A vida é frequentemente injusta, sobretudo para aqueles que mais a amam. António Assunção era um desses, e nem o seu aparente mau feitio conseguia esconder esse grande gosto de viver que animou toda a sua existência. Homem e actor coerente com os princípios da justiça, liberdade e igualdade que tomou como seus desde muito novo, fez sempre questão de não ceder naquilo que considerava ser o essencial.
Pagou por isso, claro. Com o ostracismo a que muitas vezes foi votado, apesar de ser unanimemente considerado no meio teatral como um dos seus praticantes mais talentosos. E, porque era de esquerda, convicta e assumidamente de esquerda, viu-se também alvo do desprezo dos vários poderes. Um desprezo, de resto, que de certa forma o divertia e que ele retribuía em dose reforçada.
O grande público conhecia-o sobretudo dos muitos papéis que representou para a televisão. Ficaram célebres as suas aparições em séries como “Zé Gato”, “Caldo de Pedra” ou “Duarte e Companhia”, que o popularizaram e ajudaram a criar dele a imagem de actor cómico. E se é verdade que Assunção era um humorista de grande talento, não é menos verdade que foi como actor dramático que desempenhou alguns dos seus papéis mais marcantes – de Brecht a Luís de Stau Monteiro, passando por García Lorca, Shakespeare, Nicolau Gogol, Molière, Gil Vicente ou Samuel Beckett.
Natural do Porto, António Assunção estreou-se como actor em 1965, com a peça “O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer”, de Guzani, no Teatro Experimental do Porto. O Maio de 68 apanha-o em Paris, onde viveu durante boa parte da década de 60 e princípios de 70. Após o 25 de Abril regressa definitivamente a Portugal, onde trabalhou no Teatro de Animação de Setúbal (entre 75 e 77) e no Grupo de Campolide de Joaquim Benite, mais tarde transformado na Companhia de Teatro de Almada. Aí permaneceu até à sua morte, dando vida e corpo a alguns personagens notáveis, em quase todas as peças levadas à cena pelo grupo.
Participou ainda em diversos filmes de Luís Filipe Rocha (“Amor e Dedinhos de Pé”), Fernando Lopes (“Crónica dos Bons Malandros”), Luís Galvão Teles (“A Vida é Bela”), António de Macedo (“Os Abismos da Meia Noite”), entre outras produções nacionais e estrangeiras, como “A Casa dos Espíritos”. O seu mais recente trabalho para televisão, a série “Ballets Roses”, com argumento de Moita Flores, permanece inédita.
A viver no Bairro Alto, paredes meias com o palácio do Grande Oriente Lusitano, a sede da Maçonaria, António Assunção era um habituée das últimas tertúlias do Largo da Misericórdia, onde costumava encontrar-se com Herberto Helder e outros amigos – poetas, actores, jornalistas ou simples cidadãos apreciadores de um copo e dois dedos de conversa – em infindáveis e sempre imprevisíveis conversas de fim de tarde. Conversas que, a partir de agora, ficam irremediavelmente mais pobres e mais tristes.
O mesmo jornal onde leio a notícia da tua morte dá-me conta da intenção de João Paulo II de beatificar o cardeal fascista Alojzije Stepinac, um croata que foi julgado e condenado por colaboração com o nazismo durante a II Guerrra Mundial – e hoje considerado pela extrema-direita da ex-Jugoslávia como “uma vítima do comunismo”. Leio isto sem surpresa, habituado que estou às crises cíclicas de hipocrisia do papa polaco, mas não consigo deixar de imaginar a tua reacção indignada. Vejo-te a invectivar Woytila e o resto da cáfila, provavelmente com mais humor do que raiva.
“Coisas da padralhada”, dirias tu, talvez, entre outras verves menos publicáveis. Nunca to disse (a amizade tem destas timidezes inexplicáveis), mas o que desde sempre mais apreciei em ti foi essa tua frontalidade e sobretudo essa imensa capacidade de indignação de que nunca prescindiste. Uma indignação que frequentemente te tornava verrinoso, amargo, aparentemente desiludido com a vida e com os seus protagonistas quotidianos. Ainda há poucos dias nos rimos todos, quando nos comunicaste que a SIC te tinha convidado para o “Furor” – esse monumento à imbecilidade, ao pé do qual até o Big Show do Baião parece um programa intelectual. Disseste-lhes, então, que irias, sim senhor, mas só na condição de te deixarem cantar “A Internacional”, o “Avante Camarada” e a “Grândola Vila Morena”...
Foi aí, também, que ficámos a saber quanto vale fazer figura de parvo perante o país inteiro: 50 contos, nem mais, exactamente o cachet que queriam pagar-te para que desses pulinhos e karaokasses ao ritmo da Bárbara Guimarães! É verdade, meu caro António, a vida é mesmo injusta e trapaceira. E vê bem a ironia: tu, que passaste a vida a mandar vir contra os américas, acabaste por ir morrer à terra deles. Conhecendo-te como te conheço, não me admirava nada que o fizesses só para chatear os camones. Mas, caramba, escusavas de nos pregar essa partida.
Sem ti e sem os teus humores variáveis, o Bairro Alto ficou mais triste. Aos poucos, o Largo da Misericórdia vai ficando deserto de todos aqueles que lhe davam vida. Primeiro foi o Forte, depois o Manuel da Fonseca, a seguir o Pignatelli – para só falar dos mais públicos e notórios. E agora tu, porra, traído por esse coração de Quixote em corpo de Sancho Pança. Era só o que faltava! Olha: se vires lá por cima, no barzinho do céu, a galega D. Emília dá-lhe saudades nossas e bebe uma imperial por mim. De ti, já sabes, não nos vamos esquecer tão cedo.
Textos publicados no Grande Amadora | 28.Ago.1998