No Natal, o Rossio transforma-se numa espécie de presépio gigante, carregado de luzes e gente que se atropela. Um presépio sofregamente mercantilista, onde os reis magos foram há muito substituídos pelos agentes da Casa da Sorte e os pastores ganharam a forma de polícias sem rosto. Os meninos do presépio do Rossio andam pelas ruas do Metro a vender pensos rápidos, alimentando-se na esperança de uma estrela qualquer que os guie a novo destino. E São José, na encosta do Martim Moniz, aguarda pacientemente a chegada dos bêbados e das putas que o Pai Natal esqueceu.
O Rossio é, por natureza, como que o espelho de uma certa Lisboa, capital das nossas angústias, a cidade grande do desamor oficial, o palco das governações medíocres e dos torneios de cavalaria parlamentares. Por isso é que o Rossio e o Natal se entendem bem: em ambos se institucionalizou o faz-de-conta, o cumprimento bem educado para remissão dos nossos pecados diários, o afecto standard da caridadezinha vestida nos Armazéns do Chiado.
Felizmente, o meu Natal aconteceu bem longe deste Rossio e desta cidade, num lugarzinho onde não há autocarros laranja nem shopping centers e onde ainda vivem algumas pessoas que acreditam no que dizem quando trocam desejos de boas-festas. Felizmente, eu sou daqueles que possuem uma terra a que podem chamar sua e onde a vida ainda decorre fora dos cinzentos caixotes à Jota Pimenta, em ruas onde os vizinhos são mesmo vizinhos - às vezes agradáveis, outras impertinentes mas, sobretudo, gente.
É desse lugar encaixado a norte, entre o mar e as estrelas (as estrelas que restam da civilização), que vos escrevo esta croniqueta, no rescaldo de mais uma noite de Natal, e não posso deixar de pensar no que vai por Lisboa, no Rossio de pantominas e luzinhas brilhantes. Dizem-me que sou um tanto dado a pensamentos algo melancólicos e talvez seja isso. A verdade, porém, é que eu gostaria de poder acreditar nesse Natal de que me falavam em miúdo, na reconciliação, na pureza das intenções humanas.
Mas penso nos putos do Metro, nas Marias do Bairro Alto, nos bêbados sem esperança, no mendigo que escreveu um cartaz com votos de «um Natal muito alegre para V. Exa.». Penso, também, no estado de sítio na Polónia, nas invasões a Angola, nos assassinatos da Bolívia, nos discursos de Reagan, na festa de aniversário de Brejnev, nas intermináveis «conversas para a paz e o desarmamento». E fico sem saber se hei-de rir ou chorar quando o ministro não-sei-quê aparece na televisão a falar do amor e da liberdade, da «vocação cristã» dos lusitanos e da «missão histórica da nossa pátria».
Não sei se é por causa de tudo isto - o Rossio, os mendigos, os ministros, a farsa - que, quase instintivamente, dou comigo a procurar o «Cântico de Natal» de Dickens, um livrinho que desde há não sei quantos anos consegue comover-me de uma forma que nunca consegui explicar. Provavelmente é porque, no fundo, bem no fundo de mim ainda existe um qualquer espírito de Natal idêntico aos que atormentavam o velho Scrooge da fábula. Será isso? Ou apenas uma réstia de saudosismo por todo o universo fantasticamente louco de uma infância já inacessível?
Não sei: A verdade é que os putos de hoje crescem ao som das hi-fis e dos PAs, o Chico Fininho substituiu o Jingle Bells e o Holly Night, os cheques-disco ocuparam o lugar dos bombons e dos automóveis de corda nos «sapatinhos». O Menino Jesus nunca mais nasceu em Belém (talvez antes na Maternidade Alfredo da Costa, quem sabe?) e até o Pai Natal vai passar a servir-se de «walkie talkies», segundo dizia um vespertino. Coisas da CEE, que Portugal é um país à descoberta da Europa. Pois sim.
Cá por mim, continuo a preferir os velhos espíritos do sr. Ebenezer Scrooge, o Pai Natal antigo que descia pelas chaminés e caminhava pelas estrelas num trenó puxado por renas aladas. Mesmo quando o Rossio se apresenta como um presépio gigante e os reis magos usam gravata e fatinho de ver-a-Deus. Mesmo quando Lisboa inteira e os ministros e os amigos me dizem que tudo isso é fantasia de garotos. Melancolia ou saudosismo, chamem-lhe o que quiserem. Mas, por favor, não matem os meus espíritos.
Se7e | 30.Dez.1981