Quando editou «Por Este Rio Acima», no já longínquo ano de 1982, Fausto Bordalo Dias estaria longe de imaginar a verdadeira revolução que esse seu disco iria causar no universo da música portuguesa. Até então, apenas José Afonso conseguira (com «Cantigas do Maio», em 1972) elaborar uma obra tão radicalmente diferente de tudo o que existia e, simultaneamente, tão cheia de novos caminhos por explorar.
Falo da música, mas também da poesia (ao nível da melhor que em terras lusas se tem publicado) e, ainda, de um conceito estético que, na realidade, só depois de «Por Este Rio Acima» tomou forma definitiva: a Música Popular Portuguesa, entendida como uma forma de identidade cultural multi-expressiva e não, como pretendiam os seus detractores, como um modelo de uniformização formal.
Por tudo o que ficou dito, é fácil perceber a tendência (predominante em alguma da chamada «crítica discográfica» nacional) para a comparação de cada novo trabalho de Fausto com «Por Este Rio Acima». Nada mais lógico, mas também nada mais redutor. De resto, basta uma audição atenta de «O Despertar dos Alquimistas» ou de «Para Além das Cordilheiras», para entender que, desde 82, a arte e o pensamento de Fausto não pararam de evoluir.
O duplo CD agora publicado, «Crónicas da Terra Ardente», vai, decerto, acentuar essa síndrome comparativa de que padecem os críticos menos atentos. O próprio Fausto, ao retomar a temática inesgotável da Diáspora, lhes facilitou de certa forma o «trabalho». Função inútil, creio eu, já que será difícil encontrar outros pontos de contacto entre os dois discos, para lá do tema genérico e da filosofia musical do seu autor.
A densidade (narrativa e musical) assume, em «Crónicas da Terra Ardente», uma dimensão nunca antes experimentada por Fausto. Assim como o sentido do trágico, assumido não como um destino, mas quase como uma condição. Uma vez mais, Fausto surge perante nós como um navegador solitário contra as correntes dominantes da moda e do consumo. Os adeptos da «estética do hamburguer» decerto não vão gostar, mas também não foi a pensar neles que Fausto deu forma e som a estes «contos dos matagais, dos rios e das serras, de vales e quebradas, lugares e caminhos por toda aquela terra adentro».
Mais do que qualquer dos seus discos anteriores, «Crónicas da Terra Ardente» é uma obra para ser lida, atentamente lida, em todos os sentidos possíveis. Aqui se encontram as dúvidas e os medos, as incertezas e as vãs glórias de todos os tempos - quantos Sepúlvedas não sucumbem, ainda hoje, na sofrida terra angolana? - mas também os momentos de luzidio encanto, tão eternos como a humanidade.
Humanidade que, para Fausto Bordalo Dias, representa o maior dos valores, mas perante a qual não consegue esconder também algum desencanto. Mesmo assim, este não é um disco pessimista - muito embora, como afirmou recentemente outro poeta da vida, Fernando Alves, o optimismo seja, nos dias que correm, «um sortilégio dos imbecis».
Apesar do tom dramático que percorre todo este disco («(...) o meu corpo arrancou-se violento / num esforço arrastado / cuspiu-se num grito / do fundo mais negro de um pesadelo (...)») são inúmeros os sinais de esperança, mesmo se, por vezes, embutida de alguma tristeza. Como em «A Tua Presença», um dos mais belos temas do álbum, onde se podem encontrar vagas reminiscências da poesia de Fernando Pessoa ou de Herberto Hélder: «Eu já nada sinto / e afinal / eu gosto de não sentir nada / sozinho na calma das horas passadas / tão só numa outra quietude / num sossego tão só sossegado / e esquecido / eu me esqueça de mim (...)».
A verdade é que o tempo das certezas está definitivamente morto, e Fausto sabe-o melhor que ninguém. E convém não esquecer que, embora tendo como referência fundamental uma obra literária do século XVI – a «História Trágico-Marítima» e – este trabalho não se limita a reinterpretar os relatos reunidos por Bernardo Gomes de Brito, mas procura dar-lhes uma dimensão contemporânea - como, aliás, aconteceu em «Por Este Rio Acima», relativamente à «Peregrinação», de Fernão Mendes Pinto.
Musicalmente, «Crónicas da Terra Ardente» demontra, uma vez mais, o carácter inesgotável da nossa ritmica tradicional - demonstrado de modo sublime em «Na Ponta do Cabo», por exemplo - e a imensa criatividade de Fausto. Que navega, com a mesma segurança, nas águas agitadas de «A Chusma Salva-se Assim» ou no rio tranquilo de «Todo Este Céu».
E se, como músico, Fausto não faz mais do que confirmar a sua condição de compositor maior, como poeta julgo que com estas «Crónicas» alcançou em definitivo o estatuto dos eleitos. Querem um exemplo? Então leiam, por favor, esse belíssimo poema que tem por título «Ao Longo de um Claro Rio de Água Doce» e que começa assim: «E parecia aquele Tejo / este rio doirado / parecia até que tu vinhas / comigo ao meu lado / ou seria das flores / e das matas cheirosas / das madressilvas dos frutos / das ervas babosas (...)» Ou, se quiserem, ponham os olhos n'«O Mar»: «E todo o mar se cobriu de infinitas riquezas / de anil e sedas e jóias e de odoríferas drogas / de si deitava nas praias moscatéis e licores / adoçado de sua bravura (...)»
É este, afinal, o fascínio maior deste álbum: a possibilidade de encontrar, em cada audição, uma imensidão de coisas novas. Não é um disco passível de uma leitura linear, como o não são nunca as obras dos grandes criadores -- e essa é outra das suas virtudes. A viagem – as viagens – que neste disco nos propõe Fausto Bordalo Dias passa, sobretudo, por essa capacidade de reencontro, de invenção, de descoberta. De si mesmo e dos outros, de Portugal e do Mundo.
Grande Amadora | 2.Dez.1994
Uma viagem em dez etapas
Dez álbuns de originais num total de 12 discos publicados em 30 anos são a face palpável da carreira daquele que é hoje o compositor e intérprete mais carismático da Música Popular Portuguesa. A discografia de Fausto Bordalo Dias, iniciou-se em 1970 com um LP («Fausto», edição Philips) que incluía diversos textos de poetas portugueses. Nos anos que se seguiram a esse trabalho de estreia, Fausto dedicou-se sobretudo ao canto de intervenção – juntamente com Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e José Afonso, entre outros – actuando em inúmeras colectividades populares, universidades e espectáculos de carácter político.
A cantiga era uma arma e assim continuou a ser depois do 25 de Abril. A Revolução dos Cravos acontece numa altura em que Fausto se encontrava a gravar um novo álbum, produzido por Adriano Correia de Oliveira, que também participava (no tema «Daqui Desta Lisboa», com texto de Alexandre O’Neill), tal como José Afonso. Chamar-se-ia «Pró Que Der e Vier» (ed. Orfeu, 1974) e acabaria também por incluir alguns temas de carácter circunstancial, produto da vivência revolucionária da época.
No ano seguinte, Fausto edita «Beco Com Saída», um disco profundamente marcado pelas transformações sócio-políticas da época. Era o tempo da canção-ao-serviço-da-revolução, e o disco retrata com fidelidade essas vivências únicas da nossa história recente.
«Madrugada dos Trapeiros», editado em 1977, inclui aquele que permanece como um dos maiores êxitos do músico: «Rosalinda», um belíssimo manifesto ecológico, que foi, inclusivamente regravado em Espanha por Luís Pastor. É, ainda, um disco com uma profunda carga política, mas onde é já possível vislumbrar as novas preocupações estéticas do seu autor, nomeadamente através da utilização sistemática de elementos tradicionais – o embrião, afinal, daquilo que virá a ser conhecido como Música Popular Portuguesa.
Esta opção acentua-se no trabalho seguinte de Fausto, «Histórias de Viajeiros» (ed. Orfeu, 1979), onde a temática das Descobertas é abordada pela primeira vez («Peregrinações», «Nau Catrineta») e que marca, por assim dizer, o fim de um ciclo na sua obra.
Com a publicação de «Por Este Rio Acima» (ed. Sassetti, 1982), inicia-se uma nova era, não apenas na carreira de Fausto, como na música portuguesa em geral. Inspirado numa das obras maiores da nossa literatura (a «Peregrinação», de Fernão Mendes Pinto), «Por Este Rio Acima» tornou-se um verdadeiro ex-libris da MPP. Fausto conquistava, finalmente, o lugar que lhe cabia na história da música portuguesa.
Em 1985 surge «O Despertar dos Alquimistas» (ed. CBS), uma crónica pessoalíssima do percurso português pós-25 de Abril, onde Fausto retoma e desenvolve os conceitos musicais dos seus discos anteriores. Conceitos que se mantém em «Para Além das Cordilheiras» (ed. CBS, 1987), talvez o mais «europeu» de todos os discos de Fausto – e que lhe valeu ser designado vencedor da primeira edição do Prémio José Afonso, atribuído no âmbito do Festival de Música Popular da Amadora.
Em 1989, Fausto grava «A Preto e Branco», um disco de homenagem a alguns dos poetas africanos que mais marcaram a sua juventude – António Jacinto, Ernesto Lara Filho, Viriato da Cruz, Rui Nogar, Alexandre Dáskalos, Craveirinha, entre outros.
O duplo CD «Crónicas da Terra Ardente», editado este ano [1994] pela Sony, retoma a temática dos Descobrimentos, desta vez tendo por «fonte» privilegiada a «História Trágico-Marítima» de Bernardo Gomes de Brito. Segundo o próprio Fausto, este trabalho é a segunda parte de uma trilogia sobre a Diáspora lusitana, a completar em meados da primeira década do século XXI.
Grande Amadora | 2.Dez.1994