De todos os templos portugueses nenhum demorou tanto tempo a construir como o de Santa Engrácia – hoje Panteão Nacional – no coração da Lisboa antiga, que Ramalho Ortigão considerou «o mais belo dos nossos monumentos do século XVII». A sua história está intimamente ligada às crenças populares nascidas após o célebre «desacato de Santa Engrácia», em 1630, e constituiu o fulcro das atenções do «passeio de domingo» que o Centro Nacional de Cultura ontem realizou.
Durante perto de três horas, os passeantes percorreram as diversas dependências do monumento, e ouviram as explicações de Emmanuel Correia, professor do departamento de História da Faculdade de Letras de Lisboa, acerca do edifício e dos episódios que rodearam a sua construção.
As origens do templo de Santa Engrácia remontam ao século XVI, quando a infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel, pediu ao Papa Pio V autorização para criar uma freguesia naquele local. Conseguido o «sim» do Vaticano, a princesa ordenou de imediato a construção de uma igreja no Campo de Santa Clara, junto de São Vicente de Fora.
Estava em voga, nesse tempo, o culto de Santa Engrácia, relacionado, ao que parece, com as relações políticas e familiares existentes entre os reis de Portugal e Aragão, onde a santa teria sido supliciada.
De facto, segundo rezam as crónicas de João Baptista de Castro, beneficiado da Basílica Patriarcal de Lisboa, «Santa Engrácia, glorioso ornamento da cidade de Braga, derramou pela fé seu virginal e nobilíssimo sangue em Saragoça de Aragão, com os mais esquisitos tormentos que podia inventar a crueldade».
«Muitos dias esteve com os fígados arrancados» – acrescenta aquele clérigo – «o coração patente e rasgado o peito, protestando ainda alegremente a fé de Cristo e merecendo ainda viva o raro título de Mártir, como elegantemente cantou Prudência em um admirável hino. como testemunha de vista».
«O desacato» e os atrasos
Em 1630 deu-se o «desacato»: numa noite de princípios de Janeiro. a igreja de Santa Engrácia foi assaltada por desconhecidos que arrombaram o sacrário e levaram consigo as hóstias. Um jovem judeu, Simão Pires Solis, foi imediatamente preso como suspeito da autoria do crime, uma vez que era visto frequentemente por aquelas paragens a altas horas da madrugada.
Embora Simão se declarasse sempre inocente das acusações que lhe faziam acabou por ser julgado e condenado a morrer na fogueira, depois de lhe serem decepadas as duas mãos. A igreja foi, entretanto, demolida para ali se construir um templo mais grandioso, para desagravo do sacrilégio.
Conta a lenda que Simão terá afirmado, momentos antes de morrer, que «é tão certo eu estar inocenite como as obras de Santa Engrácia nunca mais acabarem». Anos mais tarde, a inocência do jovem judeu foi de facto provada, assim como o motivo das suas deambulações nocturnas – nem menos que uma jovem freira do convento de Santa Clara, alvo da paixão e dos galanteios de Simão.
A falta de meios e o receio provocado pela «profecia» do supliciado acabaram por originar grandes atrasos na conclusão da obra. Primeiro foi a cúpula que ruiu, devido um erro de cálculo por parte do arquitecto responsável. A isto seguirram-se as sucessivas hesitações de D. João V, mais preocupado com o Aqueduto das Aguas Livres e com as obras de Mafra do que com a pequena igreja.
Daí que a conclusão do templo de Santa Engrácia se mantivesse adiada e as obras continuassem ainda no século XIX, já sem grande convicção por parte dos seus encarregados.
Em 1835, o templo foi entregue ao Ministério da Guerra e passou a servir de aquartelamento da Guarda Nacional, transformando-se posteriormente em depósito de material de guerra e, já nos princípios do século XX, em fábrica de calçado do exército.
Com o advento da República, as entidades governamentais decidiram transformar o tempo em Panteão Nacional, objectivo definido por decreto de 29 de Abril de 1916. Para tanto era necessário construir a cúpula, o que só começou a ser feito em 1956 e cuja conclusão estava prevista para 1976.
No entanto, por pressões do ministro das Obras Públicas da altura, a cúpula acabou por ser concluída dez anos antes da data prevista, a fim de participar nas comemorações do 40,° aniversário do golpe de 1926 – pomposamente designado por Salazar como «Revolução Nacional».
Nas salas laterais do Panteão encontram-se presentemente os túmulos dos escritores e presidentes da República que se encontravam nos Jerónimos, à excepção do de Alexandre Herculano, divididos por duas secções distintas que tomaram o nome de «panteão dos escritores» e «panteão dos presidentes».
Publicado em O Diário | 25.Mai.1981