Nasceu em Moçambique, vive em Portugal, mas a sua casa é o mundo. Chama-se Amélia Muge, e é uma das mais importantes vozes femininas da música portuguesa actual. Não Sou Daqui é o disco mais recente desta autora que, no dia 7 de Dezembro, apresentou no CCB uma retrospectiva do seu trabalho. Como intérprete, mas também como autora.
Autores – Nasceste em Moçambique e só vieste viver para Portugal depois dos 30 anos. Apesar disso, a tua música tem mais a ver com a tradição portuguesa do que com África. Porquê?
Amélia Muge – Se um cabo-verdiano nascer em Portugal, toda a gente está à espera que ele cante mornas? Sendo a minha família do norte de Portugal, mesmo nascida em Moçambique, certamente que ninguém pensará que sou uma filha legítima da marrabenta. Como não nasci na Madragoa, também ninguém está à espera que eu cante fado. Enfim, brincadeiras à parte, o “mundo da lusofonia” tem uma coisa em comum – a língua portuguesa. O resto, direi eu, rege-se mais pelas leis da química que por outra coisa qualquer. Que há uma alquimia que marca todos os que nasceram de cruzamentos territoriais vários, há. Talvez de uma forma não visível para o exterior, mas é evidente que há. As mestiçagens não são só de pele…
A – São também culturais...
AM – Claro. Eu não tenho dúvida nenhuma de que não faria a música que faço – melhor, não seria sequer quem sou – se não tivesse nascido em Moçambique.
A – “Não Sou Daqui” é o título do teu disco mais recente. És de onde?
AM – Das horas, dos momentos que vou vivendo, dos lugares, dos meus ideais, dos meus erros, dos livros, discos, espectáculos que me marcaram, dos meus mestres-amigos-família, dos meus desafios, dos meus desgostos, das várias comunidades de esperança que partilho com grupos variados e de variadas maneiras.
A – Um caminho para a construção de uma identidade?
AM – Sim. “Não sou daqui”, na prática, quer dizer, que eu não sou de uma coisa enquanto não a viver e, sobretudo, que a identidade, como pertença, também é uma coisa que se vai construindo.
A – Então hoje consideras-te uma moçambicana a viver em Portugal, uma portuguesa de alma moçambicana ou nem uma coisa nem outra?
AM – Apetece-me responder que tudo isso ao mesmo tempo, passando por toda uma coisa tão ou mais importante que é considerar-me uma terráquea com alma de extra-terrestre. É uma resposta linda. Talvez não seja verdadeira, mas não sei responder de outro modo. (risos)
A – Começaste a fazer-te notar de modo mais “regular” a partir de 1992, quando editaste o Múgica, mas a tua história musical começa bastante antes. Conta lá como foi.
AM – Como foi… Biograficamente falando?
A – Musicalmente falando.
AM – Complicas-me a resposta porque a minha história nunca foi só e apenas musical… Mas bom, venho de uma família de músicos. A aprendizagem musical começou cedo e sempre em grande cumplicidade com a minha irmã Teresa Muge. Participámos, em Moçambique, em programas para crianças e mais tarde para adolescentes, fizemos coisas sem grande rigor nem importância…
A – Mas suficientes para perceber que irias seguir uma carreira musical?
AM – Isso sempre foi para mim muito confuso. Sempre percebi que mais importante do que cantar (o que fazíamos) e ter conhecimentos musicais (já tínhamos alguns) era preciso ter um trabalho especificamente nosso. A aproximação à rádio trouxe, inclusive, uma participação nossa, como compositoras, adolescentíssimas, num 1º (e último, acho) festival da Canção que houve em Moçambique e onde ficámos em 3º lugar.
A – Não sabia …
AM – Pois, uma coisa completamente incipiente, claro… Acho que aquilo foi mesmo só por graça. Mas isso foi importante porque foi exactamente isso que nos fez desistir dos palcos. Não era bem por ali. Entretanto a universidade, o interesse a partir do Curso de História pelos problemas da Comunicação e do Desenvolvimento ligada ao ensino, o 25 de Abril, a Independência, o dar aulas nos Cursos de História e de Ciências Da Educação, os projectos de Desenvolvimento Local, a Formação para o Desenvolvimento…
A – E a Música?
AM – Nestes projectos havia uma componente de Animação onde a Música, o Teatro, as Artes Plásticas estavam presentes. Entretanto para estes projectos e para meu gozo pessoal, fui compondo. Depois em Portugal foi o trabalho muito importante com o Júlio Pereira. Mas nem esse trabalho me fez ter muita vontade de querer uma carreira na música. Acabei por ir para o Algarve trabalhar na ESE de Faro e em Projectos de Desenvolvimento Local. Fui co-fundadora de uma Associação que ainda hoje existe: a In-Loco. Continuei a trabalhar com grupos locais ligados à música, ao teatro …
A – E como surgiu então, o álbum Múgica?
AM – Apareceu a UPAV, com o Zé Mário Branco, o Carlos do Carmo e outros artistas e pessoas que me fizeram acreditar que por ali talvez valesse a pena. A UPAV acabou, logo a seguir à edição do Múgica, mas deu o empurrão fundamental para que eu continuasse… Mas estou a terminar um relato que de certo modo deixa de fora o mais importante: não estaria “na música” (profissionalmente falando) se não tivesse ao meu lado o talento, o empenho e a amizade dos músicos maravilhosos que foram trabalhando comigo, as parcerias (onde incluo os poetas), os técnicos, os agentes, todos os que a seu modo, ajudaram a criar isto (que não sou de todo só eu) que se chama, artisticamente falando, “Amélia Muge”.
A – João Pedro Grabato Dias é uma das referências centrais da tua música. E, diria eu, até da tua vida…
AM – O nome João Pedro Grabato Dias é digamos, o lado “editável” (para não lhe dar um sentido de heterónimo) do António Quadros (pintor)…
A – Pois. Nos poemas dele musicados pelo Zeca (Ronda das Mafarricas, Sete Fadas me Fadaram), ele assinou como António Quadros…
AM – Como também há o Mutimati Barnabé João que assina o livro: “Eu, o Povo”, de onde o Zeca musicou o poema do mesmo nome. Mas isto do Mutimati é toda uma outra história. Adiante: Tive um enorme privilégio em tê-lo como professor na Faculdade e depois ter sido sua assistente. Foi uma cumplicidade de anos, quer no plano académico quer no artístico. Com ele aprendi a ver pintura na poesia, poesia na pintura, e encontrar na música um lugar privilegiado de junção de muitos e variados mundos. Eugénio Lisboa diz que o desconhecimento da obra do António, é o escândalo literário do séc. XX. Eu não diria só literário, embora ele como pintor possa eventualmente até ser mais conhecido.
A – Outra referência fundamental é José Afonso. Como é que foi o teu encontro com a música dele?
AM – Uma referência nunca se explica por si própria e quando isso acontece é mau sinal. Prefiro falar não do Zeca, mas de um quadro onde o Zeca é pintor e pintura. Nele está uma época, várias gerações, uma rede multifacetada de projectos, talentos, interesses e sobretudo criações que partem de um território comum, umas mais próximas que outras, umas com mais afinidades, outras até mais conflituosas. Mas há inegavelmente um colectivo que passa por um José Mário Branco (que já é o que virá), um Fausto (a grande viagem), um Godinho (de quotidianos sublimes e eternos enquanto duram) e muitos outros, como a maravilhosa “alentejanidade” de um Janita, a “alma instrumental” do Julio Pereira, a cumplicidade Ary- Tordo, o sonho do Manuel Freire, o guerrilheiro Cília, o Paulo de Carvalho entalado entre adeuses e olás. E os grupos de autorias soberbas como a Brigada, os Trovante, as vozes “de autor” do Carlos do Carmo ou da Amália…
A – Um turbilhão …
AM – Um turbilhão de gerações várias (hoje poderíamos falar de outros e outros ficaram por falar) rodando, perdendo definição, recuando para que tudo ganhe maior nitidez. O Zeca está no fundo e na forma de tudo isto. Agora, falar do Zeca… Só uma canção dele dava toda uma entrevista.
A – Então diz lá uma canção dele que, para ti, melhor o defina…
AM – “Como se fora seu filho”. Claro que a mais carismática é a “Grândola Vila Morena” mas… Bom, mas há outras: “Vejam bem”, “De sal de linguagem feita”…
A – No espectáculo “Maio maduro Maio” que fizeste em 1994, com o José Mário Branco e o João Afonso, assinaste a música de um tema inédito do Zeca, “Nem sempre os dias são dias passados”. Esse tema é um bom exemplo daquilo a que chamo o respeito pela “alma” das canções. Porque, embora sendo uma música tua, tem todo o jeito, o estilo próprio, do Zeca…
AM – Não se compõe do zero. Há que fechar os olhos para ouvir melhor o que já lá está. Ter sensibilidade para as muitas e variadas matérias em presença. Foi assim no caso do Zeca, é assim no caso do compor para outros intérpretes. As músicas de minha autoria cantadas pelos meus colegas, não seriam o que são, se eles não existissem. O meu ponto de partida são eles, o seu canto, as temáticas que me sugerem. Por isso lhes estou tão agradecida. Aprende-se imenso a escrever e a compor para outros.
A – Durante anos, estranhamente, as mulheres estiveram praticamente arredadas dos lugares de primeiro plano da música popular portuguesa. Depois apareceste tu que, além de cantar, também compões. Foi fácil entrar neste universo?
AM – Eu não entrei em coisa nenhuma. Vou fazendo as minhas coisas, com melhor ou pior oportunidade de divulgá-las. Mas não acho nada estranho a raridade das mulheres no mundo da composição. Não é uma questão sequer social. É mitológica. O homem é (sim, continua a ser) o centro “revelador da verdade”.
A – O centro do político?
AM – Completamente. No que o termo possa ter de mais abrangente. Em termos sociais, a música é um campo fortemente manipulável, uma aliada do poder – seja ele qual for. Foi por exemplo, fundamental, na criação do que se chama “a alma nacional” das novas nacionalidades modernas europeias. Não é por acaso que pelo menos até meados do séc. XX a esmagadora maioria dos conservatórios na Europa, esteve na mão de militares. Tudo o resto que se possa dizer (e muito haveria a dizer) parte desta raiz. E também há cantos de resistência por assumir.
A – No 25 de Abril?
AM – No antes e depois de Abril. Um canto subtil, quantas vezes camuflado, de quem sabe que tem o opressor dentro de casa. Esquecemo-nos muito facilmente que as grandes violações dos direitos humanos e planetários começam dentro de casa, começam dentro de nós. São os cantos da alma, que podem ser tudo e em qualquer estilo musical. Aí, a mulher, teve sempre um papel preponderante. São cantos sempre mais frágeis. A que se nega a existência porque nem sempre enquadrados dentro daquilo que é o mundo da música, artística e comercialmente falando…
A – Mesmo assim, eu diria que não tens tido uma vida fácil…
AM – A vida não é fácil. Depende também dos nosso objectivos, do sermos uma geração sombra do 25 de Abril, ou das modas que vêm lá de fora. Também não é simples entender o que ando a fazer, pois misturo vários mundos e linguagens. Não tenho a vida facilitada. Bem feita! Não complicasses… Isto no que me diz respeito. Depois há toda a conjuntura. Independentemente das questões económicas, o que se passa neste país, em termos artísticos, é fruto de um desconhecimento monstruoso das regras básicas que regem o mundo das artes. Então na música…
A – O teu trabalho como autora é hoje sobejamente reconhecido. Deixa-me fazer-te uma provocaçãozinha: haverá um modo feminino de fazer música?
AM – Há um modo masculino? As notas musicais e outras matérias de que a música é feita – que eu saiba – não têm sexo. Temáticas que eu como mulher esteja mais à vontade em tratar? O texto, o poema, a letra da canção, seja lá o que for que lhe chamem, de que me sirvo para o fazer, sexo também não tem. A distinção não me parece que esteja no ser homem ou mulher. Só há uma distinção: uns conseguem, outros não.
A – Em 18 anos editaste apenas cinco discos em nome próprio. Por vontade tua, ou por falta de vontade dos editores?
AM – Há editores? Nunca dei por nada... Há gente com dinheiro para investir. E que por vezes até emprega pessoas com talento para o que deveria e poderia ser feito em termos de edição e promoção, mas que ficam de mãos e pés atados. Hoje nem isso. Há dez anos já dizia que com a falta de jeito neste país para perceber o que é trabalhar uma edição ou uma promoção, que não seja chapa 4 do que vem lá de fora, estaríamos todos na situação que estamos agora e que não se explica de todo só pelos “downloads”. É claro que a crise é geral e isso dava outra conversa. O mundo da chamada música industrial, em Portugal, sempre dormiu nas costas do que se fazia lá fora. Cá dentro, nem o fado soube vender. A grande promoção do fado surgiu a reboque dos artistas. Não o contrário. E como culturalmente, nunca se soube ser subtilmente rico em Portugal, é claro que editoras, televisões, rádios, vai tudo a reboque. Eu acho que se o Cavaco Silva quisesse gravar um disco – olha, de Natal – era um sucesso de vendas. Isto diz tudo.
202 canções para recordar
Quando, há 16 anos, publicou o primeiro álbum, Múgica, Amélia era já uma voz madura e que sabia muito bem aquilo que queria cantar. Talvez por isso, de então para cá, tenha editado apenas mais quatro discos em nome próprio (Todos os Dias, em 1994, Taco a Taco, em 1998, A Monte, em 2002, e Não Sou Daqui, em 2006), além de ter participado num par de obras colectivas, a saber: Maio, Maduro Maio, em 1995, com José Mário Branco e João Afonso, e Novas Vos Trago, em 1998, com a Brigada Victor Jara, os Gaiteiros de Lisboa, João Afonso e Sérgio Godinho.
Mas Amélia Muge é, além da intérprete de excepção que nos habituámos a admirar, autora de numerosos temas interpretados por vozes tão distintas como as de Ana Moura, Mafalda Arnauth, Mísia ou Camané. E são essas canções que constituem a base do seu novo espectáculo, apresentado no Centro Cultural de Belém no dia 7 de Dezembro.
Trata-se de uma retrospectiva do seu trabalho como autora onde apresentou alguns dos seus temas mais populares e vários dos que compôs para outros intérpretes. “A ideia base deste espectáculo foi-me proposta pelo António Cunha da UGURU, a agência com quem vou passar a trabalhar”, explica.
O concerto tem como título “1 Autora, 202 Canções”, exactamente o número de obras que tem registadas na SPA – e como subtítulo “Canções para um mundo de encontros”. Com Amélia, estiveram em palco António José Martins, Filipe Raposo, José Manuel David, Catarina Anacleto e Johannes Krieger, além dos convidados Ana Moura e Gaiteiros de Lisboa.
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