Tinha o sonho de ser fotógrafo, mas foi na música que alcançou o êxito, ao liderar a banda portuguesa mais bem sucedida do final do século XX, os Silence 4. Nasceu em Leiria há 34 anos e hoje diz que já não conseguia viver longe da música. Chama-se David Fonseca, adora gatos e acaba de publicar o terceiro disco a solo.
Autores – No princípio eram os Silence 4. A tua história podia começar assim. Como é que nasceu esse projecto?
David Fonseca – Os Silence 4 nasceram de uma vontade minha de querer juntar uma banda, por volta de finais de 1995. Eu tinha umas músicas, era um autodidacta, já há uns anos. Tinha estado durante uns tempos em Lisboa, a estudar nas Belas Artes, mas depois desisti, a meio do segundo ano, e voltei para Leiria. Estive ali durante uns seis meses em que não tinha nada para fazer, estava à espera do fim do ano para concorrer à Escola de Cinema, e foi durante esse tempo que tentei formar a banda, o que acabou por acontecer só em finais do ano de 95. Mas confesso que a ideia de formar a banda não tinha nenhum objectivo profissional: a ideia não era fazer discos, nem digressões, era mais como uma ocupação de tempos livres, onde as pessoas se pudessem reunir aos fim-de-semana, fazer um pouco de música e ter uma ocupação diferente das coisas do dia-a-dia. Eu já tocava com o Tó Zé [Pedrosa] há uns meses, porque ele tinha uma garagem e tinha uma bateria. Tocávamos muito rock, nem sequer eram coisas originais, estávamos só a divertir-nos. E depois comecei a meter uma ou duas canções minhas, até que eu pus na cabeça que podíamos formar uma banda…
A – Eram todos estudantes, na altura…
DF – Sim, à excepção do Rui Costa, que já era músico profissional. Não conhecia a Sofia [Lisboa], tinha-a ouvido a cantar numa esplanada e achei que ela tinha uma voz interessante para fazer comigo uma espécie de dueto sistemático na banda. Ao Rui também conhecia vagamente, sabia que ele era muito bom baixista e, como nenhum de nós era músico profissional, achei que devíamos ter pelo menos um músico que fosse melhor, musical e tecnicamente. E foi assim que se formou o grupo, de uma forma muito inocente. Nunca houve grandes objectivos, teve muito mais a ver com o acto de fazer alguma coisa do que de querer chegar a algum lado. Depois começámos a gostar muito de fazer aquilo e, passados uns cinco ou seis meses, fizemos um concerto de apresentação, basicamente para amigos, num sítio muito pequeno, o Orfeon de Leiria. Tocámos quase três horas, eles tiveram uma grande paciência… Mas depois disso tocámos muito pouco. Acho que, antes de termos assinado com a Universal, devemos ter tocado só umas dez vezes ao vivo, se tanto. Era um projecto de fins-de-semana, gravávamos maquetes, tocávamos aqui e ali quando tínhamos oportunidade e tempo. Foi assim durante três anos, entre 95 e 98.
A – Como é que chegam à gravação?
DF – Quando fizemos os primeiros concertos, comecei a achar que gostaria de gravar um disco. Mas, mais uma vez, não porque pensasse que aquilo tinha qualquer hipótese de sucesso, até porque o que nos dizia a história da música portuguesa é que nenhuma banda a cantar em inglês teria algum tipo de êxito. Nós achávamos que a nossa condição era sermos uma banda alternativa, mas ainda assim acalentávamos a ideia de gravar um disco. E durante esses três anos procurei muito fazê-lo, enviando maquetes quer para as editoras independentes quer para as maiores. Acho que só uma é que respondeu, a EMI, as outras ignoraram-nos por completo…
A – O velho hábito português de ninguém responder a ninguém…
DF – É. Mas a EMI respondeu-nos. Lembro-me que fiquei muito contente. Diziam que não estavam interessados, mas pelo menos aquilo tinha chegado a alguém. As coisas só mudam quando nos convidaram para gravar um tema numa colectânea chamada Sons de Todas as Cores, de combate ao racismo e à indiferença social. E nós aceitámos porque, para além da causa que estava implícita, era a nossa oportunidade de, pela primeira vez, entrar num estúdio. Gravámos aquilo que achámos que podia ser uma música engraçada para nos apresentar ao público, uma versão, que era muito diferente do original, do Little Respect dos Erasure. Do que não estávamos à espera é que aquela fosse a canção escolhida para representar o disco nas várias rádios. E chegou ao top da Antena 3. Isso impressionou-me muito e também impressionou a Universal, que estava a distribuir o disco.
A – E nessa altura a Universal decide contratar-vos...
DF – Sim. Foi tomada como uma banda de risco, daquelas que nunca iriam vender muitos discos. Assinámos pela Universal em Dezembro de 97 e combinámos fazer um disco para 98. Quando precisámos de escolher um produtor, o Rui sugeriu o Mário Barreiros, mandámos-lhe a maquete, ele adorou e aceitou imediatamente ser o nosso produtor, o que nos deixou muito contentes. E tínhamos toda a liberdade por parte da editora porque, lá está, como éramos uma banda de risco não nos era imposta nenhuma estratégia porque também não era esperado de nós grande resultado comercial...
A – Tudo o que viesse era lucro...
DF – Exactamente. Lembro-me que a única coisa que nos pediram foi para incluirmos três canções em português. Eles queriam muito que nós cantássemos em português, mas eu disse-lhes que isso era impossível, que éramos uma banda que cantava em inglês. Mas eles insistiram. E eu disse que podia tentar fazer uma e que convidava o Sérgio Godinho para fazer a letra para outra, e se ele aceitasse ficávamos com duas. A Universal aceitou, e assim foi. Eu fiz o Eu Não Sei Dizer e o Sérgio fez a letra para uma música do Rui, que foi o Sextos Sentidos.
A – Como é que vocês convenceram o Sérgio a entrar nisto?
DF – Ele foi tocar uma vez a Leiria e nós levamos-lhe o tema. Explicámos que éramos uma banda nova, que íamos gravar com o Mário, ele ouviu a música e gostou. E um dia telefonou a dizer que já tinha uma ideia para uma letra, eu vim a Lisboa, fui a casa dele, e pronto. Foi muito bom. Pode-se imaginar que, para uma banda recém-iniciada, ter um disco de estreia com a participação de um dos maiores cantautores portugueses vivos foi uma coisa para nós perfeitamente incrível. Ainda por cima era um cantautor de língua portuguesa e que não tinha o preconceito de estar ali a cantar uma canção connosco, que éramos uma banda que essencialmente cantava em inglês.
A – E de repente vocês tornam-se no grande sucesso de 98.
DF – O que aconteceu com os Silence 4 não foi bem um sucesso, foi um fenómeno. Para já, os números eram completamente diferentes, é impossível atingir hoje as vendas de discos dessa altura. Estamos a falar de uma banda que lança um disco em finais de Maio e que em Dezembro tem 120 mil discos vendidos e esgota o Pavilhão Atlântico! E em 99 vendemos mais outros 120 mil discos, o que fez com que aquilo que era um sucesso se tornasse num fenómeno em larga escala. Para uma banda que nem sequer alguma vez pensou vender muitos discos, foi uma grande surpresa…
A – Como é que se explica esse fenómeno?
DF – É muito difícil explicar tudo aquilo. Eu acho que, em primeiro lugar, foram as canções que impressionaram as pessoas. Penso que teve muito a ver com isso e por ser um tipo de som muito pouco explorado em Portugal. Era um som muito acústico, muito simples, que não tinha grandes “folclores” em volta. E a outra novidade prendia-se também com o facto de cantarmos em inglês, de uma forma um bocado simples, um estilo de canções que tanto podiam agradar a um amante da música folk como a um amante da música dos Abba, por exemplo. Depois, a forma como nós nos apresentávamos também era muito diferente daquilo que se vivia: tínhamos acabado de vir do fenómeno Abrunhosa, onde havia um pouco a ideia do star-system, e os Silence 4 eram quase o oposto disso, eram o vizinho do lado que faz canções e agora está aqui a tocar. Nós simbolizávamos a ideia do sonho tornado realidade e acho que isso encantou um bocado as pessoas.
A – A seguir fizeram outro disco, e depois pararam. O projecto acabou ou entrou em hibernação?
DF – Fizemos um álbum novo em 2000 e uma nova digressão em 2001. Ora a ideia inicial era fazermos um disco, tocarmos de vez em quando, termos cada um a nossa vida. E o que aconteceu foi que a nossa vida passou a ser os Silence 4. Durante esse tempo nunca parámos, estivemos sempre na estrada ou em estúdio. O que nos fez mal, porque a certa altura, em 2001, começou a haver uma saturação do projecto por parte de todos os elementos da banda. E então decidimos hibernar o projecto. Eu fui dos quiseram fazê-lo de uma forma mais determinante porque fazia muitas coisas na banda e queria de facto estar longe – não longe dos Silence 4, mas longe do universo da música em geral. E, entre 2001 e 2002, durante um ano inteiro, eu não peguei uma única vez na guitarra. Tinha outras ambições, tinha tirado o meu curso de cinema, queria fazer coisas na área da imagem, e estava saturadíssimo de estar a fazer música. Até que um dia olhei para a guitarra e apeteceu-me fazer músicas outra vez, como fazia antigamente. Mas as coisas que surgiam eram diferentes, não eram bem dentro do universo dos Silence 4. Passados uns meses, mostrei as canções a uns amigos e eles começaram a espicaçar-me, a dizer que eu devia mostrar aquilo ao Mário, mais uma vez. E foi o que eu fiz. Fui ao Porto, mostrei-lhe as maquetes e perguntei-lhe o que é que havia de fazer com aquilo. Três dias depois telefonou-me e passados 15 dias estávamos no estúdio a gravar. Foi tudo assim muito em cima do joelho. Eu não tinha ambições de ter uma carreira a solo, mas o disco teve um impacto muito maior do que eu pensava. Sempre achei que os side projects são uma coisa mais experimental…
A – Além disso, os Silence 4 tinham um som muito característico, havia uma grande harmonia vocal entre ti e a Sofia. Isso poderia dar origem a uma comparação semelhante ao que aconteceu com o Simon & Garfunkel, por exemplo, dois grandes intérpretes que funcionavam bem sobretudo em conjunto. Não tiveste esse receio?
DF – Confesso que não pensei muito nisso, porque achei que o essencial para mim era fazer aquilo que me apetecia. Foi isso que motivou a minha carreira toda, e ainda hoje é. Porque, como ser músico foi uma coisa que aconteceu na minha vida, eu achei que, se tinha sorte de poder fazer isto como uma coisa diferente, então que o fizesse pelas razões certas, não a pensar no êxito que poderia ter. Então fizemos o disco – gravei-o sozinho com o Mário, tocámos os instrumentos todos, o que me deu alguma confiança como músico e como performer – e fiquei muito contente. No final disse ao Mário que gostava de tocar o disco ao vivo, mas era impossível porque não tinha banda. E então ele sugeriu que formasse uma e fosse fazer espectáculos, e foi o que fiz. Mas sempre como um side project. Acho que as coisas só mudaram quando fomos para a estrada. Havia uma liberdade naquela forma de trabalhar e comecei a perceber que, se calhar, já não era possível voltar atrás e tornar a encaixar as minhas músicas dentro dos vértices do quadrado que eram os Silence 4. A solo, eu era o inverso disso e a certa altura já só pensava em ampliar aquela experiência, fazer coisas diferentes. Isso aliciava-me muito mais, artisticamente, do que continuar dentro da banda. Por isso comecei a achar que não fazia sentido continuar com os Silence 4, que ainda por cima já estavam parados há muito tempo, as pessoas tinham, todas, vidas muito diferentes.
A – Disseste que a tua ambição não era ser músico. Querias ser o quê?
DF – Queria ser fotógrafo. Lembro-me de, quando tinha 15 anos, ter dito aos meus pais que a melhor coisa que me podiam oferecer era uma máquina fotográfica. O mais natural, nessa idade, era pedir uma guitarra. E eles ofereceram-me uma Zenith, com lente, daquelas pesadíssimas, e durante dois anos não larguei a máquina uma única vez, literalmente. À custa disso tenho a minha adolescência toda retratada. E, quando fiz 18 anos, os meus pais, como viam a minha dedicação, ofereceram-me um mini-estúdio de revelação – dei cabo de uma casa de banho lá de casa para o instalar – onde passei muitos dias da minha vida. O meu interesse ia para a fotografia, a música foi sempre um hobby. A minha mãe tinha numa guitarra lá em casa, e um dia decidi aprender a tocar, nos tempos livres, e fazia as minhas canções. A fotografia era o meu sonho, e por isso fui para as Belas Artes. Mas depois achei que aquilo não tinha nada a ver com o que eu queria, e acabei por ir para a Escola Superior de Cinema, onde tirei o curso e me especializei em direcção de fotografia. Acabei o curso em 97, portanto nessa altura eu ainda acreditava piamente que era isso que eu ia fazer. Só que em Agosto lançámos o Little Respect, na colectânea, acabo o curso em Setembro, e antes de ter a oportunidade de procurar emprego nessa área, estava a assinar o contrato com a Universal, e pensei «OK, parece que é isto que eu vou fazer agora, tudo bem, vamos fazer isto durante uns tempos e depois volto».
A – Mas não voltaste.
DF – O que aconteceu, com os anos, é que hoje dificilmente imagino a minha vida sem a música. Não teria de ser músico profissional, haveria muitas coisas que eu gostava de fazer na mesma, mas hoje já muito dificilmente deixaria a música. A conclusão a que eu chego é que é mais forte do que eu. Faço os discos porque quero mesmo fazê-los: eu estou em casa e começo a ficar inquieto com a ideia de que tenho umas ideias novas, e a certa altura começo a ter vontade de as gravar. A minha estadia na música prende-se acima de tudo mesmo com o prazer: o prazer de a fazer, o prazer de ir para a estrada tocar, de gravar, de estar com as pessoas que fazem música, debater ideias musicais, os pormenores técnicos. E eu trabalho com músicos muito talentosos e aprendo muito com eles. E aprendi também a perder o medo de assumir que não sei muitas coisas. Apesar de saber ler música, não sou daqueles que conseguem ler a pauta e tocar por ela, e muitas vezes dou por mim a perguntar aos músicos que acorde é aquele que estou a tocar. Essa parte amadora continua muito patente em mim.
A – A tua opção pelo inglês como “língua mater”, deve-se a quê?
DF – Nunca soube explicar muito bem. Quando comecei a fazer canções, por volta dos 18 anos, eu tinha como referências músicas estrangeiras. Apesar de gostar muito de música portuguesa, não era a minha primeira opção quando agarrava nos cd’s e nos vinis para ouvir na altura. A minha grande referência era sobretudo a música alternativa inglesa. Havia uma editora, a 4AD, que tinha um universo próprio – os Pixies, os Cocteau Twins, os Dead Can Dance, as Breeders – com o qual eu me relacionava muito, tinha uma apetência muito grande por aquele tipo de som. E quando comecei, como não tinha fito comercial nenhum, fiz as canções da forma que achava que tinham a ver com aquilo que eu era. Fiz as letras em inglês porque tinha alguma facilidade em escrever em inglês, porque lia – e leio ainda hoje – muito mais em inglês do que em português. Foi assim, não como uma opção, mas como uma forma natural de as coisas acontecerem. No segundo disco fiz uma canção em português porque ela aconteceu assim. Foi mais uma experiência, um desafio. O que não quer dizer que, no futuro, venha a cantar mais em português ou mais em inglês. Está tudo em aberto.
A – Um disco só em português, pode acontecer?
DF – Pode, perfeitamente, mas desde que eu ache que faz sentido na minha vida, como criador. Fazê-lo só por razões comerciais, sinceramente prefiro não o fazer. Porque aí ia sentir que estava a vender uma ideia artística a uma ideia comercial.
A – Este teu disco mais recente em que é que difere daquilo que já fizeste?
DF – Eu acho que é diferente de quase tudo o que eu já fiz. Desde o princípio dos Silence 4 há uma certa linha melancólica que atravessa todo o meu trabalho. E embora essa linha seja difícil de desaparecer – porque faz parte da minha vida, da minha maneira de ser – neste disco, pela primeira vez, o traço condutor, é algo muito mais festivo, mais aberto. Mas isso foi também uma coisa que aconteceu muito naturalmente. Este foi o disco mais rápido que eu fiz até hoje. Estava em digressão – fui ao South by Southwest, um dos maiores festivais de músicas do mundo, que se realiza no Texas – e a certa altura achei que devia tocar uma música nova. Tinha começado a fazer uma ainda em Portugal e, quando a acabei, gostei muito dela porque tinha uma certa aura positiva, longe dessa melancolia normal. E de repente pensei que aquilo era talvez o início de alguma coisa. Todo o ambiente musical que se viveu ali durante uma semana entusiasmou-me muito e quando saí dali vinha cheio de vontade de fazer músicas e ir para estúdio. Para teres uma ideia: o festival foi em Março e em finais de Agosto o disco estava feito, pronto para ser entregue à fábrica. Esse ímpeto foi a primeira vez que me aconteceu.
A – Neste momento, tu que te tornaste músico por acaso, o que é que esperas da música? E o que é que esperas dar à música?
DF – Eu acima de tudo gosto de música, sou um grande ouvinte de música. E o que espero da música, em geral, é a surpresa. Estou sempre à espera de ouvir um som novo, uma coisa diferente. Procuro música que me diga qualquer coisa como pessoa e que me possa fazer crescer como músico e como artista. E aquilo que eu pretendo dar à música, acima de tudo, é alguma honestidade. Que ela possa ter sempre a ver com a minha visão pessoal.
A – Os Silence 4 algum dia voltarão a reunir-se?
DF – Acho difícil. Nós distanciámo-nos todos muito com os anos. Porque de facto nós juntámo-nos para fazer a banda, mas não éramos amigos antes disso, o que fez que quando a banda se dissolveu acabássemos todos por regressar às nossas vidas. Muitas vezes, as bandas reúnem-se novamente por pressões comerciais. No nosso caso, essa decisão teria de ser acima de tudo artística e eu não tenho neste momento nenhuma razão artística para voltar aos Silence 4, pelo contrário: tenho uma carreira a solo que já é mais longa do que os Silence 4. Mas um dia, se olharmos uns para os outros e pensarmos que há alguma razão para voltarmos a fazer músicas juntos, porque não?
Revista Autores - Out./Dez. 2007