Nasceu na ilha de São Vicente, em Cabo Verde, no ano de 1975, pouco tempo antes da independência. Filho da cantora Ana Firmino, desde muito novo que se acostumou a conviver com a música. E, ao chegar à adolescência, influenciado pela cultura rhythm and poetry que começava a espalhar-se pelo mundo, achou que esse era o seu caminho. Gravou as primeiras canções em meados dos anos 90, numa compilação que fez história, a que se seguiram os álbuns Mandachuva, Rimar contra a Maré e Ritmo, Amor e Palavras. Hoje é um rapper de primeira linha, e em 25 de Outubro passado recebeu o Prémio Jovens Autores que lhe foi atribuído pela SPA. Chama-se Ângelo César, mas toda a gente o conhece por Boss AC.
Autores – Que papel teve o ambiente familiar na tua opção artística?
Boss AC – Para mim, lidar com a música e com os músicos foi sempre uma coisa natural. A minha mãe levava-me para os ensaios e para os lugares onde se juntavam os músicos, portanto isso para mim foi sempre uma coisa muito natural. Não quero dizer com isto que, na altura, pensasse que iria enveredar pela música. As coisas proporcionaram-se, aconteceram, mas na altura não pensava nisso…
A – E acabaste por enveredar por um caminho que, se calhar, não seria aquele que se esperava do filho de uma cantora de música tradicional…
AC – Eu vivi a minha vida toda em Lisboa, é natural que assim seja. Até porque não seria muito comum que um puto de 16, 17 anos, cujos amigos também só ouviam música moderna ocidental, de repente se virasse para a morna. Não é que não pudesse fazê-lo, mas seria algo mais raro do que ter-me virado para esta cultura urbana. Nós éramos miúdos de rua, não no sentido de não ter casa, mas porque passávamos o tempo todo na rua. Nessa altura já não era a brincar, mas tínhamos os grupos de amigos, passávamos a noite toda a falar, a ouvir música. A incomodar os vizinhos, basicamente…
A – Em todo o caso, qual é a tua relação com a música tradicional de Cabo Verde?
AC – Numa primeira fase, na minha infância, houve uma altura que eu achava que não gostava. Eu tinha de ouvir música cabo-verdiana quase por obrigação, estava rodeado por ela. Mas conforme fui ficando mais velho e me fui descobrindo, e à minha cabo-verdianidade, o meu gosto pela música tradicional foi crescendo. E quem sabe um dia não farei qualquer coisa por aí… De certa forma ainda tenho de me libertar, perder um bocado a vergonha, ainda me sinto embaraçado. Como sabe, a música cabo-verdiana é toda muito informal: os músicos juntam-se, um toca uma coisa, depois vem outro, até nos concertos muitas vezes é assim. E ainda não estou apto para isso… Mas gosto, consumo bastante, e de certa forma tento incorporar, mesmo que nem sempre de uma forma explícita, elementos da música cabo-verdiana naquilo que faço.
A – E em relação à música portuguesa?
AC – Eu tento sempre fugir aos rótulos. Do que eu gosto é de música, ponto. E a música boa (ou o que eu considero música boa, que isso é sempre uma coisa subjectiva), seja portuguesa, francesa, brasileira, para mim é sempre válida. No caso específico do hip-hop e do rap, em que se utilizam bastante as técnicas de sampling, a música faz-se muito de aproveitar trechos de músicas já gravadas e “reciclá-las”, por assim dizer. Isto começou com os americanos, que foram buscar coisas antigas do James Brown, de funk, dos Sly & The Family Stone… Basicamente era apanhar os break beats, aquelas partes em que a banda está a fazer uma volta e não há voz, pôr aquilo em loop e fazer uma música por cima. Eu tento fazer isso, também, mas cada vez mais com música lusófona. Já o fiz com música africana, de Cesária Évora, do Waldemar Bastos, fi-lo no último álbum com um tema dos Madredeus, já samplei coisas de Tony de Matos, tenho uma coisa samplada de Vitorino… O que nós temos de fazer para nos demarcarmos do que se faz lá fora é exactamente isso, é pôr as nossas influências, a nossa música, as nossas raízes – e obviamente a nossa língua.
A – Explica-nos lá o teu nome artístico. O AC, eu percebo. E o Boss, de onde é que vem?
AC – O Boss é uma história antiga. Se eu soubesse que as coisas iam tomar esta dimensão, nunca teria adoptado este nome – até porque não foi um nome propriamente escolhido por mim. Os rappers têm sempre o seu pseudónimo, e eu já me chamava a mim próprio AC – que, para além de serem as minhas iniciais, na altura até tinha um outro significado que era, confesso, um pouco piroso e que eu não vou aqui revelar. E tinha um grupo de amigos de que eu era uma espécie de porta-voz – era quase o líder, ainda que não de uma forma declarada – e que começaram a chamar-me boss. As coisas foram andando, nada disto aconteceu duma forma planeada, e pegou, fiquei o Boss AC. Mas, como eu dizia, se eu soubesse, não tinha adoptado este nome. Porque eu não gosto que me chamem boss, nunca gostei. Inclusive, já pensei em retirar mesmo o Boss do meu nome, mas se calhar é complicado, nesta altura, às tantas ainda vai soar um bocado a Prince, “The Artist Formerly Nnown As”, mas não gosto mesmo nada que me chamem Boss…
A – Em meados dos anos 90 aconteceu a tua primeira participação em disco…
AC – Sim, no Rapública. Saiu em 94, embora tenha sido gravado em 93.
A – Depois dessa compilação, as coisas evoluíram com alguma rapidez, e em 96 fizeste uma coisa que ainda hoje, se calhar, ainda há quem não lhe perdoe: a música para a primeira campanha presidencial de Cavaco Silva. Qual foi a motivação?
AC – A motivação é simples: era trabalho, fui pago para fazer isso. Não reflectia as minhas preferências políticas, e não me senti mal porque fiz um tema para o outro lado, também. Não fiz apanágio disso, mas assim sendo está contrabalançado, as pessoas agora que tirem as suas conclusões…
A – E na altura do voto? Atiraste uma moeda ao ar?
AC – São duas coisas diferentes. Uma coisa é vestir a camisola e outra é um trabalho que me é pedido. Na altura, a pessoa que me contactou disse-me que era para fazer uma música para um jingle publicitário. Depois é que me disseram o que é que era, já estava tudo acordado, e eu fiz a música. Também sou eleitor, portanto o meu voto é secreto – e faço questão que o seja – e por isso… Mas é uma coisa que não teve grande importância, foi um episódio em que nunca mais pensei.
A – O rap é uma música que muitos classificam hoje como “de intervenção”. Para ti também funciona assim?
AC – Sem dúvida. Eu faço-o de uma forma natural, não é uma coisa forçada. É verdade que o rap – e o hip-hop, enquanto cultura de que faz parte essa faceta da música – tem um lado de intervenção. O que também acontece, e eu noto isso da parte de alguns grupos mais novos, é que muitas vezes querem ter essa atitude do “estamos chateados”, mas depois nem sabem muito bem porquê. E é isso que eu não faço. Não vou estar a falar mal da polícia ou do governo se eu não achar que há razões para o fazer. E por ser o hip-hop uma forma de expressão tão directa – eu quando quero dizer que uma mesa é quadrada digo que a mesa é quadrada, não o faço de um modo abstracto – eu obviamente falo das coisas que me rodeiam, dos problemas que me apoquentam, como, eventualmente, o fará um autor de rock ou de fado, ainda que talvez de uma forma menos directa. Mas, embora tenha um lado de intervenção, não me quero rotular só com isso. O que eu quero é deixar uma mensagem em todas as minhas músicas, que pode não ser necessariamente de cariz social. Uma coisa que ainda é tabu no hip-hop é a questão de falar do amor. É sempre visto como sendo uma atitude comercial, feita para agradar…
A – Porquê? Sendo o rap uma forma de expressão que fala das coisas da vida e sendo o amor uma parte integrante e fundamental das nossas vidas, isso não faz muito sentido…
AC – Alguém convencionou que não se fala de amor no rap. Porquê? Porque “é comercial”, porque “desvirtua”, o que é um perfeito disparate. Vamos por partes: o que é que é “ser-se comercial”? É eu querer vender a minha música? Então somos todos comerciais… Estou cem por cento convicto de que dei tudo o que tinha mas minhas músicas. Se elas venderem, tanto melhor, porque é isso que querem todos os que fazem música. Eu tive muitas discussões sobre isso, até porque, nesse sentido, no hip-hop as coisas conseguem ainda ser piores do que noutros estilos. Uma banda de rock de garagem que, um dia, comece a ter sucesso começa logo a ser apelidada de “comercial” e a ser olhada com desconfiança. No hip-hop passa-se o mesmo, mas como a linguagem é mais directa e podemos falar uns dos outros nas músicas que fazemos, as coisas têm mais visibilidade. Mas é um disparate. Eu dou um exemplo: uma vez alguém me disse que eu devia era ser um músico underground como os Wu-Tang Clan. Ora os Wu-Tang Clan foram uma das bandas de maior sucesso no final dos anos 90, que vendeu três ou quatro milhões de álbuns. Eram oito ou nove MC’s, cada um deles fez álbuns a solo que também venderam perto desses números, tinham uma marca de roupa e outra de sapatos… E esse é que é o exemplo de uma banda não-comercial?
A – Nas tuas músicas, não tens esse tabu do hip-hop relativamente aos temas de amor…
AC – Eu mantive-me igual ao longo dos tempos. As pessoas estão no seu direito de gostar ou não gostar, mas não me podem acusar de ser incoerente. E se há uma coisa que posso garantir – sempre com a noção de que as pessoas crescem e mudam, e ainda bem que assim é – é que eu olho para trás e acho que faria tudo igual. Porque foi sincero. E assim sendo, tudo o que forem críticas não construtivas e sem fundamento passam-me completamente ao lado. Mas a forma como às vezes algumas pessoas me catalogam é uma coisa que me entristece. Por exemplo: uma das músicas que mais sucesso teve no meu último álbum chama-se Princesa, é uma música que fala dum amor incondicional, e muita gente se insurge (mas, se calhar, quando estão com as namoradas em casa é a música que ouvem…), mas eu há quinze anos já fazia esse tipo de música. Nunca neguei esse meu lado, do mesmo modo que, a seguir, sou capaz de fazer uma música sobre a instabilidade social. Mas há logo quem pense que o Princesa foi um tema pensado para “bater certo”, e não foi…
A – O que, se dúvida, “bateu certo” foi a tua carreira. E é inevitável falarmos do Prémio Jovens Autores que a SPA te atribuiu. Surpreendeu-te teres sido escolhido?
AC – Sim, foi uma óptima surpresa. Não estava nada à espera, fiquei mesmo muito contente. Já fui nomeado para algumas coisas, já ganhei outras, poucas, mas este prémio teve um gosto muito especial, porque fui escolhido pelos meus pares. Fui nomeado, por exemplo, para o Portuguese Act dos MTV Awards e, obviamente, se o ganhasse ficaria muito satisfeito. Mas tenho a noção de que esse prémio é uma coisa determinada pelo sucesso que um artista tem no momento. Neste caso específico do prémio da SPA é um prémio que não tem a ver com o sucesso de um determinado álbum, mas é um reconhecimento da obra por parte dos Autores. Ainda por cima sabendo que o rap não seria, à partida, um candidato óbvio. Para mim, que tenho feito um esforço para dignificar esta forma de arte e as pessoas perceberem que isto tem pernas para andar, foi uma satisfação muito grande.
A – Sentes que se trata de um incentivo para ir em frente?
AC – Sem dúvida. Mostra que há pessoas atentas…
A – Os cotas, neste caso…
AC – Os cotas e não só. Uma das coisas que me irrita é quase sempre conotarem a música que eu faço com os mais novos, como se eu estivesse a escrever para os putos. Também estou, mas não só. Eu escrevo para as pessoas. Quando estou a falar de questões sociais, dos problemas para pagar a renda, duvido que um miúdo de dez anos entenda o que estou a dizer. Mas o pai entende, de certeza.
Revista Autores - Out / Dez 2007