E tudo será luz

E tudo será luz

O meu mundo encolheu um pouco mais, esta semana. Tudo acaba, já se sabe, e os amigos não duram para sempre, nem mesmo quando o são para sempre. É assim, também, como todas as pessoas genuinamente boas que nos iluminam a existência. Homens e mulheres de quem, tantas vezes, acreditamos que nunca nos vão morrer, que hão-de estar sempre aqui, ao nosso lado, gratificando-nos a vida e ajudando-nos a encontrar-lhe um sentido.

Urbano Tavares Rodrigues, que agora se nos foi, era um desses seres raros. Muitos, e muito melhor do que eu, podem dar testemunho das imensuráveis qualidades do homem, do militante, do escritor, do pedagogo, do resistente, e nenhum deles pecará por exagero. Por estes dias, o Armando Baptista-Bastos, o Mário de Carvalho, o António Costa Santos, lembraram com muita justiça alguns episódios vividos da coragem física e moral de Urbano. E são tantas as histórias que se lhe conhecem: de como enfrentou um bando de pides, estraçalhando-lhes uma cadeira nos respectivos coiros; ou da vez em que cabeceou um outro, à porta do Teatro Vasco Santana, que lhe apontava uma pistola ao peito; ou de como nunca se deixou vergar pela intimidação e a dor. Tantos episódios que aqui não cabem, mas de que me lembro desde que me lembro dele.

E lembro-me dele desde muito cedo. Desde, pelo menos, quando aos quinze anos li pela primeira vez um livro seu – para mim marcante e que, de algum modo, seria até um impulso mais para entrar no ofício a que queria (e viria a) dedicar-me: Os Insubmissos, escrito um ano depois de eu ter nascido e que retratava com rigor e assombro a realidade em vigor, as grandezas e as misérias de um grupo de gente igual a alguma gente dos sonhos e dos jornais desse tempo.

Desde muito cedo que Urbano fazia parte dos nomes admirados lá de casa – em boa parte graças à ligação que tinha com amigos próximos do meu Pai, como Mário Sacramento – e a sua grandeza intelectual e humana era-nos apresentada como um exemplo de dignidade e de coragem a ter em conta e a seguir.

No entanto, só muitos anos e bastantes livros mais tarde o meu caminho haveria de cruzar com o dele, ainda que nunca tenha feito parte dos seus amigos chegados e nem sequer tivéssemos um convívio grande. Mas aquele Urbano d’Os Insubmissos acompanhou-me a vida toda – e reencontrei-o sempre no homem generoso e afável que vim a conhecer. «O que importa, acima de tudo, num homem, não é ser de esquerda ou de direita, é a sua qualidade humana», diz uma das personagens deste romance, «Ernesto», que o narrador descreve – afinal, como se falasse de si próprio: «A gratidão era para ele sagrada, como a amizade.»

Assim era, também, para Urbano. Um dia, vão lá quase dez anos, dei-lhe a ler um livro que tinha acabado de publicar, sobre Che Guevara e a sua Utopia, e perguntei-lhe se estaria disponível para o apresentar, numa sessão pública em Lisboa. Tive o cuidado de dizer desde logo que não se tratava de uma abordagem linear à figura do guerrilheiro e que, ao invés, incluía testemunhos e pontos de vista diferentes sobre a Revolução Cubana, por vezes opostos àquilo em que ambos (ele e eu, eventualmente de modo diferente) acreditávamos. Respondeu-me – e depois escreveu-o – com a generosidade de cidadão inteiro e dialogante que o caracterizava: «Isso enriquece o livro, não lhe retira valor nem autenticidade.»

Urbano era isto. E era mais. Era também o homem que, prestes a chegar aos 90 anos e ao inevitável fim da vida, mantinha intacta a certeza de que os princípios a que dedicou tudo tinham valido a pena. E que, apesar da idade e dos desencantos, se recusava a desistir de lutar por um mundo melhor. Como escreveu no belíssimo texto que servirá de nota introdutória ao derradeiro romance, Nenhuma Vida (ainda inédito, a publicar no fim deste ano):

«Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres. Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido hão-de acompanhar-me e tudo será luz.»

Em Urbano, tudo foi luz. A vida, os amigos, as mulheres, o sorriso, as causas. Com a sua partida, o meu mundo ficou sem dúvida mais pequeno. Mas também mais iluminado. Porque ele existiu e lutou e amou e acreditou.

Diário do Alentejo, 16.Agosto.2013