Um músico sem complexos

Um músico sem complexos

Aos 37 anos de idade Bernardo Sassetti possui uma carreira invejável. Uma dezena de discos gravados em nome próprio e muitas participações em registos de alguns dos maiores nomes do Jazz da actualidade, com quem nos últimos vinte anos realizou concertos um pouco por todo o mundo, deram-lhe o estatuto de figura de topo no panorama artístico português.

A paixão pelo cinema levou-o a compor música para uma dúzia de filmes, tendo também participado na rodagem de "O Talentoso Mr. Ripley", de Anthony Minghella, ao lado de Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Jude Law e Cate Blanchett como membro do Guy Barker International Quintet - com quem gravou, também, um disco que teve Sting e a Royal Philharmonic Orchestra como convidados especiais. Chama-se Bernardo Sassetti e a música está-lhe nos genes, ou não fosse ele descendente da linhagem dos Sassetti, que fizeram história na edição discográfica, e de Luís de Freitas Branco, um dos mais celebrados autores clássicos portugueses.

- A celebrar 20 anos de uma carreira invejável, que balanço fazes da tua actividade?

- Muito positivo, na medida em que as aprendizagens dentro dos vários níveis da música são uma constante. O aspecto mais importante é, talvez, o da procura, cada vez maior, pelo risco ou pelo desconhecido. Acho que foram estes anos todos a girar um pouco por todo o mundo, muitas vezes ligado a outras artes, como o cinema, a fotografia... Dedico-me tanto à fotografia como à música.

- Já lá iremos...

- Portanto isto é uma procura constante e que não terá fim. Os primeiros dez anos de carreira profissional foram de aprendizagem, em que muitas vezes tinha de que estar em palco com músicos que praticamente não conhecia. Isto é uma espécie duma técnica profissional que se vai aprendendo com o tempo. Aprender, sobretudo com o erro, para mim é uma coisa muito importante. E, nesse sentido, esses primeiros dez anos foram fundamentais porque eu tive situações extremamente confrangedoras, em palco, com nomes como, por exemplo, o Art Farmer, um músico que me ensinou imenso, mas que era de uma exigência absoluta. Pequenas situações em que as coisas não corriam bem e que nós tinhamos de resolver no momento, o que às vezes é extremamente complicado.

- A música é quase uma inevitabilidade na tua vida, dada a "herança genética". Percebeste, desde sempre, que ias ser músico?

- A princípio tive uma relação extremamente difícil, não com a música, mas com o piano, o instrumento que, aos 11 anos, resolvi escolher - havia um em casa...Tive uma relação quase dolorosa com a aprendizagem da música clássica, e isso notou-se quando, um pouco mais tarde, tive aulas com António Menéres Barbosa, um professor que era também uma pessoa de uma exigência à qual eu não estava habituado. Mas foi exactamente a partir daí que percebi o que era a interpretação musical, foi ele que me ensinou que, por muito boa que seja a obra escrita, o que realmente sobressai é a individualidade da interpretação. E foi também com António Menéres Barbosa, e em conjunto com ele, que eu decidi que não era aquela música que eu queria fazer. Porque eu chegava a casa com as partituras e começava a improvisar sobre elas. Decidi então fazer outra música, graças a uma relação muito frutífera com os irmãos Moreira e com o pai, Bernardo Moreira - uma das pessoas que me deu as principais luzes sobre o Jazz.

- É aí que o Jazz entra na tua vida?

- Sim. Comecei a ficar fascinado desde que vi o Bill Evans num concerto que deu na Televisão, creio que no Jazz Magazine, na RTP2. E já nessa altura, ainda com o Menéres Barbosa, eu disse: "É isto que quero fazer". Aquele sentido de liberdade que sobressai da sua música... E na altura não sabia o que era o Jazz, e até me sentia afastado daquele tipo de linguagem. Mas o Bill Evans sempre foi uma ponte fundamental entre a música clássica e o Jazz.

- Não demoraste muito tempo a ocupar um lugar na "família" do Jazz. O Luís Villas-Boas falou-me, entusiasmado, de "um puto novo que toca muito bem". Foi uma ascensão rápida...

- A minha dedicação era de tal maneira que eu só estudava, não fazia absolutamente mais nada! Era uma entrega total à música. Eu lembro-me que, quando estava a fazer a escola secundária, quase que me isolava, tinha sempre o meu walkman com Duke Ellington, Thelonious Monk, coisa que me afastava um pouco dos meus colegas, com excepção de um ou dois que me compreendiam. Mas era fundamental. Como se sabe, a música acompanha as novas gerações da escola, e há as músicas do momento, mas eu estava completamente à parte disso. Não por ser especial, mas porque tinha um gosto diferente. O meu prazer absoluto, desde aquele concerto do Bill Evans, foi aprender o máximo possível sobre Jazz e linguagem do Jazz, o que está nas entrelinhas, que é a coisa mais importante: como é que esta música se reproduz, o que é essa ideia um pouco abstracta do swing. E depois, quando comecei a aparecer tinha 16 anos, dei o meu primeiro concerto como profissional aos 17 – numa primeira parte de um concerto do John McLaughlin, no Pavilhão do Belenenses.

- Eu estive lá.

- Tinha 17 anos, parecia que tinha 15, e as pessoas têm sempre isso em consideração, sobretudo a tocar aquela música que parecia um pouco estranha. Não para a "família" do Jazz, claro, com quem tinha uma relação fortíssima. Eu tive um amigo muito especial, o Duarte Mendonça, que me recebeu de braços abertos e com quem eu partilhava o gosto pelo Jazz. Ia semanalmente a casa dele, onde podia ir gravar discos, o que me ajudava a ganhar repertório. E depois, naturalmente, houve a relação com o Villas-Boas, uma coisa absolutamente inesquecível. E no princípio da minha adolescência, a relação com a Família Moreira, que aliás são meus primos.

- Isso não sabia...

- E eu não os conhecia. Só vim a conhecer porque a minha mãe uma vez me disse: "Olha, já que estás tão entusiasmado com isso, eu tenho um primo que sabe muito de Jazz". Era o Bernardo Moreira. Passámos a adolescência juntos como irmãos.

- Outra das tuas grandes paixões, já o disseste, é o cinema...

- Desde os doze anos, quando assisti ao primeiro - e único - grande ciclo sobre o Hitchcock, no Palácio Foz, na Cinemateca e na Fundação Gulbenkian. Passaram 52 filmes dele, e eu assisti a todos menos ao "Psico", que os meus pais não me deixaram ver. Era como se uma parte do meu cérebro funcionasse para o cinema - eu fartava-me de preencher ficheiros, que fazia à máquina, sobre os filmes - enquanto a outra parte funcionava para a música. E o engraçado é que, dezassete anos mais tarde, as duas coisas juntaram-se.

- E como é que começaste a fazer música para cinema?

- Foi com um convite da Cinemateca para acompanhar filmes mudos, como se fazia nos primórdios do cinema. Coisas do Murnau, filmes russos de que eu nem me lembro os nomes, as primeiras curtas-metragens do cinema. A partir daí surgiu o convite para escrever uma suite orquestral para a "Maria do Mar", e fiquei encantado com a ideia. E mais tarde, em 2002, nasceu a relação com o Paulo Branco e com o José Álvaro Morais, de quem eu tenho muitas saudades e me ensinou imenso sem me dizer nada. Numa altura em que eu parei de gravar em nome próprio - nessa altura só tinha dois discos gravados - foi a partir daí que comecei a perceber realmente qual era o meu objectivo musical, como intérprete e como compositor. Sobretudo, uma coisa muito importante, que é a relação com alguns músicos, que foram crescendo comigo, como é o caso do meu trio, com o Carlos Barretto e o Alexandre Frazão - que este ano celebra dez anos de existência.

- O que também não é muito comum, uma formação musical na área do Jazz manter-se durante tanto tempo...

- Não. A ideia é que cada um de nós vai evoluindo musicalmente, e isso contribui para a evolução do trio. É muito curioso ver as diferenças entre o trio de há dez anos e o de agora. Hoje a música soa muito mais livre. E é um acto muito mais contido de expressão musical, que é aquilo que, no fundo, procuro. Muito mais do que a linguagem do Jazz norte-americano, que me trouxe este prazer de ser músico. Agora já é outra coisa, mas eu sei que, neste momento, muitas das pessoas que fazem parte da família do Jazz têm uma certa pena que eu me tenha afastado da tradição negra norte-americana. E isso é perfeitamente legítimo. Mas eu sempre senti que aquela, realmente, não era a minha música, não era o ar que eu respiro. Percebo perfeitamente que haja uma reacção, mas a única explicação que eu tenho para isso é que me liguei muito à música em relação com outras artes. E ajudou-me muito este lado da colaboração com realizadores, porque no fundo foram as únicas pessoas com quem me relacionei que tinham alguma coisa para me dizer. Até essa altura a música não era discutida, era apenas tocada. Sinto que há uma diferença radical de 2002 para cá, a minha música está muito diferente. Para mim, ainda bem.

- E a fotografia, como é que surge essa outra paixão?

- A fotografia nasce da minha relação com o meu pai, que foi sempre uma pessoa fundamental no ensinamento das artes. Ele começou por me incutir o gosto pela música clássica passando-me partituras para a mão e pondo o disco referente a essas partituras. Mozart e Bach, sobretudo. Mais tarde comecei a vasculhar uma série de fotografias e memórias do meu pai, e descobri que ele se dedicava muito seriamente à fotografia. Foi a partir daí, em 1993, quando comprei a minha primeira câmara, que começámos a fotografar e a ver coisas em conjunto. Ele explicava-me como é que aquilo funcionava, as questões da luz, tudo isso. E, sobretudo desde a minha ligação ao cinema, a fotografia é uma coisa que nunca me larga. Ainda fotografo em filme, porque gosto, e sobretudo a preto e branco. Posso dizer que a música e a fotografia fazem, com igual peso, parte da minha vida.

- No fundo são duas maneiras de retratar a própria vida, não é?

- Exactamente. A arte visual e a arte auditiva, as ligações que há entre uma e a outra. É isso que eu gosto muito de fazer, e os meus últimos discos são disso exemplo.

- O processo criativo é doloroso?

- Depende do projecto. A música, tal como gosto de a fazer, é um acto quase totalmente intuitivo. Mas, quando se trata de escrever música de uma forma mais académica, mais racional - como é o caso da música orquestral - aí o processo é mais pensado, mais cerebral.

- Consideras-te mais instrumentista ou mais compositor?

- Mais instrumentista e, sobretudo, mais compositor-intérprete. Acho que existem compositores a mais, ou pelo menos pessoas que se consideram compositores e são indicadas como tal. É preciso ter um certo cuidado com esta noção. Eu considero-me um compositor com "c" pequeno. Quando olho para a partitura da "Sagração da Primavera" acho que fico esclarecido: o Stravinsky é um compositor. O Bach, o Mozart, o Schubert são compositores. O Luís Tinoco é um compositor. Eu escrevo temas. A composição tem muito que se lhe diga, é uma arte para poucos. Eu, mesmo escrevendo para orquestra, faço música quase como se estivesse a tocar piano. E digo isto sem qualquer complexo.

- O que é que esperas para os próximos vinte anos?

- Quero cada vez mais que a minha música esteja ligada a outras formas de arte, sobretudo a imagem.

- Portanto vais continuar a escrever para cinema?

- Sem dúvida.

- Onde aliás também já te "internacionalizaste", nomeadamente com a participação n' "O Talentoso Mr. Ripley"...

- Isso foi uma experiência fantástica. Aliás, foram todas fantásticas, desde o José Álvaro Morais até ao "Alice". O que eu quero é escrever música sem qualquer tipo de complexos, que é uma coisa que existe muito no Jazz. E é isso que eu estou interessado em fazer cada vez mais: encontrar dentro da imagem uma música que seja a mais apropriada. Isso estuda-se, eu estudo isso diariamente. Uma simples melodia como aconteceu no "Alice" foi um trabalho de cinco meses. E é uma melodia muito simples, a que fui retirando tudo o que era superficial. E quero trabalhar cada vez menos em muitas coisas ao mesmo tempo, porque senão acho que dou em louco. Isso aconteceu o ano passado e no anterior e é uma coisa que eu sei que não vai voltar a acontecer na minha vida. Porque não é possível trabalhar tanto em coisas tão diferentes. Até porque agora tenho família e isso é seguramente a coisa mais importante da minha vida. E é uma inspiração constante para o trabalho. Perceber cada vez mais que tem de existir uma gestão do tempo, coisa que eu nunca soube o que era.

- Podemos então ter a certeza de que vais continuar a ser um músico sem complexos?

- Ah, sim. Aqueles rótulos que se colocam, o músico de Jazz que agora toca uma música diferente, essas coisas... Que se lixe isso tudo, é apenas música! É apenas música e esta nossa passagem pela vida também é pequenina.

Revista Autores - Jul/Set 2007