefinidamente votada ao desencanto e à mais cruel das amarguras, à lágrima de quem vê pela última vez a mirífica paisagem de um oásis imarcessível e quedo como as cataratas do longínquo Niagara.

Mas há os Duran, pois. E, com um pouco de sorte, pode até ser que Reagan, Andropov e Kim Il Sung acabem por se entender e estabeleçam um reino universal duradouro. Pode ser que D. Sebastião não tenha morrido e que Vasco volte, um dia destes, do meio da neblina. Pode ser, enfim, que o general presidente seja um gajo porreiro e o nosso capataz acabe finalmente com a merda da crise. Coitada da crise. Penso nela e não consigo esquecer a minha pobre Genoveva que nunca será Lurdes Norberto.

Se ao menos o senhor Nicholson lhe arranjasse um lugarzinho nas «Origens»... Nem que fosse como dama de companhia da Sra. D. Helena Isabel. Assim como assim já estou por tudo. Eu e a minha mulher, coitada, que anda por aí aos caídos, à espera que um de nós tome a iniciativa de partir para o Lesotho. Só ainda não o fiz porque sou um tipo pouco dado a aventuras. A fé no Além e os manuscritos do jovem Marx de 1844 têm sido os meus sustentáculos, mas agora já nem isso resulta.

O meu amigo Viriato pediu-me que lhe escrevesse o comentário para o Roteiro de Discos, na esperança de me elevar a moral, que já atingiu uma cotação inferior à do escudo. Faço as derradeiras tentativas. Primeiro com o disquito dos Da Vinci, que mão alarve por aqui deixou. «Caminhando», dizem eles, e fica-me a dúvida sobre se já terão chegado à beira do abismo ou se começaram a partir daí. Falam de Hiroshima e de Lisboa no ano 10.000. Felizmente já cá não estarei para ver como é. Tento, de seguida, os Mezzoforte. O som é óptimo, a execução perfeita, a força incrível. E seria ainda melhor se não fosse esta história da minha mulher e a língua áspera da Genoveva que optou agora pelo meu tornozelo direito.

Regresso a Ian Dury, enquanto o prato do gira-discos continua a girar, em seco. Eu também. Espero apenas que o Espírito Santo, os três pastorinhos e o dr. Kalinine cuidem do meu espírito e tratem bem da Genoveva. Se possível que a apresentem a alguém da Edipim onde, mesmo que não resulte como actriz, poderá vir a ter sucesso como intérprete feminina da 149ª versão de «Quando o Coração Chora». A Genoveva, coitada, que tão bem sabe miar em lá menor. Abraço-vos.

EDGAR HI FI

«Foram estas as últimas palavras que escreveu antes de se pendurar pelo pescoço na barra da cama. Tinha 24 anos, o serviço militar cumprido e dizem que só se entendia bem com os cães vadios...» (de uma reportagem de José Jorge Letria, publicada em «Até ao pescoço», suplemento especial de «O Diário»).

Se7e | 15.Jun.1983