O fado é uma canção livre

O fado é uma canção livre

Tem 58 anos de idade e mais de 40 em ligação permanente com o fado, a que deu o essencial da sua vida. Acha que «o fado não tem futuro, porque o futuro do fado é o seu presente» e não se arrepende de todo o tempo que lhe dedicou, apesar das muitas insónias que essa opção lhe valeu.

Há 30 anos à frente de uma das casas de fado mais conhecidas de Lisboa (o «Sr. Vinho», na Madragoa) sente-se satisfeito por ter ajudado a lançar vários dos nomes mais consistentes das últimas gerações de fadistas e continua a acreditar que «as casas de fado são os lugares onde começa toda a gente» do universo fadista. Há menos de um ano publicou «Recados ao Fado», um livro onde reúne alguns dos mais de quinhentos fados que já escreveu, e preparar-se para uma nova colectânea, a editar em breve.

Autores – Como é que um alentejano da Vidigueira se torna um poeta do fado?

José Luís Gordo – Olhe, é o destino! Eu vim para Lisboa com 14 anos, trabalhar para a Casa Quintão, uma casa que existia no Chiado e vendia tapetes de Arraiolos. E estudava, à noite, na Escola Veiga Beirão. Depois, comecei a meter-me no fado. Mas no Alentejo eu já gostava de fado…

A – Aliás, há muitos alentejanos ligados ao fado. O que, aparentemente, contradiz a ideia de o fado ser uma canção de Lisboa…

JLG – O fado é uma canção nacional. E já pertence ao mundo: é a única canção que nós temos que é conhecida lá fora. De modo que, desde muito novo, o fado «prendeu-me» de uma maneira tão grande que fiquei sempre ligado a ele. Gostei do fado, gostei dos intérpretes, gostei da poesia do fado – que naquela altura era mais linear, mais simples, mais descritiva. Ia para A Viela, à noite, conheci os grandes autores – só não conheci o Linhares Barbosa porque já não fui a tempo – e comecei a ligar-me ao fado. Gostava do envolvimento, das pessoas… Eu era um miúdo, tinha 15-16 anos, ia para A Viela quando saía da Veiga Beirão, e ficava ali às vezes até às quatro da manhã. Depois ia-me deitar, às oito entrava para a loja, depois ia estudar – quando ia, faltava muitas vezes – e voltava para A Viela. Como é que um alentejano consegue ligar-se assim ao fado? O alentejano tem um espírito mais aberto, julgo eu. É fruto daquela planície, da paz que aquilo nos dá, da nostalgia, aqueles cheiros todos que o Alentejo tem, os cantos do Alentejo, todas aquelas aves, os sonhos…

A – E assim chegaste ao fado…

JLG – Foi assim que cheguei ao fado. Depois conheci o Ary dos Santos, o Vasco de Lima Couto, o Joaquim Pessoa, o Zé Jorge Letria, o Zé Manel Osório… Tudo isto na casa do Ary, com o Nuno Nazareth Fernandes, o Fernando Tordo, fazia-se ali uma tertúlia onde o Ary era a figura central. O Ary ensinou muitos poetas. Daquela casa, na Rua da Saudade, saíram bons poetas porque o Ary despertou também em nós o jeito e a vontade de escrever.

A – Há uma maneira específica de escrever para o fado?

JLG – O fado obriga a muita coisa: as tónicas certas, as quintilhas, as sílabas, os decassílabos, os alexandrinos, e por aí fora. Não é muito fácil escrever para o fado, porque no fado está quase tudo escrito. Para fazermos poemas novos para o fado é preciso ter uma imaginação muito fértil, é preciso ter uma noção das músicas – porque o fado utiliza ainda muito as músicas clássicas: fazem-se muitos fados novos, mas estão quase todos dentro da mesma toada, dependendo do intérprete.

A – O Ary dos Santos marcou-te muito?

JLG – Foi o meu mestre. Na maneira de estar, e também no fado: aquela força toda que ele tinha, aquele «vulcão»! As palavras, a forma de dizer… Era uma pessoa maravilhosa, um grande amigo. Conheci-o quando tinha 17 ou 18 anos, depois trabalhei com ele na publicidade – com ele e com o Alexandre O’Neill e o Jerónimo Bragança. O Ary foi o meu poeta de eleição. Ele e a Natália Correia.

A – Que era outro «vulcão»…

JLG – Era. Para mim, é das mulheres que melhor escreveu em Portugal, nesta última geração poética. Eu, na altura, não entendia muito bem a poesia dela, achava-a muito complicada, mas depois, à medida que fui aprendendo na universidade da vida, comecei a perceber. E comecei a gostar. Ela também ia muito à casa do Ary, que era uma pessoa que reunia as pessoas à volta dele. Isto antes do 25 de Abril. Depois começou a reunir outras pessoas, que se foram aproveitando dele, e cada um foi para seu lado, essas coisas das políticas… Telefonava-lhe de vez em quando, e tive uma grande pena quando ele morreu.

A – Pelo meio de tudo isso surge a Maria da Fé…

JLG – Pois. Casei-me com a Maria da Fé e mais ainda o fado entrou dentro de mim e eu dentro dele.

A – Se ela não tivesse existido na tua vida, achas que teria feito as mesmas coisas?

JLG – É uma pergunta pertinente. Por um lado acho que sim, porque gosto muito de fado. Mas a Maria foi a minha musa. Eu era um jovem de 19 anos, apaixonado por uma mulher que cantava lindamente, e portanto juntei o útil ao agradável. E, hoje em dia, ela ainda paira muito nos meus poemas. É a minha musa. E tem muita influência na minha maneira de escrever, penso muito nela quando escrevo.

A – E foi para ela que fizeste aquele que é talvez o teu fado mais conhecido: «Cantarei até que a voz me doa»…

JLG – É o meu «ex-libris». O Pedro Homem de Melo tem o «Povo que lavas no rio», eu tenho o «Até que a voz me doa». É um fado que tem tudo a ver com ela. Mas também tenho a «Senhora do Livramento», por exemplo, que até já entrou numa telenovela, tenho o «Portugal meu amor», isto falando de sucessos. Acho que sou dos autores de fados que têm mais coisa gravadas e mais conhecidas, ainda que as pessoas não saibam quem é o autor. Uma falha grave que há em Portugal é que as pessoas não conhecem os autores das músicas. As rádios preocupam-se em saber quem são os autores estrangeiros, mas dos «da casa» não sabem. Nós devíamos ser um pouco mais patrióticos, gostarmos mais de nós. Mas não gostamos, temos vergonha das nossas coisas, da nossa arte, da nossa cultura. Porquê? É um defeito que nós temos, não sei se é um complexo.

A – Apesar de todos os sucessos, nãos vive só disso…

JLG – Não, claro. Em Portugal, é impossível um autor viver só dos seus direitos. Se fosse na América, talvez, mas aqui não. Até porque não há uma fiscalização eficaz para a defesa do direito de autor, o próprio Estado está-se borrifando para isso. E a SPA, se calhar, não pode fazer mais. Ninguém paga nada, e nós somos altamente prejudicados. Fazemos isto porque gostamos, porque achamos que estamos a fazer bem a uma expressão cultural que é o fado, que não há em mais parte nenhuma do mundo. Por pura carolice. Claro que me dá gozo ouvir as minhas coisas cantadas, mas… Os pintores vendem a sua pintura, e os poetas o que é que vendem? Um livro de poesia de sucesso vende mil, dois mil exemplares!

A – Falando em livros: «Recados ao Fado» é o título do livro que publicaste recentemente, onde reúnes uma pequena parte dos muitos fados que escreveste. Como é que nasceu este projecto?

JLG – Isto surgiu de um amigo meu, o José Freitas – que foi jornalista e agora é editor – que gosta muito das minhas coisas. E uma vez começou a dizer-me que tínhamos de fazer um livro. Eu dizia-lhe que sim, qualquer dia… Só que sou muito disperso com os papéis, não tenho nada organizado. Até que um dia entreguei tudo ao Zé Manel Osório, e ele que sugeriu que incluísse trinta gravados pela Maria, mais trinta de outros intérpretes, outro tanto de inéditos, e mais trinta e tal poemas mais eruditos. E daí nasceu a coisa. Claro que já me chateei com o livro, que vinha cheio de gralhas… Mas fiquei contente com o lançamento, correu muito bem – apesar de não ter lá a Imprensa, que não liga muito a estas coisas – e parece que tem estado a vender bem. E agora estou a preparar outro, com mais uma série de poesia que anda espalhada por aí. Porque eu tenho muitos versos que dava a este e àquele, coisas que fazia nas mesas das casas de fado e entregava aos artistas e que agora tenho de reunir…

A – Mais fados?

JLG – Mais fados. A minha vida foi sempre toda à volta do fado. Não serei o português que mais gosta de fado, mas sou de certeza um dos que mais gostam. Embora não seja uma adepto de todos os intérpretes, daqueles que me preenchem sou fã incondicional. Dos intérpretes e dos guitarristas, que o fado sem guitarristas também não existe. Ou melhor: ele pode existir, mas já não é a mesma coisa, já não é uma canção livre. E o fado é uma canção livre, cada intérprete dá-lhe o seu estilo próprio, a guitarra e os violas acompanham os fadistas. Já se for com uma orquestra tem de ser o fadista a acompanhar a orquestra, não está tão à vontade. Porque o fadista é um criativo e o guitarrista é outro. Se forem criativos os dois, o resultado é bom. Porque o fado é como o jazz: tem de se criar naquele momento, não se toca com uma pauta à frente. Se não for assim é uma cassete. O fado é uma coisa quer nós temos de sentir, temos que dar e receber. E eu, claro, tenho os meus intérpretes, e é por eles que eu estou no fado.

A – O que dirias a um jovem autor que quisesse começar a escrever para fado?

JLG – Que dê as suas obras a quem as saiba interpretar, que as saiba entender. Porque há muito intérprete jovem que canta muita coisa, mas não sabe o que canta. E é importante entender aquilo que se canta, porque só assim se pode sentir aquilo que se canta. Os artistas são os nossos porta-vozes. Sem eles passamos a ser poetas de gaveta. Ou de prateleira. Mas há muitos que vêm para o fado e ao fim de dois ou três anos já pensam que sabem tudo, quando na maior parte das vezes não sabem nada. Para saber de fado é preciso andar cá muitos anos. Não basta ter uma boa voz. O fado é uma coisa que nasce com a gente: ou nascemos com o fado cá dentro, ou não. E é preciso ter humildade. Porque só com humildade é que se consegue chegar ao estrelato.

Um poeta do fado

José Luís Refachinho Gordo (Vila de Frades, Vidigueira, 1947) vive em Lisboa desde os 14 anos e fez os estudos secundários na Escola Veigão Beirão, mas a verdadeira formação teve-a nas casas de fado que começou a frequentar ainda adolescente. O gosto pelos ambientes fadistas levou-o, mais tarde, a gerir vários espaços do género, desde o «Solar da Hermínia» ao «Faia», passando pelo «Sr. Vinho», na Madragoa, à frente do qual se encontra há cerca de 30 anos.

No meio artístico começou por adoptar o nome de Luís Alcaria, por influência do seu amigo João Ferreira da Rosa, que acabou por optar pelo seu verdadeiro nome, em homenagem ao pai e por considerar que «nós temos de assumir aquilo que somos». Escreveu os primeiros textos influenciado pela mãe, «uma grande improvisadora dos cantos alentejanos» e aos 16 anos teve o seu primeiro poema cantado pela fadista Beatriz Ferreira. Chamava-se «Tudo na vida passou» e foi o primeiro de várias centenas que escreveu de então para cá e que foram cantados por intérpretes de diferentes estilos e gerações como Ada de Castro, Fernando Maurício, Celeste Rodrigues, Cristina Branco, Camaé, Mariza, Alexandra, Ana Moura, Ricardo Ribeiro, António Zambujo ou Tristão da Silva – além de Maria da Fé, com quem está casado desde os 19 anos e para quem criou alguns dos seus maiores êxitos, nomeadamente o já clássico «Cantarei até que a voz me doa».

Em 2004 publicou «Recados ao Fado», um livro onde reúne uma pequena parte dos muitos fados que já escreveu, e foi distinguido pela Fundação Amália como o Poeta do Fado do Ano. Em Junho deste ano foi homenageado na sua terra natal que quis deste modo «reconhecer um filho da terra que é hoje um dos poetas mais cantados e tem nas suas palavras os ecos da planura alentejana».

Revista Autores - Set. 2005