A enumeração de tudo o que este homem já fez ocuparia talvez todas as páginas da revista. Fiquemo-nos pelo mais fácil e chamemos-lhe Professor, sabendo que o essencial do seu trabalho se reparte pela criação e traducriação de poesia, pela intervenção cultural activa, pela investigação, pela leitura. Recentemente, a SPA assinalou o reconhecimento dos criadores portugueses à obra de Arnaldo Saraiva, atribuindo-lhe a Medalha de Honra. É apenas um pretexto para conversar com este professor de Literatura, nascido numa aldeia da Covilhã, mas que é um homem do Porto e do Mundo.
Autores – Começaria pelo fim: o que significa para si a atribuição da medalha de honra da SPA?
Arnaldo Saraiva – Uma honra, claro. Inesperada.
A – Professor universitário, investigador literário, ensaísta, poeta, cronista. Qual das suas distintas vertentes de actividade lhe dá mais prazer?
AS – Porque é pela linguagem, e pela melhor linguagem – a literatura – que podemos aceder aos mistérios e à complexidade do homem ou de nós próprios, palavras que somos, todas essas actividades, e mais a de tradutor, me dão muito prazer, mesmo quando me dêem também muita inquietação e fadiga. Mas é verdade que há dias ou horas em que alguma delas se impõe sobre as mais, e se antepõe até a outras claras fontes de prazer – amar, viajar, ler…
A literatura e o mundo
A – Foi professor de literaturas lusófonas em universidades tão importantes como as de Santa Bárbara, na Califórnia, ou a Sorbonne, em Paris. Da sua experiência, como é que acha que o mundo vê a literatura portuguesa?
AS – Salvo de pequeníssimas ilhas, o mundo não vê a literatura portuguesa. E mesmo o leitor médio de vários países “civilizados”, como a França, a Inglaterra ou a Alemanha, ignora a existência de Camões, que tem a estatura de outros que esse leitor não ignora, chamem-se eles Homero, Vergílio, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Dostoiewski. Os portugueses que levaram navios e mão-de-obra a todo o planeta, nunca souberam levar a sua literatura, nem mesmo a pioneira dos chamados descobrimentos, que, tal como a culinária que também não impuseram (ao contrário do que fizeram franceses, italianos e chineses), não parece menos interessante ou substancial do que a de outros povos privilegiados. Mas é preciso dizer que mais importante do que ter uma cultura reconhecida pelos estrangeiros é ter uma cultura viva e vivificante; e que não são só os portugueses que devem ser responsabilizados pela ignorância que outros tenham da sua cultura; e que essa ignorância não é um sinal de superioridade, mas de inferioridade. Há quatro décadas eu podia dizer a colegas meus do curso parisiense de Roland Barthes que não sabiam o que perdiam por nunca terem lido Pessoa. Nessa altura encontrei um especialista da poesia medieval, Paul Zumthor, que não sabia nada das cantigas portuguesas; e bem mais tarde Claude Lévi-Strauss ainda fazia de Jean de Lévy, não de Pero Vaz de Caminha, o primeiro “descobridor” do Brasil. Pessoa tornou-se entretanto uma referência mundial da modernidade, e a ele se deve, bem mais do que ao Instituto Camões, ou a José Saramago, muita da visibilidade internacional da literatura portuguesa e da literatura em português. Nestas literaturas, os estrangeiros poderão apreciar especialmente, para lá dos sabores de uma língua e uma cultura com mais de 8 séculos, as temáticas ou problemáticas da viagem e da outridade, e os motivos claros ou difusos dos mitos de Pedro e Inês e do sebastianismo.
A – E como é que a literatura portuguesa olha o mundo?
AS – Vergílio Ferreira disse que da língua portuguesa – da literatura portuguesa – “vê-se o mar”. Se isso é literal e metaforicamente verdade, há que precisar que se vê quase sempre só a espuma, a cor e a ondulação da superfície, porque ao fundo quase só se chega como náufrago. Em tempos de viagens astronáuticas, seria de desejar que da literatura portuguesa se visse não só o mar, a terra, e o bicho da terra tão pequeno mas também outros planetas – e as estrelas.
As margens da Literatura
A – As chamadas “áreas marginais” da literatura têm merecido uma parte essencial da sua atenção enquanto estudioso. Porquê?
AS – Descobri ainda em tempo de estudante universitário que na chamada “literatura portuguesa”, canonizada em programas, histórias e antologias, não entravam milhares de textos como os que, ouvidos ou lidos, tinham deslumbrado a minha infância e adolescência: canções ou cantigas, orações, provérbios, contos, lendas, romances do Romanceiro, anedotas, adivinhas, trava-línguas… E descobri que muitos textos que para mim continham os ingredientes da melhor literatura eram silenciados, marginalizados ou desvalorizados não só por censores oficiais ou oficiosos da política, da religião e da moral, mas também por dissimulados censores (escritores, críticos, professores, letrados…) da estética, que tinham algum horror ao oral, ao anónimo, ao popular, ao heteróclito ou híbrido (prosa poética ou poesia em prosa, textos verbo-visuais e verbo-musicais…), como o tinham em relação a textos de espécie nova (quadradinhos, argumentos cinematográficos, cartoons…) ou em relação a textos de vanguarda. Nos meus dois volumes de Literatura Marginal izada, em prefácios, em numerosos ensaios e artigos (que dão pelo menos para mais dois volumes), em congressos e no ensino – criei no Porto a cadeira “Literaturas Orais e Marginais”, imitada noutras universidades – empenhei-me em combater esse tipo de censuras ou de preconceitos. E a luta continua, até por que não se trata de uma causa meramente literária. No fundo, a marginalização de alguma literatura vai de par com a marginalização de pessoas.
A – “El universo se investiga a sí mismo. / Y la vida es la forma / que emplea el universo / para su investigación.” Quem o disse foi um dos poetas que traduziu, Roberto Juarroz, num dos textos da sua “Poesía Vertical”. Estudar a literatura é uma forma de investigar a vida?
AS – Pode ser também a de investigar a morte. Unamuno identificou a literatura com a morte. E a morte não é só um dos temas mais recorrentes na história da literatura; Michel Picard mostrou bem como a morte se define como “um puro ser de linguagem”, um fenómeno verbal que é inconcebível tanto pela consciência como pela inconsciência. Mas sendo a literatura produzida e lida, em qualquer dos casos mobilizando como poucas outras actividades a inteligência, a atenção, a reflexão, as emoções, e explorando o que há de mais vigoroso e vital na língua ou na linguagem, quer dizer, no ser humano, falando expressivamente do que aconteceu e do que poderia ou poderá acontecer, dos mundos exteriores e interiores, do real, do possível e do imaginário, parece evidente que, como queria Italo Calvino, há coisas que só a literatura nos pode dar. Os versos de Juarroz, poeta e amigo que sempre me acompanha, parecem identificar o universo com o leitor ou investigador literário, que lê e interroga o texto para melhor se ler a si mesmo, e para se vivificar.
Tradução e criação
A – Em que medida é que a actividade de tradução de poesia pode ser considerada um acto de criação?
AS – Não há diferença essencial entre o que se chama criação e o que se chama tradução, se tiverem qualidade. Em princípio, o criador traduz (d)o real e o tradutor traduz um texto. Mas onde é que há real sem linguagem, ou textos sem textos anteriores? E como é que o tradutor de um texto, não só de palavras ou frases, pode dispensar o conhecimento do mundo implicado, e pode dispensar o trabalho com o simbólico, o rítmico, o melódico da linguagem? Convirá aliás não esquecer que boa parte das grandes obras literárias da humanidade as lemos em traduções. Se são boas ou más, fiéis ou infiéis, é outra questão. Mas o bom tradutor sabe que tem que aprofundar e mobilizar o seu conhecimento em duas línguas e culturas para dizer numa quase o mesmo e de modo quase idêntico o que dizia a outra.
A – De todos os autores que já traduziu, quais os que lhe deram maior satisfação?
AS – Salvo alguma excepção prosaica, até hoje só traduzi textos que me davam prazer, e que achei que me dariam (e deram) prazer traduzir, também para dar prazer a outros. Mas pelos desafios técnicos que implicou, e por se tratar não só de um grande poeta, como Brecht, Juarroz, Borges, ou como Leopardi e Mallarmé, mas também do fundador da poesia ocidental e do inventor do “amor cortês”, terei de lembrar a euforia – esquecendo as grandes dificuldades – que me proporcionou a tradução da poesia de Guilherme IX de Aquitânia.
A – Diz-se que Portugal é um país de poetas, mas a verdade é que as edições de poesia são pequeníssimas, muitas vezes quase domésticas. Será uma fatalidade lusitana?
AS – Todos os países são países de poetas, só que nalguns há mais poetas virtuais ou imaginários do que noutros. E a poesia deve ser (bem) feita – ou vivida – por todos. O curioso é que a poesia parece às vezes um sinal de pobreza ou de carência – é mais cultivada em terras pobres. Atendendo ao número de leitores portugueses potenciais, nem se pode dizer que sejam escassas e irrelevantes as nossas edições de poesia. Em países bem mais povoados e ricos como os Estados Unidos é que espanta a pouca visibilidade dos poetas e a pequena tiragem de livros até de grandes poetas. Espanta, ou não. Parece haver incompatibilidade entre os mundos da poesia e da obsessão comercial, que também já arredou a poesia portuguesa dos jornas e dos media.
A – “A poesia é para comer”, dizia Natália Correia. Em pleno primado da economia, a poesia serve para quê?
AS – Pode dizer-se que a poesia não serve para nada, e nisso está o seu valor, que desmoraliza os que buscam o interesse e a utilidade em tudo. A poesia existe, e isso basta. Mas dizer que a poesia é inútil permite que se diga também o contrário ou contraditório; como em tempos escrevi, “a poesia serve, às vezes simultaneamente, para moralizar e para desmoralizar, para dar a ver e para obscurecer, para ensinar e para desaprender, par alegrar e para entristecer, para responder e para perguntar, para elevar e para fazer cair. Útil e inútil, prazer e desmancha-prazeres, a poesia parece hoje, mais do que nunca, uma máquina subversiva /…/ existe para fazer ser em plenitude”.
A – A Fundação Eugénio de Andrade, a que preside, está à beira da extinção. Como é que uma instituição que tem como patrono uma figura maior da literatura portuguesa chegou a esse ponto?
AS – Uma triste história, sobretudo para mim que sou seu presidente, e que desde início a ela me liguei por um imperativo de amizade (ao longo de 18 anos de dedicação ou trabalho nunca dela recebi um tostão). Na realidade houve vários erros, até jurídicos, na sua criação e no seu protocolo com a Câmara Municipal do Porto. Nos últimos anos, a esses erros vieram juntar-se a sucessiva suspensão de subsídios que nunca pudera dispensar, uma alteração desfavorável na lei do mecenato, as falências dos sucessivos distribuidores das obras de que era editora ou co-editora, e, sobretudo, a hostilidade do legatário de Eugénio de Andrade que, fazendo parte da direcção da Fundação, sem aviso prévio moveu a esta uma notificação e uma acção judicial, e invocou uma equívoca passagem do testamento para tentar anular um dos artigos fundamentais dos Estatutos. Sem tempo e sobretudo sem dinheiro para defender a sua razão em tribunais, tarefa que se antevia para longos anos, a direcção (5 contra 1, o representante do legatário) achou por bem propor a extinção, para que o Governo e a Câmara Municipal do Porto assumam finalmente as suas responsabilidades – uma vez que o espólio de Eugénio pertence à cidade do Porto. Assim, quisemos – e sugerimos – que a Fundação dê lugar a uma Casa da Poesia (Eugénio de Andrade) que, sem entraves, nem sobressaltos, nem equívocos entre o público e o privado, possa cumprir os objectivos de preservar o espólio do poeta, de estimular o seu estudo e divulgação e de trabalhar pela causa da poesia portuguesa, e não só.
A – Foi o primeiro académico português a fazer a análise literária de alguma música popular urbana do século XX – e recordo-me da sua célebre introdução ao livro “Canções de Sérgio Godinho”. Concorda que temos em Portugal alguns criadores de canções excepcionais, mesmo se nem sempre devidamente tidos em conta pelas academias?
AS – Desde a terceira ou quarta década do século XX, um pouco por todo o mundo mas sobretudo no Ocidente, que inventou a rádio e o disco (e o vídeo, e o cd), o espaço comunicativo que desde o século XV ocupava a poesia escrita foi recuando com a frequência e o sucesso, até comercial, de uma poesia verbo-musical que lembra a dos cancioneiros medievais, se não a do antigo lirismo. Em princípio, o texto bidimensional (verbal/musical) deve ser avaliado como um todo; mas para falarmos de poesia ou de qualidade poética exige-se que o texto verbal funcione bem por si mesmo, desvinculado do suporte ou complemento musical, como os textos de clássicos que têm sido musicados. E isso é raro. Das multidões de autores ou cantautores que inundam diariamente a rádio, a televisão, lugares públicos e privados, poucos são os que escapam à banalidade, à boçalidade, ao primarismo, ao ruído pobremente ritmado. Mas a polémica brasileira da poesia dos poetas e da poesia dos cantores parece uma polémica insensata, tanto mais que tropeça em figuras como Vinícius, Caetano, Chico Buarque. É cada texto que garante a sua qualidade, não o facto de vir de um “poeta” ou de um “cantor” (ou autor de canções), do livro ou do cd. Apercebendo-me da criatividade que vi em muitas canções de Sérgio Godinho, atrevi-me, então com algum escândalo universitário, a propor a edição dessas canções e a estudá-las, contribuindo modestamente para desmoralizar um preconceito tonto como todos os preconceitos.
A barbárie já pareceu mais longe
A – Em tempos chegou a defender a alteração do hino nacional. Por manifesta desadequação ao tempo? Ou porquê?
AS – Se a música do hino é interessante, mau grado a passagem em que muitos desafinam, o poema que a acompanha é ruinzinho, e ideologicamente inaceitável. Mas ainda há bem pior em hinos nacionais – como demonstrei no meu estudo publicado autonomamente em 1973, e incluído em Literatura Marginal(izada) – Novos Ensaios (1980) –, sobretudo os que exaltam sem pudor alguns feitos nacionais, os que supõem uma comunidade bem superior a todas as outras, e os que incitam à morte ou ao morticínio. Veja-se o hino do Mónaco, ou o do México, que entretanto foi amputado ou modificado. Os 3 mil exemplares da edição original do meu estudo desapareceram rapidamente, mas salvo erro só foi falado em dois jornais, um dos quais um obscuro pasquim salazarista, que naturalmente o atacou, sem curar dos meus argumentos. Muitos anos mais tarde, Alçada Baptista também arremeteu contra o hino, houve então grande arruído, e só a Visão se lembrou do que eu já dissera. Um hino nacional vale como símbolo, mas não escapa à leitura ideológica e não é um símbolo mudo como uma bandeira. Além de ridículo, parece hoje infame ouvir multidões ou criancinhas a gritar “Às armas! Às armas”, grito por sinal pouco nacional, se ecoa a velhíssima “Marselhesa”.
A – Acompanha a mutação acelerada dos fenómenos da comunicação?
AS – A aceleração nem sempre me permite o acompanhamento, mas faço o que posso para me familiarizar com iPads e iPods. Tento ser um homem do meu tempo, mas não sou tão fanático das novas e proliferantes tecnologias que não veja as dependências ruins que criam, os seus “ruídos”, e o lixo que produzem; tento estar “ao corrente” mas distingo informação e conhecimento, obrigo-me a cruzar notícias e comentários, a desconstruir o que me vendem, a fugir ao “massacre” ou à saturação, e às vezes a sonhar com o regresso a uma “comunicação” oral e tribal que seja uma verdadeira “comunhão”.
A – Olhando em volta, pelo país e pelo mundo que também conhece bem, quais são os seus maiores receios?
AS – Receio, claro, a barbárie, que já pareceu mais longe. Receio a trindade assassina denunciada pelo mártir Jacques de Molay e invocada por Pessoa: a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania. Receio a estupidez, a começar pela minha. No plano mais pessoal, receio a perda da dignidade humana física e mental.
A – E os seus maiores desejos?
AS – Estar em paz comigo mesmo. Fazer das minhas fraquezas forças e dar uma pequena ajuda a quem dela precise. Ser cada dia moral e intelectualmente melhor.
A – Acredita que algum dia a poesia voltará a “estar na rua”, como afirmava Maria Helena Vieira da Silva em 1974?
AS – A poesia anda no ar, mais do que na rua, e é de quem a respirar. Só que também pode morrer, o que, como Blanchot disse da morte da literatura, até poderá ser um bom sinal, o de que já deixou de ser necessária. Mas até ver apenas os imbecis a poderão dispensar.
Poeta e professor
Aos 70 anos, é um homem atento. Avisa que a poesia pode morrer, tal como a literatura, mas acredita que não será tão cedo. Dono de uma biografia tão extensa como a sua obra literária, paraliterária e académica, Arnaldo Saraiva nasceu em 1939 na Covilhã, estudou em Lisboa e vive bem com o Douro por perto, mas a sua casa é o mundo.
Licenciado pela Universidade Lisboa, doutorado pela do Porto, discípulo de Barthes e de Gérard Genette, professor em várias academias de renome, Arnaldo Saraiva foi tudo isto como o mesmo empenhamento com que foi dirigente da Cooperativa Árvore e do Boavista Futebol Clube, colaborador da Televisão, da Rádio e de várias publicações portuguesas e estrangeiras.
Está representado na "Antologia dos Poetas Brasileiros - Fase Moderna", de Manuel Bandeira e Walmir Ayala e na "Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa", de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro. Publicou numerosos livros de poesia e traduções de outros poetas, de Brecht a Guilherme IX de Aquitânia, passando por Borges ou Mallarmé.
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