O direito à preguiça

O direito à preguiça

Face aos meios de produção modernos e à sua ilimitada potência reprodutiva, há que moderar a paixão extravagante dos operários pelo trabalho e obrigá-los a consumir as mercadorias que produzem.»

Ao contrário do que possa pensar-se, esta afirmação não pertence a nenhum discípulo de George Soros nem a qualquer executivo da Microsoft ou da Toyota. Não, esta frase foi escrita há 125 anos por Paul Lafargue, revolucionário francês e genro de Karl Marx, num manifesto que fez furor e causou escândalo, tanto entre a burguesia como entre a classe operária desse tempo. Chamava-se O Direito à Preguiça e exaltava as virtudes do ócio e do lazer contra os malefícios do trabalho.

Eu gosto imenso do meu trabalho, mas isso não significa que goste de trabalhar. Gostar do que fazemos é saudável, mas é também muito raro – e nesse aspecto devo dizer que sou um privilegiado porque tenho um trabalho que genericamente corresponde ao que sempre quis fazer. Mas a satisfação que esse trabalho me proporciona, desaparece quando por qualquer motivo se transforma numa imposição. Passa-se o mesmo com o sexo: praticado por obrigação, deixa de ser um prazer e torna-se uma violência. Em rigor e por norma, o trabalho só serve para quem não sabe fazer mais nada.

A verdade, porém, é que mais de cem anos após o manifesto de Lafargue, a proclamação da preguiça como um direito humano continua a não ser levada muito a sério pela generalidade das pessoas, e é pena. Em vez disso, os movimentos sociais do mundo inteiro continuam a bater-se pelo direito ao trabalho – reflexo ainda dos conceitos inculcados pelos artífices da revolução industrial do século XVIII e retomados pelos obreiros das revoluções socialistas do século XX.

A deificação do trabalho teve – e tem, ainda, cada vez mais – efeitos nefastos para as sociedades e é claramente inibidora do pleno desenvolvimento humano. Max Webber, ao definir as bases da sua “ética protestante”, teve particulares responsabilidades na definição desta absurda moral obreirista. Mas o mesmo pode dizer-se de todos os que, no mundo actual, insistem em glorificar o trabalho em detrimento do legítimo e saudável direito ao lazer que deveria ser o objectivo maior das lutas sociais dos nossos dias.

Quando, em 1974, o meu país protagonizou a mais poética revolução do século XX – conhecida até hoje como “a revolução dos cravos”, por ter tido mais flores do que balas no seu acidentado percurso de um ano e meio – eu e muitos dos meus amigos e companheiros de sonho imaginávamos que, vinte ou trinta anos mais tarde, haveríamos finalmente de viver num mundo justo e feliz. Os progressos da tecnologia estariam ao serviço de todos e, com as máquinas a fazer a maior parte do trabalho destinado aos humanos, teríamos então a possibilidade real de usufruir do tempo que nos foi concedido para viver à face da Terra.

Por outras palavras, mas pelas mesmas razões, defendíamos exactamente o mesmo que Lafargue proclamara em 1883: «O trabalho só se tornará um condimento de prazer para a preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, uma paixão útil para o organismo social, no dia em que ele for sensatamente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia.»

Lafargue não era um dandy aristocrata que escarnecesse do trabalho por simples snobismo. Pelo contrário, à semelhança dos gregos antigos, ele pugnava por que o trabalho fosse exercido não mais do que na exacta medida da necessidade humana – com a vantagem de que, ao contrário de Platão e Heródoto, o genro de Marx não precisava de escravos para garantir a satisfação das suas carências: as máquinas, capazes de substituir os homens em boa parte das tarefas produtivas, seriam o instrumento capaz de transformar o lazer e a preguiça «mãe de todas as artes e das mais nobres virtudes».

Mais tarde ou mais cedo, argumentava ele, isto acabaria mesmo por ser uma imposição da própria realidade, já que a superprodução levaria a que o mercado ficasse saturado e o consumo encalhasse na própria incapacidade de absorção por parte dos consumidores de tudo quanto é produzido. Ora se isto era válido em finais do século XIX, é-o ainda mais, por todas as razões, no início do século XXI. A actual crise económica mundial tem vindo a demonstrar isso mesmo, pelo que se torna urgente reler Lafargue sem preconceitos e acabar, de uma vez por todas, com o dogma do trabalho.

Durante muitos anos tentei acreditar que as coisas iriam ser substancialmente diferentes, um dia que a minha geração chegasse ao poder. Agora, são homens e mulheres da minha geração que dirigem os destinos de um conjunto significativo de países, mas nem por isso as coisas mudaram assim tanto. Prova de que, pelo menos neste aspecto, Marx nunca deixou de ter razão: o mundo divide-se em classes sociais, não em gerações, em raças ou em sexos.

É verdade que Barak Obama é da idade do meu irmão mais novo, e os chefes de governo de Portugal e Espanha poderiam ter andado comigo na escola – tal como Nicolas Sarkozy poderia ser o miúdo da classe a seguir à minha cuja namorada todos cobiçávamos, e até Ângela Merkl poderia muito bem ter sido aquela vizinha mais crescida que, sem o saber, nos iniciava nos mais inocentes prazeres carnais. Mas as semelhanças entre nós ficam por aí. Em tudo o mais somos tão diferentes como um vinho do Porto de uma cerveja da Baviera.

Hoje como ontem, o discurso dos donos do mundo está cheio de palavras vazias, como “produtividade” e “competitividade”. Mas não me lembro de ouvir a algum deles a palavra “felicidade”, que é a que realmente conta. Infelizmente, para eles e para nós, todos eles – grandes e ricos e poderosos que são – continuam a querer fazer-nos acreditar que a preguiça é um vício e que o trabalho liberta. Há 70 anos, um outro líder, igualmente poderoso, mas com bigode, defendia o mesmo. Deu no que deu. Só espero que, desta vez, a história tenha um final mais feliz.

Zoot | Outono 2009