1. Quando o Criador distribuiu os pecados pelo mundo, nem todos os povos tiveram a mesma sorte: aparentemente, a preguiça coube aos espanhóis, os franceses ficaram com a gula (apesar da nouvelle cuisine), os ingleses com a soberba, escoceses e judeus com a avareza; a ira foi para gregos e troianos, sérvios e macedónios, tártaros e mongóis, acabando por tornar-se um pecado transversal a quase todos os povos, ainda que – felizmente – nem sempre ao mesmo tempo; quanto à luxúria, ficou para as nórdicas, claro, mas também para os brasileiros, os italianos e outros mentirosos. Nesta repartição de defeitos calhou aos portugueses ficar com a inveja.
De facto, só um qualquer castigo divino pode justificar esta tão embirrante e persistente característica lusitana. Há quem diga que a culpa é dos conjurados de 1640, que nos impediram de continuarmos a praticar diariamente a siesta quando decidiram restaurar a independência perdida para Castela sessenta anos antes – devido aos delírios adolescentes de D. Sebastião, o rei onanista que foi para o norte de África combater os infiéis (por inveja, lá está) e acabou perdido entre as brumas da memória, sem pátria nem trono nem nada.
Seja qual for a origem deste mal, o certo é que em Portugal o mérito alheio só muito raramente é motivo de admiração e aplauso, como sucede nos países normais. Não. Aqui, quem quer que se atreva a subir um pouco acima da mediania reinante arrisca-se quase sempre a ver os seus pares inventarem mil pretextos para lhe apoucarem o merecimento. José Saramago ganhou o Prémio Nobel? Pois sim, mas foi graças à mulher espanhola. Joaquim de Almeida teve êxito em Hollywood? Com o dinheiro do pai farmacêutico também eu! A minha colega foi promovida e eu não? Vão ver que anda a dormir com o chefe. O meu vizinho tem a mulher mais bonita do prédio? Aposto em como ela o engana.
Nada a fazer. A inveja, mãe de todos os vícios, instalou-se nas consciências e tornou-se parte integrante do nosso modo de ser e de viver. Poucos o terão percebido tão bem como o primeiro-ministro José Sócrates, que se revelou um mestre na arte de manipular os sentimentos mais mesquinhos do seu povo. Com grande eficácia, há que reconhecê-lo: em dois anos de governação conseguiu pôr os portugueses uns contra os outros como nenhum governante tinha sido capaz nas últimas três décadas. Os resultados estão à vista: apesar de não resolverem nenhuma questão de fundo, as medidas do Governo contra funcionários públicos, professores e jornalistas, para dar apenas alguns exemplos, foram aplaudidas como justas por aquela parte da população (incluindo vários funcionários públicos, professores e jornalistas!) para quem tudo o que os outros têm é sempre demasiado.
Dir-me-ão que esta mesquinhez não é exclusiva dos portugueses e que se faz sentir em vários outros países. Talvez. Mas a verdade é que não conheço outro em que tanta gente pareça viver apenas em função daquilo que os outros têm ou são ou fazem. Não porque queiram ter ou ser ou fazer também, mas apenas porque, como sempre acontece com os invejosos, se sentem infelizes com a felicidade alheia. E vice-versa, como diria Alberto Pimenta – grande poeta e um dos que mais e melhor têm reflectido sobre esta difícil arte de ser português.
Este era, aliás, o mote de um programa que passou há uns 30 anos na Televisão pública e onde diariamente Pimenta (ele mesmo) colocava o dedo nas várias feridas que mancham a nossa condição colectiva. O programa chamava-se exactamente assim, «A Arte de ser Português» e rapidamente foi abolido por ser manifestamente incómodo – apesar de, nessa altura, vivermos ainda os restos da recém-conquistada liberdade.
Lembrei-me disto a propósito de um poema que Alberto Pimenta disse num desses programas e que exemplifica de modo definitivo o execrável fatalismo lusitano (irmão gémeo da inveja, como é sabido) que parece ter agora regressado em força aos discursos dos governantes e às cabeças dos governados:
por que é que é assim?, disse eu.
porque sempre foi assim, disse ele.
por que é que sempre foi assim?, disse eu.
porque não pode ser doutra maneira, disse ele.
por que é que não pode ser doutra maneira?, disse eu.
porque sempre foi assim, disse ele.
Pois.
2. No entanto, se a inveja é o principal pecado português, ainda assim esse quase parece um mal menor quando comparado com a vergonha maior que nos tocou em trinta anos de regime democrático e que dá pelo nome de Alberto João Jardim, presidente da Região Autónoma da Madeira. Por causa dele, eu já estive em vias de renunciar à nacionalidade portuguesa – e há momentos em que me arrependo amargamente de não o ter feito. Ainda.
Jardim é uma criatura cujo grau de evolução se situa algures entre o homo sapiens e o pan troglodytes, e existe para provar que Darwin não tinha sempre razão: por vezes as espécies regridem. Com o presidente de todos os madeirenses, o Carnaval não tem data marcada, é mesmo sempre que ele quer.
Ao longo de trinta anos de democracia, o espécimen tudo fez para alcançar o estatuto de inimputabilidade. Com algum êxito, diga-se, pelo menos a avaliar pela maneira como as suas atitudes foram sendo toleradas pelos sucessivos governos de Lisboa, em nome sabe-se lá de que receios.
Volta e meia, o eterno Rei Momo do Atlântico dá um ar da sua (des)graça. Houve um tempo em que ameaçava com o separatismo, até perceber que os continentais eram capazes de acolher de bom grado a ideia. Agora, acossado por uma lei que vai colocar limites ao regabofe do dispêndio de dinheiros públicos na sua região (e é graças às subvenções ilimitadas do poder central que tem conseguido manter-se todos estes anos no poder), Jardim não esteve com meias medidas e demitiu-se… para promover eleições antecipadas logo de seguida, a que vai recandidatar-se.
Mais do que pôr à prova a sua popularidade, o homem pretende, de certa forma, referendar o próprio poder central da República relativamente à Madeira. Trata-se de uma encenação que não terá consequências práticas, mas que já provocou várias irritações.
Porém, eu creio que esta é uma bela oportunidade para os portugueses resolverem este problema de uma vez por todas. É simples: Jardim quer eleições? Pois faça-se-lhe a vontade, e mais: convoque-se também um referendo para decidir da independência da Madeira. Pela minha parte votarei «sim» sem hesitar.
Uma ilha da Madeira independente tem todas as vantagens para Portugal: assim como assim, os madeirenses que interessam já lá não estão; poupa-se uma fortuna em subsídios anuais; em caso de necessidade sempre poderemos declarar-lhe guerra – e, com alguma sorte, talvez a ilha vá ao fundo!
Para os que acham que ficar sem a Madeira seria mau para o orgulho nacional, proponho então que troquemos com Cabo Verde. Mais uma vez, é só vantagens: resolve-se boa parte do problema da imigração clandestina, ganhamos umas praias magníficas e o património musical português fica muito mais rico com a junção das mornas e das coladeras.
Quanto a Alberto João, se não houver outro lugar onde o por, mandem-no para Guantánamo. Pelo menos este nós sabemos que não está inocente!
3. Antes de terminar, e agora falando (ainda) mais a sério, gostaria de lembrar um homem de uma integridade fora do comum de quem, por estes dias, muito se falou em Portugal: José Afonso – Zeca para os amigos e, hoje, também para os outros – poeta, cantor e homem político. Que, entre outros predicados, tem a responsabilidade histórica de ter sido o autor de «Grândola Vila Morena», a canção que serviu de senha para o movimento militar que, em 1974, pôs fim à mais antiga ditadura da Europa.
Poeta maior, ouvi-o por mais de uma vez afirmar que «a realidade é aquilo que existe, o que nós supomos que existe e o que nós inventamos» e que «o que é preciso é criar desassossego» - e foi de acordo com estes pressupostos que viveu toda a sua vida.
Morreu há vinte anos, e parece que foi ontem. Agora, foi evocado num clima de quase unanimidade (que muito o teria irritado, convenhamos), um destino que espera todos os grandes génios criadores, por muito polémica que tenha sido a sua vida.
Chamo José Afonso à conversa como contraponto ao que deixei escrito atrás e porque não quero que se pense que o meu país é um simples lugar de vilezas.
Diz-se por vezes que só se critica aquilo de que se gosta, e talvez isso explique o modo fácil como os portugueses estão sempre disponíveis para dizer mal do seu país – a que invariavelmente chamam, com enfado, «este país».
Como português, não sou excepção, está claro. Também me irrito frequentemente com «este país», certamente porque é o meu e gosto dele, mesmo quando tenho uma imensa vontade de imigrar – o que me acontece com cada vez mais frequência.
Ainda assim tenho consciência de que, apesar de todas as mesquinhices, também por cá existe alguma gente digna. Pena é que nem sempre se dê por ela.
Zoot | Primavera 2007