Já passou a barreira física e psicológica dos 50 anos de idade, vinte deles dedicados à música após o abandono de uma carreira, certamente segura, mas entediante, de ajudante de cartório notarial no Redondo. O cante corre-lhe nas veias e nos discos, como se sente em "Vozes do Sul", o seu mais recente projecto publicado em CD, distinguido com a edição de 2001 do Prémio José Afonso.
Com a tranquilidade que sempre o caracterizou, Janita Salomé não desiste de levar por diante a sua música, feita de muitas memórias antigas misturadas com novas sensações. Na certeza de que "existe uma linguagem própria, nossa, e essa é que é necessário procurar, preservar e recriar". Por uma questão de identidade, contra a estética totalizante do hamburguer. Porque, como se percebe ao longo desta conversa, a música é como os vinhos: os mais divulgados e mais consumidos não são necessariamente os melhores.
– Que significado tem para ti receber o Prémio José Afonso?
– Creio que o grande significado é ser o Prémio José Afonso. Basicamente, o Prémio é a homenagem que a ele é feita todos os anos pela Câmara Municipal da Amadora - e nunca é demais lembrar a obra do Zeca: não só aquilo que sempre foi evidenciado, mas também a sua maneira de estar, toda a sua vida de antifascista e de lutas sociais. Mas neste caso acho que o está mais em evidência a sua qualidade artística, de grande compositor, grande poeta, grande cantor. De grande criador. Isso faz com que o prémio tenha um valor muito especial. Por outro lado, também é importante a idoneidade dos membros do júri e a qualidade artística dos outros nomeados. Isto para não cair naquela banalidade de dizer que um prémio é uma coisa que sabe sempre bem. E é verdade, também nos preenche de alguma forma o ego. Mas este foi de uma forma muito particular, muito especial, e gostei bastante que isso acontecesse.
– "Vozes do Sul" é um disco feito de alguma forma à margem dos grandes circuitos...
– Não é um disco que tenha a ver com as regras da moda, tem mais a ver com as regras da malta, digamos assim. E também não tem a ver com uma lógica de mercado, ainda que obviamente as coisas tenham que depender dele, mas nada do que eu fiz teve essa preocupação. Eu sei que se paga por não utilizar determinada linguagem, não a adoptar, mas não consigo separar a minha actividade de músico, de cantor, de compositor, de mim próprio, da minha vida e do meu quotidiano. E os discos que faço, tudo aquilo que transporto para o digital é o meu quotidiano. E se eu recuso, se estou sempre a filtrar toda aquela informação que nos chega, isso reflecte-se naquilo que faço, na minha actividade criativa.
– Aliás, penso que tu estás cada vez mais alentejano, por outro lado, mas também mais universal...
– ...
– Vejamos: no teu percurso discográfico, desde o "Melro" até ao "Raiano", passando pelo "A Cantar ao Sol" e pelo "Olho de Fogo", houve sempre uma abordagem da linguagem musical do Alentejo, mas também de outras linguagens. Neste caso, acho que foste mais do que nunca à tradição, mas vais mais longe, entras por outras linguagens, como acontece com o "Extravagante". E se calhar por isso é que recebes o Prémio, porque tens um grau de inovação muito grande sem nunca te afastares da raiz. A questão de fundo é esta: será que a tradição, para sobreviver, tem que se transformar?
– Nós não sabemos o que era a tradição há 100, 150 ou 200 anos, ou sequer se existiria essa ideia, esse conceito. Hoje recebemos o resultado de tudo isso, é a nossa tradição. De qualquer maneira, nós sabemos que a tradição do cante alentejano vem de trás, é muito antiga. Nós vivemos a tradição do cante, faz parte do quotidiano, tem ainda muita força no nosso dia à dia. Ainda acontece com muita facilidade e com toda a espontaneidade: está-se numa reunião, está-se a conversar, a contar uma história, a beber um copo e surge uma moda. Surgiu aquilo que se ouve no disco, o "Cante do Baldão", que é um cante com muita força, muita consistência. Tudo o que fiz à volta foram experiências. É o carácter experimentalista que eu pretendo tenham todos os meus trabalhos. Lá está, é o não alinhar na linguagem dita mais "moderna", ou pelo menos mais divulgada. O disco é isso, não é muito fácil explicar porque eu venho de lá, essa foi a minha escola de canto e de música, foram os meus primórdios, são as minhas bases de suporte. É tão natural como isso. Ainda por cima o cante alentejano é um canto harmónico e talvez por isso seja tão sólido. Por isso tive o cuidado de lhe deixar espaços de respiração sonora, não quis carregar as músicas com instrumentos. Os instrumentos estiveram sempre como um potencializador do cante, de todas as experiências instrumentais.
– A instrumentação parece-me fundamental para essa "universalidade contida". É muito sóbria, quase austera por vezes, e essa é talvez a sua grande qualidade. Aliás, tu foste buscar os músicos ideais: o Carlos Bica, o Mário Delgado, a Filipa Pais, o Carlos Guerreiro...
– Já atingiram aquele estádio de evolução em que começam os processos simples a imperar, e é através da simplicidade que eles se manifestam nas suas grandes capacidades.
– Este disco fascinou-me por essa simplicidade e também pelo lado quase documental daquele "apêndice" que é o último tema, o "Cante do Baldão". Está fora da lógica geral e nem faz parte do índice...
– Também foi como que uma surpresa. Tal como é a surpresa de se descobrir ou contribuir para a descoberta no cante alentejano daquela forma de estar e de cantar do "Cante do Baldão". Há um texto no disco em que o dr. José Francisco Colaço Guerreiro fala sobre este modo particular de praticar o cante. Ele fala da maneira de estar, eu assisti a uma sessão dessas, tive esse privilégio de assistir e foi ele que mo proporcionou. Fui lá para os confins da Serra de Ourique assistir a uma sessão daquelas, éramos vinte e tal, todos excelentes cantores. E depois aquilo é ritualizado, é o ritual do convívio do vinho, do vinho e da água, porque cada cantor tem à sua frente uma garrafa de vinho, uma garrafa de água e no meio um copo, e entretanto é a fusão, o casamento do vinho e da água. O vinho é o quinto elemento. E há toda uma atitude reverencial, há todo um ritual quase religioso à volta daquilo: um silêncio, uma tensão, uma expectativa, porque vai ser um dirimir de ideias, de palavras, de capacidades de improviso, de forma de cantar.
– Esse tema surge no disco sem intervenção tua...
– Todos eles são exímios cantores e grandes poetas que improvisam em dupla quadra, com regras muito próprias, muito especificas. Aquilo é outra vida, é um outro lado do cante alentejano. Cantei nas modas, alinhei em tudo, menos naquilo. Não me meti. Estou muito longe de conseguir fazer uma abordagem daquilo, não sei como confessar a minha incapacidade para mexer no "Cante do Baldão". Baldão é um sinónimo de provocação, tem a ver com os cantadores das feiras. Há 40 e 50 anos atrás muitas destas sessões de "Cante do Baldão" davam cenas de pancadaria, porque os entusiasmos e as provocações em verso às vezes davam origem a manifestações de mau perder: aquilo que não se conseguia dizer por palavras se calhar dizia-se por alguma estalada e talvez por isso se chame "Cante do Baldão". Gosto especialmente da forma como o tocador rasga aquela viola campaniça, de um modo muito andaluz. Aqui neste disco só estão três cantadores, mas normalmente são muitos, para haver tempo de construir a dupla quadra, construir a ideia e colocá-la em verso. Ali eram só três, mas eram três especialistas que conseguiram dar sequência no pouco tempo que tinham. Uma ou outra estrofe já vinham alinhadas, mas no calor do convívio e da troca de palavras, o resto surgiu ali espontaneamente. Mas de qualquer maneira só em ocasiões muito especiais é que é possível acontecer estar sessões. Vou tentar trazê-los à Amadora, no espectáculo de entrega do Prémio.
– A ideia deste disco surgiu quando e como?
– É uma vida... Isto foi feito por mim como podia ter sido feito pelo meu irmão, tinha a mesma legitimidade e a mesma simplicidade. Talvez o fizesse com outras ideias, mas fui eu como podia ter sido ele. O cante alentejano está mesmo ali, apetecível, com toda a sua solidez, apetecível para fazer experiências, para juntar instrumentos. Não foi assim uma ideia muito elaborada, isto é simples. É tão simples como eu ser alentejano.
– Uma vez, quando fizeste o "Cantar ao Sol", disseste que tinhas ido a Marrocos à procura das raízes...
– Aqui estão outras. Estão as do vinhedo, as raízes do vinho, do convívio. Aquilo que é a essência do convívio, que é cantar, que é contar histórias, que é beber. Que pode ser uma bebedeira etílica, e é evidente que ela vai sempre desembocar aí. Mas entretanto é uma bebedeira de estar, de convívio, e de bem estar e de viver, de maneira muito diversa daquela que se vive na cidade. É um apelo às raízes vivas.
– No caso do Alentejo, parece que, nesta altura, a música anda melhor que o vinho, menos adulterada...
– Não. Isto de vinhos correntes é como as músicas correntes, porque há vinhos que são muito divulgados e muito consumidos que não são necessariamente os melhores. Com a música também, olha o que acontece com a música anglo-americana, cuja linguagem é adoptada até na música dita portuguesa. Mas de qualquer forma existe uma linguagem própria, nossa, e essa é que é necessário procurar, preservar, recriar. A outra já está feita, já existe: uma bateria, duas guitarras eléctricas mais um baixo eléctrico, a linguagem está feita e depois é uma fórmula, curta, melódica e tens um grande sucesso discográfico. No entanto, há o nosso lado, a nossa maneira ~própria de estar e fazer música, de pensar música, em português e com uma linguagem própria. É essa que devemos procurar, rebuscar na memória, porque temos memória para nos percebermos melhor, é para isso que serve o passado. Os americanos é que não têm passado. Ou têm o passado vergonhoso e muito recente que a gente conhece...
– O teu percurso foi sempre um pouco à margem da tal lógica do sucesso imediato. No entanto, hoje é capaz de ser ainda mais difícil do que há 20 anos praticar esse tipo de opção.
– É mais difícil, de facto, porque os meios de comunicação cada vez divulgam menos. Não estou a queixar-me porque sei perfeitamente que isto é assim, sei que se tivesse outras opções tinha outros resultados, mas as minhas opções são estas e conheço os meus resultados e as minhas dificuldades. Mas lamento que às gerações mais recentes não dêem a possibilidade de conhecer também estas opções musicais. Sejam as minhas sejam as de outros, variadíssimas. Nos discos nomeados estão muitos que mereciam ser melhor divulgados, mas não. Hoje em dia o que os miúdos têm à disposição, em catadupa, é a música anglo-americana. E portanto, quando surge qualquer coisa de diferente, é-lhes mais difícil aderir, porque não faz parte do seu quotidiano, da sua formação e das suas opções estéticas, que estão condicionadas à partida. Não vamos agora passar um atestado de incapacidade à rapaziada nova só porque há pessoas menos receptivas. Eu entendo isso perfeitamente. Os tempos estão cada vez mais complicados, mas começa a haver uma movimentação no sentido contrário. E se não existissem indivíduos como o Vitorino, como o Sérgio Godinho, como o Fausto, e outros, esse movimento não recomeçaria. Nós ficámos, pagámos por isso, cá estamos. E alguma coisa de diferente está a acontecer com a rapaziada nova, porque o pop-rock tem ciclos que vão sempre buscar aquilo que já foi feito, não existe uma evolução.
– Estás a dizer que o rock não se renova?
– Não é bem isso. Mas também podemos pegar por aí. Nesta música existe sempre qualquer coisa, há preocupações com a palavra, com a poesia, com a melodia, procurando fazer sempre qualquer coisa diferente. E as nossas melodias, normalmente extensas, são mais compridas, são difíceis de fixar à primeira audição, ao contrário do pop-rock. Isto não é um discurso contra o pop ou contra o rock, é contra o pop-rock de qualidade duvidosa, que é aquilo que mais ouvimos. Eu sempre gostei de rock, sempre gostei de pop, as minhas referências também passam por aí. Pelos Pink Floyd, por exemplo. Eu comecei a cantar em bailaricos no Alentejo e o que é que cantava? Cantava música da época, cantava menos em inglês, mais em francês, espanhol e italiano.
– Podias ser hoje um cantor romântico...
– Podia ser perfeitamente. E sou. Sou romântico e sou cantor romântico, até pelas minhas opções estéticas e poéticas. O poema que abre o "Raiano" é um poema romântico da Natália Correia, que musiquei. E uma das minhas músicas de que mais gosto é "Não é fácil o amor", um poema do Luís Pignatelli. É uma música que, se alguém fizesse uma antologia das músicas românticas do mundo tinha de incluir. Tanto pelo poema, que eu acho lindíssimo, como pela música, passe a imodéstia.
– Isso leva-nos àquela velha questão da letra e da música: até que ponto uma influencia a outra?
– Aqui o poema dá espaço à música, aliás quase tudo o que fiz na música foi a partir da palavra. São muito poucos os casos em que a música já está definida e depois é que surge a palavra. No meu caso é ao contrário.
– A música acaba por ser sugerida pelo próprio poema, é isso?
– É, muito. Porque as imagens da palavra surgem como as imagens, digamos, melódicas. Porque a melodia também é ela própria uma imagem, é uma coisa que quase se vê, é um fluído. Qualquer coisa que não é materializável, mas que também se visualiza.
– Estou a lembrar-me de algumas canções tuas onde há muitas imagens. Eu, que nunca estive em Casablanca, de repente senti-me lá ao ouvir aquela canção que fizeste sobre um poema do Hipólito Clemente. Não sei se Casablanca corresponde àquilo que eu imaginei...
– É provável. A cidade está lá e é mesmo assim...
– Desde a gravação do "Melro" até agora já passaram cerca de 20 anos. Nessa altura, para o grande público, ainda eras basicamente o rapaz que andava a tocar tracanholas com o Zeca Afonso...
– Não. Nessa altura ainda era funcionário público, era ajudante no cartório notarial do Redondo. Mas já o conhecia pessoalmente. E já tinha andado com ele nas campanhas de agitação cultural do pós-25 de Abril.
– Uma mudança de vida como a que fizeste aos trinta e poucos anos é uma coisa complicada...
– Foi arriscado. Eu já com não sei quantos anos de funcionário público, com a minha estabilidade em causa, a família, a casa, os filhos... Foi tudo de pantanas, foi uma mudança radical. E foi um risco grande que corri, deixei aquela estabilidade da manga de alpaca, o encosto do balcão e a máquina de escrever e vim para as cantigas, para a minha grande paixão.
– E achas que valeu a pena?
– Acho que sim, se calhar agora estava cheio de artroses ou estava já com alguma trombose ou com uma coisa qualquer que entretanto foi posta de parte, porque as cantigas e a poesia afastam todos os males. É uma verdade, e estas não se contestam.
– Desde o teu início como músico profissional até agora, este universo da música também mudou bastante. As coisas transformaram-se muito em Portugal, mas tu conseguiste sobreviver a estas mudanças todas sempre na tua pequena margem, digamos assim, sem a necessidade de ser um artista de grande consumo...
– É isso, consegui aguentar-me. Consegui permanecer vivo, porque uma coisa e outra estão associadas, isso faz parte da minha vida, do meu quotidiano. Naturalmente, com todas as consequências que isso trouxe para mim. Se calhar podia estar cheio de "massa" e não estou. Estou "teso", mas estou satisfeito. Mas não é fácil, com todas as crises existenciais pelo meio, mudar dos trinta e tal para os quarenta e tal e cinquenta. É muito forte, agita muito por dentro e essa transição acabou por ter como resultado um hiato nas minhas capacidades, que foram de alguma forma abanadas. Parei para pensar, estive meia dúzia de anos sem gravar. Não me senti menos capaz, senti-me diferente: via-me ao espelho e interiormente senti-me outro. E levei tempo a entender isso, a aceitar-me. Um indivíduo, quando é mais jovem, pensa que vai ser sempre assim - e ainda bem, porque se um tipo se põe a pensar no que vai ser quando for mais velho está tramado, começa a ser velho mais cedo. Essa interrupção correspondeu à crise existencial que me fez parar para me rever, para ver o que eu era e o que ia passar a ser. Agora já estou refeito e já estou capaz de recomeçar outra vida.
– Depois de "Vozes do Sul" o que é que vais fazer?
– Vou regravar vários temas de discos anteriores. Regravar mesmo, fazer novos arranjos, novas interpretações de diversos temas. Convidei o Júlio Pereira, vamos voltar a trabalhar juntos ao fim destes anos todos, o José Peixoto e o Mário Delgado. São eles quem se vai encarregar dos arranjos dos temas, vou incluir dois ou três inéditos. E já tenho cantigas para um trabalho novo no próximo ano.
– Já tens edição garantida para isso tudo?
– Sim, na Editora Capela, onde finalmente encontrei cúmplices, gente que gosta das mesmas coisas de que eu gosto...
– Parece que há outra coisa que está a acontecer actualmente, que é, de alguma forma, o regresso de pequenos espaços de divulgação.
– É verdade. São lugares imprescindíveis para uma música com esta especificidade, é aí que se consegue a tal cumplicidade que é fundamental para este tipo de trabalhos. Que podem ser muito pouco divulgados, têm uma linguagem menos conhecida, menos divulgada. Mas autêntica.