Canta desde sempre, mas só por volta dos 40 anos se profissionalizou como cantor. Boémio, respingão, frequentemente verrinoso, assume-se como um defensor acérrimo da latinidade contra o bloco anglo-saxónico, «que foi sempre corrosivo e destruidor da nossa história e da nossa cultura». O Alentejo onde nasceu está sempre presente na sua música, mesmo quando tem forma de bolero, tango ou cha-cha-cha. Chama-se Vitorino Salomé Vieira, mas o primeiro nome chega para todos o reconheçam.
Autores – Como é que um alentejano do Redondo vem para Lisboa estudar Belas Artes e acaba por se tornar cantor?
Vitorino – Antes de estudar nas Belas Artes eu já era cantor. Mas só me profissionalizo, de certa maneira, a meio dos anos 80. Quando comecei era rigorosamente amador, intervinha muito sobretudo para apoiar questões sociais e políticas, e fiz uma escola de amadorismo, tendo um olhar um bocado distante daquilo a que se chama o “showbizz”. Isso tem a ver muito com os amigos com quem trabalhava.
A – Tu vens duma escola de músicos e cantores que, antes da vida artística, digamos assim, punham a intervenção social…
V – Púnhamos à frente esses aspectos, que justificavam muito a nossa vida. E tive a sorte de ter companheiros muito bons, que me ensinaram muitas coisas. Eu tenho que destacar o José Afonso, que nos ensinou o que não lhe foi ensinado. Eu não acredito muito em génios, mas a natureza foi muito pródiga com a inteligência dele, com aquela capacidade de absorver as vivências e transformá-las em música, em textos muito bonitos, de organizar um sentido prático de intervenção improvisada, quase que de guerrilha, junto de grupos sociais que era importante agitar. O Zeca tinha um sentido de “agit-prop” como nunca vi em ninguém, absolutamente intuitivo. Era uma escola muito interessante, muito sedutora, comparando com os cantores que havia ao tempo: a nossa vida era mais interessante e mais agitada e mais inesperada.
A – Mas também mais difícil…
V – Sim, mas eram dificuldades que eram um bocado “atraentes”, digamos, do ponto de vista da aventura. Ao mesmo tempo que nós estávamos a emergir como cantores, havia um lado da música chamada ligeira de grande qualidade, com os Sheiks, o Paulo de Carvalho, o Carlos Mendes, o Fernando Tordo… Entre nós e eles estavam, por exemplo, o Carlos Alberto Moniz, a Maria do Amparo e alguns grupos que depois começaram a intervir nos festivais da Televisão. Lembro-me dum, por exemplo, que eram três miúdas e o Nuno Gomes dos Santos…
A – O Intróito?
V – Exactamente. Era um grupo que procurava, de certa maneira, resgatar a música portuguesa do “bolor” em que estava metida pela condução que o Estado Novo fazia da vida das pessoas – porque os fascismos têm sempre essa tendência para organizar o gosto das pessoas. Havia, portanto, essa área da música que era muito interessante. E a outra parte era aquela que veio de Coimbra, muito encostada à universidade, muito organizada sob o ponto de vista da ideologia. E até das divisões que daí advinham e que se mostravam muito à flor da pele, sobretudo quando saíamos de Portugal. Em Paris, por exemplo, a esquerda portuguesa tinha uma amostragem muito próxima do que ela era aqui em Portugal, na clandestinidade: as várias facções da esquerda portuguesa estavam em roda livre em Paris, e esta música acompanhava isso tudo. Havia os cantores que estavam em Portugal e os cantores portugueses de Paris, que é uma outra escola, com outras influências: o José Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Luís Cília, o Tino Flores – um homem muito interessante e um grande compositor. Tudo isso acabou por determinar o meu caminho na música. Lembro-me de ir com o Zé Jorge Letria a uns concertos a Madrid, de comboio (o bilhete custava 500 “paus”, o Lusitânia Expresso), à Universidade Complutense. Era uma comitiva portuguesa completamente aventureira, sem um tostão, alojada pelos galegos num bairro de estudantes de Madrid. Eu preferia esse lado aventureiro, porque, se quisesse, podia ter ido para o outro lado da música, mas este era mais apelativo…
A – Mais do que uma escola musical, era uma escola de vida…
V – A escola musical era uma consequência dessa escola de vida. O amadorismo, sob o ponto de vista da profissão, era total. Cantávamos em qualquer circunstância, frequentemente com um profundo défice de condições técnicas e até de sobrevivência. Se reparares, todos estes cantores estão atentos às mesmas questões e têm o ADN dessa vivência. Eu só comecei a ter um outro olhar, mais profissional, quando entrei para a EMI-Valentim de Carvalho, com um disco que se chama “Flor de la Mar”. A partir daí não tive outro remédio se não profissionalizar-me um pouco mais, mas continuo a ser muito amador. Porque sou preguiçoso, cultivo muito a preguiça, a amizade, o convívio, e sacrifico muitas situações que se calhar me davam muitas vantagens sob o ponto de vista económico e até de influência nos media. Se eu tivesse outro discurso, se tivesse uma intervenção na televisão politicamente correcta, com cuidado na imagem, eu e outros companheiros meus teríamos um impacto mediático diferente. Mesmo assim, já somos quase campeões de sobrevivência na qualidade das coisas que fazemos. Porque a solução para a música portuguesa é ela ser rigorosamente portuguesa, para fazer a diferença das outras e porque é muito boa.
A – Essa preocupação com a qualidade, o recurso aos poetas – no teu caso o Herberto, o Pignatelli, o Manuel da Fonseca, o Guerra Carneiro… – é também uma atitude de recusa da formatação que tomou conta da sociedade portuguesa. Era inevitável, essa formatação?
V – Não. A Espanha evitou isso, o Brasil evita isso. Dificilmente se vê um artista que não seja brasileiro ter grande sucesso no Brasil – sobretudo se for português: eu tentei entrar no Brasil, mas com esta falta de profissionalismo era impossível, porque os brasileiros são muito profissionais, seja a organizar o carnaval, o futebol ou e a música. A música no Brasil tem grande qualidade, é uma potência musical do mundo – e isso porque não se deixa contaminar pela força que tem a divulgação da música anglo-saxónica. Se Portugal resistisse assim, no seu cantinho de boa música e se tivesse um cuidado muito grande com a língua portuguesa e com o universo melódico que tem, que é extraordinário, Portugal podia resistir e ser um exemplo na Europa. Mas o que está a acontecer é que os miúdos que estão a emergir agora são conduzidos para produtos de grande influência anglo-saxónica. E de tal maneira que os que têm mais êxito, aparentemente – porque são sempre êxitos aparentes – cantam em inglês, o que eu considero absolutamente criminoso, mas compreensível. Porque eles têm sempre o sonho, a ilusão profunda de que vão ser exportados. Isso é um bocado consequência do que fazem alguns media portugueses, sobretudo as rádios, mas também a televisão e alguma imprensa escrita, que parece às vezes ter vergonha de escrever em português, e de cantar em português. Eu tenho grande admiração pelo Brasil por isso: o Lula já proibiu, por exemplo, letreiros de publicidade noutra língua que não seja a língua portuguesa. E nós temos o exemplo do Algarve, onde é tudo «for sale». Isso é proibido no Brasil.
A – Se calhar não é por acaso que a rádio nacional do Brasil, a Rádio Bras, passa 99 por cento de música brasileira…
V – É que se não passarem música brasileira, as pessoas não ouvem a rádio. Porque os brasileiros gostam da música deles, praticam-na, vivem-na, dançam-na. Faz parte do seu quotidiano. Aqui, pelo contrário, não há elites, sob o ponto de vista organizativo, que protejam a música portuguesa. Eu não atiro as culpas para o governo, eu quero que os governos e o estado se lixem. Aliás, o estado em Portugal é sempre contra o povo: explora-nos, não paga, é cada vez mais eficiente a sugar-nos os impostos para dar, por exemplo, à banca. É tão simples como isso: o dinheiro desapareceu porque foi para outras mãos, porque a riqueza é a mesma. Aliás, é mais, a riqueza do mundo é maior, só que ficou com meia dúzia de gajos que têm um desprezo profundo por tudo o que é cultura. E em Portugal o que acontece é sempre a excepção: é a excepção Rosa Mota, é o José Saramago, o António Lobo Antunes – a excepção da regra geral que é um baixíssimo nível da cultura, da vivência, daquilo que se pode agora chamar “mercado cultural”.
A – Retomando o que dizíamos há pouco: tu foste também um praticante da última grande fase da boémia lisboeta, que já desapareceu…
V – Agora é feita de outra maneira. Mas eu tive essa sorte: quando cheguei a Lisboa, o Bairro Alto ainda era o Bairro Alto. Ainda encontrei essa boémia, que vinha talvez do fim do século XIX, e encontrei grandes boémios, que só faziam isso. Aliás, Lisboa e Barcelona, no fim dos anos 60, eram cidades conhecidas na Europa por uma grande boémia, decadentíssima. Em parte nenhuma do mundo havia um Barrio Chino como o de Barcelona, ou um Parque Mayer como o de Lisboa, com aquela vivência toda. Era uma boémia provinciana, não tinha nada a ver com a boémia rica de Paris, ou de Londres, ou com os vestígios das boémias que houve em Nova Iorque e que resultaram em grandes obras, tanto literárias como musicais. E eu apanhei o fim disso, e lembro-me dos cafés, que eram quase centros culturais, de divulgação cultural e de opinião, da discussão das coisas, porque não havia outros espaços.
A – Aliás, os movimentos culturais e literários do século XX estão quase todos ligados aos cafés: o Gelo, a Brasileira…
V – Estão ligados aos cafés porque não tinham outro sítio para ir, não podiam fazê-lo em teatros ou em centros culturais. Por exemplo, a Escola de Belas Artes não tinha associação de estudantes. Havia uma pró-associação, que se reunia noutras faculdades ou então na Leitaria Garrett.
A – Que tu homenageaste, num disco…
V – Sim, porque entretanto fecharam-na. Essas leitarias duraram muito tempo em Portugal, felizmente, porque eram lugares muito baratos e onde se fiava. Fiar é sintoma de grande pobreza, mas ao mesmo tempo também de grande solidariedade. O Sr. Castanheira, na Leitaria Garrett, tinha um livro de assentos onde muitos alunos da Escola só pagavam ao fim do mês, quando recebiam algum dinheiro da família. Nós éramos muito novos, mas tínhamos um sentido de observação e alguma facilidade para nos integrarmos com grupos de velhos boémios e intelectuais que paravam ali pela Brasileira e pelas livrarias, que também eram pontos de reunião. Havia ali pintores, músicos, o São Carlos ainda funcionava muito bem, e o Chiado era um centro de vida muito activo. Isso fortaleceu muito o meu conhecimento com algumas pessoas, poetas, pintores… Tive essa sorte, e tinha alguma disponibilidade e alguma energia. Durante muitos anos, quase não dormi. Agora ando a dormir tudo o que não dormi, estou a pagar as favas…
A – Mas não te queixas…
V – Não, não me queixo muito. Mas já não saio à noite como saía, nem me interessa.
A – Hoje, com vinte e tal discos gravados, sentes-te feliz com o que fizeste, ou há coisas que preferias não ter feito?
V – As coisas que fiz, gostei de as fazer – e ainda tenho algumas para fazer. Se me queixo de alguma coisa é do amadorismo, do ir para o estúdio fazer um disco sem o ter composto sequer. Quando estava a gravar o “Flor de la Mar” havia um piano, um Steinway castanho, no estúdio da Valentim de Carvalho, e eu lembro-me de o ver cheio de garrafas de vinho, durante as minhas sessões de estúdio. E isso de certeza que lhe baixou a qualidade. Deu-lhe outra “cor”, talvez… Mas se eu tivesse sido mais profissional e se tivesse tido mais cuidado comigo, se calhar tinha feito coisas melhores. Mas das que fiz gostei muito. Agora tenho é um sentido crítico mais apurado, sobre o que fiz e o que vou fazer, mas se calhar não tenho a energia que tinha antes. É assim: uma coisa compensa a outra.
A – E em relação aos teus projectos, o que estás a preparar?
V – Agora, com o meu irmão Janita, vou fazer um disco sobre a moda alentejana, mas sofisticadíssimo, com textos do António Lobo Antunes, que se apaixonou pela moda alentejana. Vamos recriar a moda alentejana, o que é uma coisa perigosa… E, à semelhança do que fiz em Cuba, vou para Buenos Aires gravar 12 tangos com uma orquestra tradicional. O tango está a fazer um século e Portugal esteve muito ligado ao tango, aliás como todo o mundo, a partir dos anos 30. Há ligações muito interessantes dos portugueses ao tango, sobretudo dos algarvios, porque nos anos 20, 30 chegou a haver clubes de tango no Algarve. E ainda tenho na cabeça um disco próximo dos rappers portugueses, com quem já falei. O Boss AC recriou agora uma canção minha, o “Sul”, um rap com um texto dele, muito interessante, com o Sam The Kid e o Pacman. Eu quero juntar-me a eles e tentar essa mistura. Se houver possibilidade para isso, claro, se houver mercado, que os tempos estão maus…
A – Isso leva-nos inevitavelmente à questão dos problemas dos autores, cujos direitos estão cada vez mais ameaçados.
V – Os direitos de autor estão em perigo muito graças ao conceito mercantilista e de indústria que os anglo-saxónicos criaram e que nos tem prejudicado muitíssimo. Porque foi na Europa que nasceram os direitos de autor, com a Revolução Francesa, mas os anglo-saxónicos sempre os subverteram. A autoria moral duma canção dum anglo-saxónico não tem nada a ver com a autoria moral dum português ou dum europeu. E é esse conceito que temos de manter. Passar a mensagem para as pessoas que, sem autores, não há música, há silêncio, e o silêncio é aterrador. Há silêncio na rua, em casa, as páginas ficam brancas, lençóis enormes de vazio, se não se olhar para o tubo digestivo de um autor como se fosse um tubo de cristal, que não consome. E a SPA, que tem sido fundamental para a defesa dos autores portugueses, todos, tem de conseguir passar para aquilo a que agora se chamam “consumidores”, as populações, esta ideia segura que, se nós não existirmos, passa a haver um vazio na vida deles. E que o facto de nós existirmos se deve também às culturas deles, sobretudo a cultura rural do interior português, que nos inspiram. É do interior rural que emergem a literatura, as grandes músicas, as grandes artes performativas, todas vêm lá do fundo. Este conjunto de vontades tem de ser tratado pela SPA e eu vou ajudar o mais possível nisso.
A – Não haverá também alguma culpa nossa, dos autores? Digo isto a pensar nas pequenas “guerras” internas, que se calhar consomem demasiada energia que deveríamos canalizar para outras coisas…
V – Não há dúvida que temos de fazer um esforço para contrariar o nosso individualismo. É um esforço dificílimo, porque o individualismo é uma característica do portuga – e mais ainda do autor, do criativo – está inscrito no mais profundo da nossa alma, e é muito difícil abdicar dele. Eu sei porque também tenho de abdicar do meu… Mas a solução passa por organizarmos as nossas amizades – porque há muita gente aqui que é amiga de longa data – organizá-las melhor e ter um olhar mais para lá do que parecem ser interesses de grupo que estão ali a desenvolver-se. Essa ânsia de ir à máquina registadora tem de ficar mais retraída e temos de abdicar um bocadinho da nosso individualismo doentio. Eu tenho na direcção e nos corpos sociais da SPA amigos de longa data e utilizo muito essa amizade para ultrapassar o meu individualismo e para ajudar a ultrapassar essas divisões das poucas centenas de cooperadores que estão na SPA. Precisamos ter consciência de que, se não tivermos cuidado, ela desaparece. E vai fazer-nos muita falta.
Defender a Língua
«Há muita gente boa em Portugal, há miúdos a emergirem nas periferias de Lisboa e do Porto, e mesmo no interior, grupos que tentam cantar em português, mas depois não são apoiados.» A defesa da Língua está no centro das preocupações de Vitorino, para quem não faz sentido viver e fazer música em Portugal utilizando outro idioma – tanto mais que a experiência tem demonstrado que os casos de grande sucesso de portugueses no estrangeiro aconteceram justamente com artistas que se expressam na sua língua de origem.
O predomínio da cultura anglo-saxónica é, para o músico do Redondo, um mal que vem de longe: «A célebre aliança que a gente tem com Inglaterra é de tal maneira exploratória e ridícula que um dia destes eu passei em frente da embaixada de Inglaterra e não me deixam passar: tem um bunker lá à frente. Ainda nunca vi nenhuma televisão chamar a atenção para isto: como é que na capital da minha terra eu não posso passar porque está um polícia português armado até aos dentes, com colete de balas, que não me impede! Essa reverência perante a Inglaterra, a mim dá-me vómitos!»
Por isso, entende que a música deve ser, também, neste caso, um veículo de resistência à uniformização. E entende que é significativo «o facto de os rappers portugueses rapparem sempre em português, e até se mostrarem muito críticos em relação aos que cantam em inglês.» Um exemplo: «Uma canção muito interessante, um texto falado do Sam the Kid, que é muito crítico em relação aos que cantam em inglês. Ele convidou o David Fonseca para cantar, e o David, que tem sentido de humor, aceitou. Eu tenho pena que ele não cante em português, porque quando cantou, nomeadamente com Os Humanos, provou-se que o fazia muito bem. Podia ter aproveitado essa porta que se abriu e ter continuado. Isto é a minha opinião, embora como digo entenda que os miúdos cantem em inglês, se querem sobreviver.»
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