A partilha da água

A partilha da água

«Para mim é sempre bom ter uma oportunidade de estar junto das pessoas, de passar com elas bons momentos. Quanto mais vezes estivermos juntos, mais poderemos falar uns com os outros, mais poderemos aprender. Uns com os outros e uns sobre os outros.»

No terraço de um hotel de Lisboa, Richie Havens fala-me assim da sua segunda visita a Portugal, desta vez para participar no espectáculo de encerramento do Festival «Dêem Uma Oportunidade à Paz», que decorreu no último sábado, em Setúbal. Aos 42 anos, quinze decorridos após Woodstock, Richie continua a parecer-se com os velhos hippies da geração de 60, embora sem deixar transparecer qualquer ponta de saudosismo em relação ao que foi feito pelos homens e mulheres do seu tempo.

De Richie Havens diz o crítico catalão Jordi Sierra i Fabra que «é um génio dificilmente enquadrável em algum estilo ou tendência». E acrescenta: «A sua voz, que parece emergir do fundo de uma alma eriçada de escolhos, e a sua guitarra, soando sempre de uma forma única e inconfundível, deram-lhe uma categoria total e fizeram dele um verdadeiro mito dos anos 60 carregado, ainda hoje, de entusiasmo juvenil.» O entusiasmo e a juventude constituem, de facto, os dois atributos principais do cantor norte-americano, perceptíveis de imediato a qualquer interlocutor atento.

Fala calmamente, sempre com um sorriso, manifestando a sua confiança na geração dos anos 80 que são, para ele «a esperança actual» e «a hipótese de mudança que vai certamente acontecer dentro de 25 ou 30 anos». Quase nostálgico quando se refere a John Lennon («foi meu amigo, sabias?»), afirma-se um sujeito «muito realista» para quem Deus é «um conceito científico e não religioso». E cita, a propósito, o clássico de Robert Heinlein, Um Estranho Numa Terra Estranha, considerado por muitos como uma espécie de bíblia do movimento hippie: «Eu sou Deus, tu és Deus.» E sorri, outra vez, como se fosse Valentine Michael Smith e partilhasse comigo a sua água.

«Há muitas coisas para dizer»

– Estiveste em Portugal há quatro anos, na Festa do «Avante!» Como foi essa tua primeira experiência por cá?

– Foi fantástico. Foi qualquer coisa que eu não esperava, com milhares de pessoas dispostas a ouvir-me e a reagirem optimamente. Pensei logo que teria de voltar cá rapidamente, mas o trabalho não tem deixado. Ando sempre a correr por aí e ainda não é desta vez que eu vou ter o tempo de que gostaria para contactar «a sério» com as pessoas, para aprender mais coisas sobre os portugueses.

– Surpreendeu-te, o público português?

– É difícil de dizer. Eu acho que o público europeu, de um modo geral, aprecia a música de uma forma bem diferente dos americanos. Na América, a música é basicamente um comércio onde pouco conta aquilo que pode transmitir a cada um...

– O facto de estares em Lisboa para cantar num festival sobre a paz é especialmente importante para ti?

– É importante estar em qualquer festival (ri). O que interessa é que as pessoas se reúnam e possam falar. E há muitas coisas que temos para dizer uns aos outros. E para aprender, também.

– A tua «mensagem» e os teus ideais são ainda os mesmos de quando começaste a cantar?

– São. As pessoas são pessoas em qualquer parte do mundo e em qualquer época. E as minhas canções mantêm-se actuais, porque as questões de fundo são ainda as mesmas...

– Disseste uma vez que és «apenas um cantor». E ainda isso que sentes?

– Penso que sim. Para mim, o importante é cantar canções, independentemente de serem blues ou folk songs. O importante é cantar coisas de que tu gostes porque significam qualquer coisa para ti e porque falam de coisas que acontecem a toda a gente em toda a parte do mundo. São estas as canções que eu sinto que devo cantar, porque o que fundamentalmente me interessa é comunicar com os outros e penso que é essa uma das funções mais importantes da canção. A música pode ser um entretenimento, mas a canção tem de ser mais qualquer coisa.

«Gostava de conhecer José Afonso»

– Achas que há um movimento novo, ao nível da música popular?

– Penso que sim. Para mim, o «novo movimento» é a forma como a malta nova procura comunicar hoje entre si. Há um estilo, uma forma de expressão que é comum e que tanto pode ser o rock'n'roll como um outro género qualquer. Para mim, isso faz parte de uma base de entendimento global e, musicalmente, acaba por estar ligada à música tradicional, uma vez que é preciso entender o que se passa à nossa volta para sabermos comunicar com os que estão mais longe...

– Tiveste já algum contacto com músicos portugueses?

– Fui apresentado a alguns, da última vez que cá estive, mas não houve tempo para estabelecer um contacto mais profundo. Penso que, no fim deste ano, poderei arranjar dois meses para visitar alguns locais, para estabelecer contactos e falar com pessoas. Tenho de ir a Espanha, pretendo regressar Portugal mas, desta vez, não é para cantar.

– Conheces alguma coisa da música portuguesa actual?

– Ouvi um pouco na Rádio (ri-se). Mas não me parece que essa seja a melhor referência. Praticamente só ouvi música americana, como é que vocês fazem isso? De qualquer modo gostava de conhecer, de ouvir a sério o que aqui se faz. Já ouvi falar em José Afonso, gostava de o conhecer, de falar com ele...

– Tu és um cantor da geração de Woodstock, que influenciou todo o mundo da música...

– É verdade. Por razões diferentes e em lugares diferentes, o Woodstock teve uma influência enorme. Foi o espectáculo, foram os discos, foi o filme... E havia ali qualquer coisa com que todas as pessoas se identificavam. Eu penso mesmo que o filme teve muito mais impacto do que o espectáculo ao vivo. E isso foi um princípio de uma nova forma de expressão...

«Afinal somos muitos...»

– Achas que é possível haver um novo Woodstock?

– Há muitas coisas hoje parecidas com o «velho» Woodstock (risos). Sim, acho que é possível, porque afinal houve uma razão maior do que a própria vontade das pessoas que o fizeram: toda a gente precisava de saber coisas, de encontrar coisas novas. No fundo, eram homens e mulheres que iam à procura de um espectáculo e encontraram muitas outras coisas. É aquilo a que eu chamo um «acidente cósmico»... As pessoas vinham da Califórnia, do Alaska, sei lá de onde e, a certa altura, olharam umas para as outras e deram por si a pensar: «Afinal somos muitos. E estamos aqui, sem lutar uns com os outros, à descoberta de coisas que nunca tínhamos imaginado.» Eu sei que a juventude de hoje tem muito menos para descobrir. Mas há uma coisa que eles ainda não sabem e que é extremamente importante: é que eles são esse «novo» Woodstock...

– Mas, hoje, os mais novos dizem que Woodstock morreu, que já não há uma esperança...

– Pois. Mas eles são essa esperança. E nós ainda não lhes dissemos porque continuamos a pensar que fomos nós que fizemos as coisas, que modificámos tudo. Mas só fizemos, de facto, para nós mesmos. Eles têm também de o fazer e essa é a única coisa que eu acho que devemos dizer aos mais novos: onde está a esperança. Eles possuem hoje, de uma forma natural, aquilo que nós aprendemos. Por isso, precisam de lutar para transformar as suas utopias em coisas verdadeiras, naturais, tal como nós fizemos. Tu não podes viver alheado da esperança do passado, porque a esperança do passado és tu. É por isso que eu continuo a cantar as minhas canções...

– Porque os homens dos anos 60 têm alguma coisa para dar aos dos anos 80?

– Exactamente. Os problemas são os mesmos. Talvez até piores. O que significa que nós temos de ser melhores do que fomos. E temos os jovens a fazer melhor do que nós fizemos, embora sem o saberem. Porque, para eles, é uma coisa natural serem melhores do que nós...

«Os povos são iguais»

– Achas que é possível levar à prática as teorias sobre a paz e o desarmamento?

– Sinceramente, acho que sim. Porque os jovens têm perfeita conscíéncía daquilo que não querern. Eles não querem bombas, não querem a guerra. Só os governos é que falam de bombas e só eles é que defendem a militarização. Não são nunca os povos. E quando nós soubermos dizer com firmeza que não queremos a guerra, alguma coisa vai mudar. Definitivamente. Isso consegue-se com o contacto humano. Eu e tu, por exemplo: dantes não nos conhecíamos. Mas agora sabemos que estamos do mesmo lado, que nenhum de nós deseja a guerra...

– No entanto não é fácil estabelecer a unidade quanto a esse problema, porque as forças políticas dividiram as opiniões. Os americanos acusam os soviéticos, os soviéticos acusam os americanos...

– E ambos têm razão. Mas isso não tem nada a ver com o povo russo ou com o povo americano. O problema é que o mundo inteiro sofre do mesmo mal: os governos, o poder. O povo americano é igual ao povo russo ou ao português ou a outro qualquer: não quer bombas, não quer a guerra. É tão simples como isso. E é essa a mensagem dos anos 80...

– Sabes que o nome deste festival é uma célebre frase de John Lennon: «Dêem uma oportunidade à Paz»...

– A sério? Não me tinham dito... Fico contente por saber disso. O John foi meu amigo, sabias? Acho que isso é a confirmação de que no planeta inteiro se está a estabelecer uma ideia global. E por isso que eu penso que não precisamos de olhar para os outros países para fazermos um Woodstock. Caca um de nós tem, afinal, o seu próprio Woodstock...

– O John Lennon teve muita influência no teu trabalho?

– Creio que qualquer um de nós influenciou o outro, mas, principalmente, no plano da amizade. A primeira canção dos Beatles que eu cantei foi, salvo erro, «Eleanor Rigby», de Lennon e McCartney. Depois disso devo ter gravado umas 14 ou 15 canções dos Beatles. Conheci o John Lennon em Nova lorque, em 1968, quando estava a trabalhar para o meu segundo álbum. A partir daí encontrávamo-nos sempre que podíamos e estabelecemos uma amizade que se baseava no facto de sermos pessoas do mesmo mundo. Foi uma coisa muito natural, de homem para homem, que não teve nada a ver com o«show business»...

– Pareces ser um tipo muito sonhador. É verdade?

– Compreendo (sorri). Não, acho que não sou assim tanto, mas se pensas assim, ainda bem. Acho que sou muito mais realista do que possa parecer.

– Como te defines, então?

– Como pessoa sou um tipo como todos os outros. Eu penso que os sonhos são uma coisa para cada um, não para o mundo. O nosso trabalho é para o mundo, os sonhos são para nós. Os meus sonhos são muito académicos, incluem toda a gente, mas penso que não sonho assim tanto. Talvez porque gosto muito da realidade...

– Mas os sonhos também podem tornar-se realidade...

– Sim, é verdade. Mas repara: eu cresci a acreditar que todas as pessoas são iguais, independentemente da raça ou do país em que nascem. Mas não tinha provas reais. Eu sabia o que queria fazer, que queria viajar e tocar guitarra. Hoje posso fazê-lo, tenho sorte. Viajo muito e tenho milhões de amigos. E isso é muito real...

«Nós somos Deus»

– Se voltasses atrás terias feito o mesmo?

– Sim, precisamente o mesmo. Porque hoje vejo que os jovens são muito mais «naturais» do que nós fomos, muito mais brilhantes. E acho que não nos devemos preocupar com o que eles pensam. Não há mais mensagens para aprender, porque eles conhecem os parâmetros da realidade. Acho que a possibilidade de mudança está sempre na juventude e na capacidade de diálogo e de união das pessoas. Vê o que aconteceu com o Papa, na Polónia. Ele não modificou apenas o governo polaco: modificou toda a estrutura de poder do Leste. E viste o que eles fizeram? Tentaram remediar as coisas... Mas não vão conseguir. Eu acho que a juventude tem tanto ou mais poder do que o Papa. E o Papa tem o maior exército do mundo, que são os católicos. E, se quiser, consegue grandes modificações sociais. Isto é o princípio da organização global. O mundo novo é isto e vai surgir a partir da malta nova. Talvez daqui a 25 ou 30 anos vá ser possível alcançá-lo.

– Acreditas em Deus?

(Após uma pausa) Sim. Mas não em termos religiosos. Acredito num Deus científico. Porque o que muita gente não sabe ou esquece é que a religião foi a primeira ciência. E acredito, principalmente, naquilo que todos os livros santos dizem: que Deus é todas as coisas... E é também nós próprios. Portanto se, como dizem, Deus tem de fazer as coisas certas, nós também temos de as fazer. Porque nós somos Deus, tal como somos governo.

– Tal como dizia Robert Heinlein, não é?

– Precisamente: eu sou Deus, tu és Deus.

Publicado no Se7e | 3.Ago.1983