Era uma vez em Havana

Era uma vez em Havana
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Era uma vez um povo e uma ilha, centro de um mundo encantado no coração das Caraíbas. Era uma vez uma gente nascida do cruzamento de outras gentes, fruto da inevitável mistura de raças e de culturas produzida pelos navegadores antigos. Era uma vez uma cidade e uma revolução.

Havana é a cidade cenário desta e de outras histórias, cujos sinais exibe ao mundo com um orgulho tranquilo. Um orgulho visível nos olhares dos seus protagonistas, a gente toda das dezenas de bairros que formam a cidade, tão diferentes nas suas formas e tão semelhantes na sua vivência. Um orgulho que nem sequer se apaga com a solidão imposta pelo bloqueio que, desde 1962, os poderosos vizinhos da América do Norte insistem em manter.

Neste início do século XXI, Havana é uma cidade de relíquias onde o tempo nunca deixou de correr, embora as casas e as ruas, os carros e as pessoas, muitas vezes se pareçam com estranhas personagens de um filme antigo. Um filme que é também a melhor representação da história recente de Cuba e da sua notoriedade mundial, apesar de ter apenas um século de vida enquanto nação independente.

San Cristóbal de la Habana foi o nome de baptismo desta cidade, um nome escolhido pelos conquistadores espanhóis e atribuído por Diego Velázquez, em 25 de Julho de 1514, a um povoado da costa meridional, a uns quarenta quilómetros da Havana actual. A primitiva localização da capital, em Batabanó, durou pouco tempo. Nos cinco anos que se seguiram, Havana mudou ainda duas vezes de sítio, até que, em 1519, se fixou no lugar definitivo que hoje ocupa, na costa norte da ilha.

A metrópole que agora se estende por 28 quilómetros de costa alberga dois milhões e meio de pessoas e ocupa uma área global de 800 quilómetros quadrados. Mas a grandeza não lhe retirou as características que fazem dela uma das mais fascinantes cidades do mundo, onde os sinais do passado recente convivem com as marcas mais antigas da história da ilha grande das Caraíbas. Uma história que os estrangeiros conhecem mal, apesar de o núcleo antigo da urbe ser reconhecido pela UNESCO como património mundial. Das monumentais construções dos séculos XVIII e XIX aos edifícios singelos que se encontram em todas as ruas, Havana é uma imensidão de surpresas, mas a maior parte delas escapa ao olhar ligeirinho e apressado dos turistas.

Se outros motivos não houvesse, Havana seria reconhecida fora de Cuba graças aos seus charutos, os puros mais saborosos do mundo, apreciados de igual modo tanto por reis e presidentes como pelos anónimos habitantes desta cidade – a ponto de haver quem garanta que John Kennedy só assinou o decreto de embargo comercial a Cuba, em 1962, depois de ter mandado comprar todos os charutos cubanos disponíveis em Washington.

O aroma único do fumo cubano deve-se essencialmente às terras férteis da região de Pinar del Rio, com destaque para Vuelta Abajo, uma povoação fundada pelos espanhóis em 1774 e transformada na capital mundial do tabaco pelas suas condições naturais de excepção: numa área de 40 mil hectares existem 48 tipos diferentes de solo que, conjugados com a temperatura e a humidade da atmosfera, fornecem as condições ideais para o cultivo da planta que a Europa começou por demonizar e que hoje cobiça a todo o custo – apesar do fundamentalismo antitabagista que nos anos 90 começou a instalar-se no Velho Continente, à semelhança do que já acontece há muitos anos nos Estados Unidos.

A técnica de manufactura destes instrumentos de prazer obedece a métodos ancestrais, seguidos com um extremo rigor pelas seis fábricas de tabaco que funcionam em Havana, onde a produção se faz a um ritmo próprio, que se mantém inalterável ao longo dos tempos. Fazer um habano é um trabalho de paciência e muita arte, que máquina nenhuma jamais conseguirá reproduzir. O segredo passa pela escolha e selecção das folhas de tabaco, de acordo com o género de charuto pretendido. O corte e o enrolamento obedecem a técnicas antiquíssimas, transmitidas de geração em geração. Do êxito destas etapas resulta a qualidade do produto, concebido de acordo com normas que se mantém inalteráveis, apesar de todas as transformações sociais e políticas.

Falar de habanos não é apenas um apontamento pitoresco na história desta cidade. Não é possível compreender a Havana de hoje sem conhecer um pouco da Havana de outros tempos: os seus mitos e as suas lendas, os seus costumes ancestrais, o carácter prazenteiro com que se entrega a quem a procura. Por aqui se deixaram perder de amores muitos nomes ilustres das artes e da literatura do mundo inteiro.

Foi em Havana, no Hotel Inglaterra, que José Maria d’Eça de Queiroz viveu entre 1872 e 1874, exercendo as funções de cônsul, que depois haveria de continuar em Newcastle e em Paris. Em Cuba travava-se então a primeira guerra pela independência, e o escritor português parece não ter sido muito feliz por estes lados, incompatibilizando-se rapidamente com o clima quente e húmido da então ainda colónia espanhola. O ambiente tenso e reviralhista que se vivia na capital cubana terá, porém, inspirado um romance ao nessa altura jovem prosador. Mas o manuscrito, a que Eça chegou a dar o título de Conspiração na Havana, acabou por se perder – e com ele o que seria certamente um testemunho ficcional curioso acerca da Cuba colonial.

A curiosa relação de Havana com a literatura do mundo não tem paralelo noutras cidades. As aventuras de El Engenioso Hidalgo D. Quijote de la Mancha, de Miguel Cervantes, foram o primeiro livro publicado em Cuba após o triunfo da revolução, em 1959. Assim se compreende não ser por acaso que, entre as poucas estátuas erguidas em Havana após a queda de Batista, figurem as dos dois mais universais anti-heróis da literatura hispânica, colocadas a escassa centena de metros uma da outra, em La Rampa, no coração da Havana moderna: D. Quixote, a galope num Rocinante desesperadamente vivo, e o seu fiel escudeiro Sancho Pança, montado num jerico mansamente sábio. O sonho, passado e presente, permanece aceso na capital de Cuba. Hoje como ontem, esta cidade que foi cenário de glórias e de misérias, sempre cobiçada e muitas vezes violentada, é um lugar para viver e para olhar. Com todos os sentidos consentidos.

In A Utopia segundo Che Guevara | Campo das Letras | 2005