«Gosto de leitores exigentes»

«Gosto de leitores exigentes»

Mesmo que não tivesse escrito mais nada, um romance chegava para lhe garantir um lugar de destaque na Literatura do século XX. «O Que Diz Molero» é o título do livro, Dinis Machado o seu autor. Publicado pela primeira vez vai para trinta anos, a história narrada por Austin e Mister Deluxe tornou-se num êxito sem precedentes e modificou a vida do homem que a criou: de um dia para o outro, viu-se projectado para a primeira linha do reconhecimento do público, da crítica e, mais difícil ainda, dos seus pares. Tudo com uma história simples feita de muitas histórias.

Com duas dezenas de edições em Portugal, o livro alcançou ainda um sucesso retumbante em França e no Brasil, onde foi também adaptado para teatro (em cena durante mais de quatro anos), e vai ter em breve uma versão cinematográfica. Pequenas coisas que são suficientes para encher de satisfação Dinis Machado, que responde também pelo nome de Dennis McShade, autor de três policiais que fizeram história e de um quarto que será publicado no ano que vem, assinalando os 40 anos da criação de Peter Maynard, um assassino com preocupações filosóficas que alia a crueza de Dashiell Hammett com o cinismo de Raymond Chandler e a poesia de Charles Rimbaud.

Além disso, Dinis Machado tem, como diz, uma vida caótica. Feliz, apesar de tudo, ou por causa de tudo. Casou tarde e ficou viúvo cedo. Tem uma filha, Rita, por quem se meteu na pele de um escritor americano. E tem a Dulce, companheira e anjo-da-guarda, reduto quase final. E a vida toda, os caminhos por onde andou.
Este Verão, o pai de Molero e Maynard deixou-se registar para o Arquivo da Memória dos Autores Portugueses que a SPA está a organizar. Uma longa conversa onde o escritor desfia as recordações de 75 anos de encantos, desencantos e descobertas, de que aqui se deixam alguns fragmentos, na primeira pessoa do singular. Uma conversa re-criada, como se imagina, à maneira de Machado. Dinis.

Literatura

Para mim é muito fácil explicar, começar pelo princípio, porque o princípio tem que ver com as palavras, com a letra. Eu, a partir do momento em que comecei a ler, comecei a pensar em escrever, é uma coisa quase genética, que se me agarrou às fraldas. Toda a minha tentação na vida foi escrever sempre melhor. E mudar de terreno, fazer experimentações. Dizia-me uma senhora que esteve cá em casa, há pouco tempo, que a literatura é a grande novidade do homem porque permite escrever tudo sobre a Vida. E há várias formas de literatura, já se sabe. Eu tive essa preocupação.
Na literatura cabe tudo. E o aperfeiçoamento do trabalho permite que façamos melhor e possamos abrir caminhos. Depois comecei a perceber que podia ganhar a vida assim. Acabei por ganhar algum dinheiro do trabalho da escrita. E acabei por ter sorte: fui publicado, fui saudado, fui vilipendiado também, faz parte das regras do jogo. Foi assim que as coisas se passaram...

Infância

A minha infância foi magnífica. Foi na rua, está a ver? Saía de casa, a minha mãe depois batia-me porque chegava tarde, o meu pai às vezes ficava zangado. Eu andava na rua, com os outros miúdos. Ficou aquela nostalgia do tempo que já não volta. Nesse tempo não havia estas periferias, havia os sítios, e era aí que vivíamos. Os meus pais eram pessoas simples. A minha mãe cantava o fado muito bem, o meu pai era autor de fados. Foi ele que escreveu aquele fado muito famoso, «Bairro Alto aos seus amores tão dedicado», que depois foi publicado se calhar em nome de outro, estas coisas sempre se fizeram. Mas foi o meu pai que fez.

Bairro Alto

Vivi no Bairro Alto, na Rua do Norte, até aos 34 anos, quando me casei. Era um lugar extraordinário, que tinha um bocado de tudo: a ópera, o teatro, o cinema, os livros, as discussões nos cafés, a política, a música. Era uma coisa muito fervilhante. E eu cresci nesse ambiente, com uma costela política que nessa altura se chamava de esquerda, hoje já não sei como é que se chama. Chamava-se de esquerda porque tinha o desejo de combater as injustiças do mundo. Faz parte também da aceitação da vida a gente não recusar os combates que achamos que devemos fazer.
Até casar, vivi no Bairro Alto. Eu achava que já devia deixar de ser pesado aos meus pais, o meu pai e a minha mãe ajudaram-me muito, davam-me umas semanadas, porque eu ganhava pouco. Mas depois comecei a vender o trabalho que escrevia. Já ganhava para mim, e decidi arrumar a vida. Arrumava-se muito a vida, nessa altura, com o casamento. A tentação era para ser eterno, mas, claro, nunca se sabe se é. Nunca se soube.

Cinema e poesia

Parte da minha vida passei-a no Cinema Loreto, a ver filmes de aventuras. Às vezes íamos para lá quando o cinema abria e ficávamos lá até à meia-noite. Tenho uma tentação cinematográfica grande. Vem-me desse tempo, também, a leitura dos poetas. Eu adoro poesia, encheu-me muito a vida. Desde os Cantares de Amigo até à mais recente, li quase tudo o que apanhei. Foi no cinema que aprendi a falar inglês. O meu inglês é americano, dos filmes. Ouvíamos o gajo falar, «let’s get out of here», e aprendíamos inglês assim. A minha formação não foi académica, pelo contrário: eu na escola às vezes chumbava por faltas porque ia ao cinema ou ficava a ler poesia em vez de ir às aulas. E não passei nunca do que se chama agora 12º ano porque não queria, não me interessava. E eu sempre tive a tentação de subverter o que me rodeava. Fazia isso com muito prazer.


Record

Comecei a escrever no Record. O meu pai levou-me lá um texto, e o Fernando Ferreira, que era uma excelente pessoa, disse-me «Oh, Dinis, você é um excelente escritor, mas isto é um jornal para analfabetos. Eu vou publicá-lo porque gosto do texto, mas não me mande mais nenhum assim. Você, se quiser trabalhar para cá, vai fazer os jogos da primeira e da segunda divisão ao sábado e ao domingo, como toda a gente, mas com textos destes não.» Não sei o que é feito desse primeiro texto, desapareceu. Eu não guardo nada, se tenho alguma coisa guardada é a minha mulher que o faz. A minha vida é caótica à partida, e eu não quero organizá-la, deixo-a correr caótica. Mas lá fui para o Record, fartei-me de fazer jogos de futebol. Depois fui para o Diário Ilustrado e para o Diário de Lisboa, sempre a escrever sobre desporto. Mas, ao mesmo tempo, escrevia poesia, fazia textos para revistas da época, nunca me sujeitei a estar só na área do desporto.

Diário Ilustrado

Um dia, o Roussado Pinto, que era o director do Diário Ilustrado, chamou-me e disse-me que o jornal ia fechar. Tinham-lhe dado o prazo de um mês e uma determinada verba para ele fazer o jornal durante esse tempo. E ele propôs-me fazermos aquilo os dois: ele fazia um caderno, eu fazia o outro, e dividíamos o dinheiro pelos dois. Inventávamos histórias, inventámos coisas que não sabíamos se as pessoas iam perceber ou não. E no dia em que o jornal fechou, despedimo-nos à porta, e ele disse-me: «Agora espera pela minha chamada.» E quando me chamou foi para fazer a Rififi.

Rififi

Fui chamado para a Íbis pelo Roussado Pinto para dirigir a colecção Rififi, que era uma espécie de contraponto à Vampiro, mas muito mais desalinhada. Às vezes aparecia-me o restolho dos americanos, acho que cheguei a publicar o Dashiell Hammett e também o Raymond Chandler. E depois apareceram autores que eram considerados menores, como o Ross MacDonald ou o Frank Gruber, e que eu utilizava também como suportes do trabalho que eu queria fazer. Lia-os com o meu americano, sabia como é que diziam as coisas, aquela forma seca. A Censura fechava um bocado os olhos, achavam que aquilo não era importante. Não levavam a sério. Mas deviam. Foi o Chandler quem inventou o emblema do romance negro: triste, solitário e final, uma frase que mais tarde um gajo chamado Osvaldo Soriano recuperou e aproveitou para título dum romance.

Dennis McShade

Um dia, a minha filha estava para nascer, e eu precisava de vinte contos, fui falar com o Roussado Pinto. E ele disse: «Está bem, ganhas vinte contos, mas fazes três romances policiais com um nome americano, como eu faço.» E fiz três romances policiais num ano. E pensei: «Bom, já agora aproveito o gozo da subversão do romance negro.» Acho que fui um bocado subvertor nos romances policiais: é a mistura do investigador com o assassino, um intelectual. Tem um lado de paródia: colocar um intelectual em zonas esconsas da vida, a fazer aquele tipo de trabalho. Foram três livros que fizeram escola: as pessoas que perceberam o que eu queria fazer, perceberam que ali estava o veículo para uma nova literatura. E a Censura também deve ter percebido, porque ao terceiro livro apareceu-me lá um tipo a perguntar quem era aquele McShade. Acho que, em certos aspectos, fui inovador. Avancei para lados por onde as pessoas não andavam.

Roussado Pinto

O Roussado Pinto era um grande companheiro. Ele chegou a dizer-me: «Tu tens uma característica que é dares a tudo uma forma intelectual, mas é só para chatear esta malta toda. Eu acho que tu vais mais longe do que eu, nuns aspectos, e isso aproxima-nos e afasta-nos. E ainda bem que é assim.» Era um escritor esfusiante, excessivo, mais do que eu. Escrevia coisas que não estavam nos cânones. Há uma história dele com um pormenor que aparece mais tarde numa banda desenhada do Lucky Luke: dois tipos que disparam, as balas batem uma na outra, e nenhum deles é atingido. Tinha uma imaginação delirante, e com muita piada. O Roussado Pinto estava sempre falido porque se metia em aventuras onde perdia sempre dinheiro. Fez o Cuto, fez o Jornal do Incrível, metia-se num projecto e depois tinha que fazer outro para pagar o anterior.

Tintim

Quando a Íbis faliu, a Bertrand ficou com o projecto de edição da revista Tintim para Portugal, e eu fiquei lá. Durante 15 anos fiz o Tintim todas as semanas, e deu-me muito gozo, também. Aquilo não era bem o nosso delírio, era já dentro dos cânones da aceitação, mas com muita qualidade literária e gráfica. Era um trabalho esmerado. E publicávamos coisas de autores portugueses, também. Uma vez apareceu-me lá o [Fernando] Relvas, levava-me uma história, a ver se a publicava. Tinha piada, era um traço muito iconoclasta, e eu propôs-lhe publicar uma prancha todas as semanas. E assim foi. Mas também fazia muito trabalho fora do Tintim, editei muita coisa de autores que achava curiosos e que achava que tinham venda possível, e utilizei isso para publicar autores que se calhar não tinham entrado no nosso mercado se eu não pegasse neles. A questão é começar, sempre. Se for bom, há continuadores. E isso satisfez-me bastante, ajudar a divulgar vanguardas da banda desenhada e da literatura.

Molero

Quando apareci na Bertrand com «O Que Diz Molero», diz-me assim a Piedade: «Eu vou publicar este livro nem que seja despedida.» Porque o livro tinha aquela linguagem um bocado desbragada… O Molero era uma ideia que me vinha de trás. Estava eu a escrever os policiais e já queria fazer o Molero. Eu queria fazer um livro subvertor, um livro com uma linguagem própria desse livro. E foi assim que me saiu. E foi feliz, foi muito feliz. É um livro que tem a ver com a infância, com tudo. Quando o livro estava já em provas, apareceu lá um dia o Luiz Pacheco e disse com aquele ar dele: «Então o gajo do Tintim também escreve livros? Então vou levar para ler.» Levou as provas, e uns dias depois escreveu um artigo no Diário Popular a dizer «Descobri um autor.» Foi um sucesso. Agora está para sair a vigésima edição, há um grupo de «molerianos» que estão sempre a activar o livro.

Consagração

O êxito do livro surpreendeu-me. Eu achava que estava a inovar, mas não tenho a certeza, nunca se sabe. O texto foi apadrinhado pela chamada vanguarda da literatura, os elogios foram enormes. Invejas? Mais tarde é que comecei a sentir. Depois do êxito do livro é que começou uma espécie de reacção ao retardador, que é natural: as pessoas tentam recusar aquilo que aplaudiram. Ou há outros que estão, na sombra, e esperam para poder insultar o autor ou um livro. Mas eu não tenho razão de queixa. Os outros livros foram como que prolongamentos de «O Que Diz Molero». Eu sabia que não se pode repetir a mesma coisa, criar um êxito generoso duas ou três vezes seguidas. O «Reduto Quase Final» tem uma carga literária diferente, já não é a linguagem do Molero. A condição literária era mais sofisticada, talvez, mas não era tão forte. Sempre fugi à lógica da repetição da receita. Procurava novos caminhos, e depois tinha dificuldade de aceitação. Porque as pessoas queriam outro livro do mesmo género, as pessoas querem sempre aquilo de que gostam. O escritor tem outra missão diferente da do leitor: o escritor não faz só aquilo de que gosta, faz o que acha que deve fazer.

Vida

Recentemente, o Molero foi publicado em França, e as revistas de cultura de Paris, desde o Magazine Litteraire, ao Fígaro, vieram dizer que é «um dos grandes livros do século». E eu fiquei satisfeito com isso, naturalmente. Os franceses são muito renitentes lá com as coisas deles, mas também sabem descobrir os outros. Descobriram o Chandler, por exemplo. E tenho que reconhecer que eles foram muito generosos comigo. «O Que Diz Molero» tem uma história, inacabada ainda, que me dá para preencher a vida. E portanto é uma história que espero que não acabe nunca, que as gerações novas possam lidar com isso. O mundo de hoje é feito de coisas tão fragmentadas, com tão pouco sentido, que as coisas acabadas perdem validade com o tempo. Mas eu acho que há coisas que vão ficando, o que me satisfaz bastante. Porque há sempre leitores exigentes, e eu gosto de leitores exigentes. Eles é que fizeram o livro. Eu só o escrevi.

Revista Autores - Jul/Set 2006