O juiz espanhol Crespo Márquez, que em 1965 acompanhou as investigações, em Badajoz, do assassínio de Humberto Delgado, considera «pura fantasia» a tese apresentada no programa «Repórteres», da RTP, pelo filho do sub-inspector da PIDE, Casimiro Monteiro, autor material do homicídio. Segundo o filho do pide, Monteiro teria disparado contra o general «em legítima defesa», um argumento que o processo conduzido pelo Tribunal Militar português, desmontou há mais de dez anos.
Crespo Márquez manifestou junto dos familiares de Delgado a sua «estranheza» pela forma «absurda» como, em edição posterior do mesmo programa, foram utilizadas as suas declarações, produzidas há dois anos [1990] para a tele-reportagem «Crime sem Castigo», com o intuito de «corroborar as teses do filho do assassino».
Entretanto, cerca de 20 personalidades de diversos quadrantes da vida política portuguesa subscreveram esta semana um comunicado em que manifestam solidariedade com a família de Humberto Delgado, na sequência da polémica levantada pela entrevista a Monteiro filho, conduzi¬da por Rui Araújo para a primeira edição do programa «Repórteres», transmitido pelo Canal 1 em 22 de Setembro último e, por satélite, pela RTP Internacional, quinze dias depois.
Almeida Santos, José Augusto Seabra, Coimbra Martins, Emídio Guerreiro, Victorino de Almeida, Manuel Alegre, Costa e Melo, Mário Cal Brandão, Maria Antónia Palla e José Magalhães Godinho, juntamente com mais uma dezena de individualidades, protestam também contra o que foi dito na edição de 6 de Outubro do mesmo programa, «onde se fez crer ao público que Iva Delgado rejeitara o direito de resposta, o que é falso».
A utilização das declarações do juiz Crespo Marquez «sem indicação de origem ou menção do contexto em que foram proferidas constitui um gravíssimo atentado aos princípios deontológicos da informação pública», referem ainda os signatários do documento.
40 minutos de tempo de antena
O «tempo de antena» concedido ao filho do pide Casimiro Monteiro (no total de 40 minutos e 38 segundos, contando com os spots publicitários emitidos entre 18 e 21 de Setembro) provocou algum mal-estar no seio da própria RTP, que se viu confrontada com uma verdadeira onda de indignação nacional, a começar pelo Presidente da República, Mário Soares, que considerou «inadmissível que uma televisão estatal, paga pelos contribuintes, defendesse teorias de carácter fascista sobre o assassínio de Delgado».
No Parlamento, o PCP apresentou um voto de protesto (que mereceu a aprovação do PS e a abstenção do PSD e do CDS) considerando que o programa conduzia «ao branqueamento e desculpabilização dos crimes praticados pela ditadura», enquanto os antigos apoiantes de Delgado e muitos outros cidadãos enviaram comunicados de protesto ao Governo, ao Provedor de Justiça, a Assembleia da Republica, Supremo Tribunal Militar, administração da RTP e Ordem dos Advogados.
Iva Delgado, que garante estar disposta a lutar pela reparação da verdade, «mesmo que seja necessário recorrer aos tribunais», apresentou já recurso à Alta Autoridade para a Comunicação Social e enviou ao Parlamento Europeu uma petição no sentido de obter daquele órgão comunitário «uma posição e uma reprovação parlamentar eficaz dos actos, posições e pseudo-teses que negam, contra toda a evidência, os crimes do totalitarismo e da sua modalidade nazi-fascista, que os desculpam ou atenuam, ou que reabilitam ou propõem à admiração os responsáveis por esses crimes e os assassinos que os executaram».
A petição, assinada por José Saramago, David Mourão-Ferreira, Natália Correia, Eduardo Lourenço, Jorge Miranda, Francisco Sousa Tavares, Pezarat Correia e dezenas de outras individualidades, lembra que a memória de Delgado «constitui legado histórico e humano da maior dignidade, pelo seu heroísmo na luta pela liberdade do povo português» e refere o reconhecimento da sua obra pelo Estado português, «elevando-o a título póstumo a marechal da Força Aérea e transladando os seus restos mortais para o Panteão Nacional».
Reabilitacão de pides
No centro da polémica está a tese defendida pelo filho do pide segundo a qual Casimiro Monteiro disparara «em legitima defesa», quando esta provado que Delgado se encontrava desarmado. Como confirmou a «O Jornal» a filha do marechal assassinado, Iva Delgado, «nunca, no tribunal, qualquer dos pides falou da existência de armas das vítimas, pela razão muito simples de que as armas ficaram em Argel.»
Delgado e a sua secretaria, Arajarir Campos, tinham consciência de que «era extremamente perigoso viajar para a Espanha de Franco e ser apanhado com armas na bagagem», acrescenta Iva Delgado. «Por outro lado, como é sabido, quem premedita um crime e o executa não pode nunca invocar legítima defesa».
Na sequência da transmissão do programa, da responsabilidade de Artur Albarran, Iva Delgado dirigiu-se à RTP para que, nos termos da lei, lhe fosse concedido direito de resposta e pedindo que a sua carta fosse lida «aos microfones da RTP para reposição da verdade e reparação pública do dano moral causado».
Em vez disco, José Eduardo Moniz escreveu-lhe convidando-a para participar na edição seguinte do programa «Repórteres» – que, de acordo com o que fora anunciado por Albarran em 22 de Setembro, deveria incluir novas entrevistas a outros pides envolvidos no caso Delgado.
«Expliquei a José Eduardo Moniz que estou disponível para participar em qualquer programa, excepto nesse, por me repugnar a sensibilidade a presença de pessoas implicadas no assassínio de meu pai», afirma Iva Delgado. «Mas mantive, como mantenho, o pedido de direito de resposta, o que é diferente.»
Contudo, em vez de entrevistas com outros pides, o programa de 6 de Outubro reproduziu excertos do programa «Crime sem Castigo», realizado há dois anos, o que resultou, na perspectiva da família Delgado, «na reafirmação da tese da legítima defesa, apresentada pelo filho do assassino». Uma tese que, aliás, não é nova, como lembra Iva Delgado:
«A PIDE sempre tentou apresentar a justificação de que não se tratava de crime premeditado, mas de tentativa de rapto. Essa tese é falsa, como se comprovou. Os pides levaram cal no porta-bagagens e mantas para cobrir os cadáveres. A cilada foi preparada com meses de antecedência e com o conhecimento dos responsáveis ao mais alto nível.»
Para Iva Delgado, o documentário da RTP «não surgiu por acaso», mas está integrado numa mais vasta «tentativa de reabilitação de pides» de que a recente atribuição de pensões a alguns agentes da polícia fascista por «relevantes serviços prestados a pátria» faz parte.
A filha do marechal que ousou opor-se a Salazar lamenta «que jornalistas com tanto poder mediático nas mãos tenham infringido de forma tão primária o mais elementar sentido de isenção e rigor, para não falar em decência e decoro». E remata: «Porque não entrevistam os filhos das vítimas da PIDE? Quantos casos humanos não estarão ainda por resolver pelo sofrimento provocado a tantos portugueses?»
O Jornal | 16.Out.1992