O triunfo da revolução e a chegada apoteótica de Fidel Castro ao poder marcaram a viragem maior do destino da ilha, e tornaram-se símbolos da utopia mais apaixonada da segunda metade do século XX. Pela primeira vez, foi posta em causa no hemisfério ocidental a ordem social reinante e que parecia consolidada desde o fim da segunda Grande Guerra.
Nesses dias, Havana foi uma festa. O grupo de guerrilheiros barbudos que três anos antes chegara à costa sul da ilha a bordo do iate Granma, alcançava enfim o seu objectivo e fazia renascer os sonhos de uma Cuba independente onde a dignidade fosse um valor adquirido.
Mas a criação de um estado anticapitalista na região das Caraíbas era um desejo de autonomia que os Estados Unidos não toleravam. A frustrada invasão de Playa Girón, na Baía dos Porcos, foi apenas o lado mais visível da ameaça que a independência de Cuba enfrenta desde 1959. Durante os últimos 45 anos sucederam-se as tentativas de assassinar Fidel comprovada e assumidamente organizadas pela CIA, por ordens expressas dos sucessivos ocupantes da Casa Branca.
Os serviços secretos cubanos estimam que desde 1959, Castro escapou a mais de 600 atentados, alguns atingindo por vezes as raias do mais puro delírio. O investigador inglês Sebastian Balfour deu conta de algumas das mais exóticas, nomeadamente o plano que previa encarregar um agente da CIA de armadilhar objectos íntimos do dirigente cubano com pó de tálio, usado como um depilador eficaz. O objectivo era provocar a queda da barba que o comandante usa desde que embarcou no Granma, «presumivelmente na convicação de que o seu êxito residia no seu carisma e que o seu carisma estava na barba», afirma Balfour.
Mas a ideia mais espantosa para o derrube de Castro foi sugerida, num jantar em Washington com John e Jacqueline Kennedy, por um escritor de histórias policiais, Ian Fleming, o criador de James Bond: «De acordo com as investigações do Senado, em 1975, o plano consistia em espalhar por toda a ilha o boato de que o Salvador estava prestes a regressar à Terra para denunciar Fidel Castro como um anti-Cristo; no dia marcado, um homem-rã de barbas emergiria numa praia de Cuba proclamando-se Cristo, ao mesmo tempo que, ao largo, na linha do horizonte, um submarino norte-americano lançaria para o céu foguetes de estrelas.»
As acções anticubanas dos serviços secretos norte-americanos continuam, regular e metodicamente, a ser planeadas e executadas, mesmo se já passaram mais de uma dúzia de anos sobre o fim da Guerra Fria. Por regra, o governo de Washington e a CIA delegam a sua execução no lobby anticastrista de Miami – uma máfia local que, apesar do seu poder económico e político, está longe de representar o sentimento e as aspirações de uma população onde o número dos emigrantes cubanos legais excede largamente o dos exilados.
O governador da Florida, Jeb Bush, irmão do presidente George W. – ele mesmo ex-director da CIA – é conhecido pela sua ligação a famosos activistas de extrema-direita, nomeadamente à Fundação Nacional Cubano-Americana, a mais poderosa organização anticastrista de Miami, e a Orlando Bosh e Luis Posada Carrilles, os cérebros da mais recente tentativa de assassínio de Fidel Castro, descritos por um ex-agente secreto americano como sendo «dos terroristas mais perversos e sanguinários da comunidade cubana exilada». O atentado não chegou a concretizar-se porque os serviços secretos cubanos conseguiram descobrir a tempo as intenções de Carrilles que, com três cúmplices (Pedro Ramón, Gaspar Jiménez e Guillermo Novo Sampoll), tencionava fazer explodir o auditório da Universidade do Panamá onde, a 18 de Novembro de 2000, Fidel Castro se reuniria com cerca de dois mil estudantes, professores e representantes de diversas organizações sociais, políticas e sindicais.
Na verdade, Washington nunca conseguiu compreender as razões profundas da revolução cubana nem estabelecer a relação desta com os seus precedentes históricos. E, com a arrogância de todas as polícias imperiais, julgou lidar com um povo simplório e pacóvio, e não soube ler a tempo os sinais de uma distinta sabedoria: o assalto a quartéis, o desembarque marítimo e a guerra de guerrilhas nas montanhas foram métodos igualmente usados em Cuba pelos independentistas do século XIX.
Por outro lado, mesmo depois de se assumir como marxista-leninista, Fidel teve sempre o pensamento de José Martí como linha de orientação fundamental. E Martí foi um intelectual que definiu e fixou as características próprias da cubanidade, esse sentimento que mistura a cubania (expressão que designa a forma de ser e de estar própria dos cubanos, um misto de sensações físicas e emocionais próprias do povo da ilha) com a identidade – e Cuba é, claramente, de todos países geograficamente mais próximos dos Estados Unidos, aquele que desenvolveu uma personalidade própria mais acentuada.
E também, ao contrário do que imaginavam os serviços secretos norte-americanos, o carisma do líder cubano não se deve apenas à barba que usa desde que desembarcou do Granma, mas antes à sua personalidade forte, ao profundo conhecimento do seu povo e à sua acção determinada que criaram dele a imagem de alguém que é capaz de enfrentar qualquer perigo com a habilidade de um mago. Há quem o ame e quem o odeie com a mesma intensidade, mas ninguém lhe fica indiferente. E mesmo os inimigos declarados de Fidel Castro têm dificuldade em esconder alguma admiração perante a tenacidade do chefe de Estado cubano e a consistência das suas convicções.
Meyer Lansky percebeu isso mesmo em Janeiro de 1959, logo após a entrada de Fidel em Havana. Conta-se que, instalado numa suite do Hotel Capri com todo o seu estado-maior, o chefe da Mafia cubana assistiu em silêncio, pela televisão, ao primeiro discurso de Castro na capital. No final, levantou-se e manifestou o desejo de abandonar a cidade o mais rapidamente possível. Perante o espanto dos seus parceiros, que não esperariam uma tal reacção amedrontada do padrinho, Lansky terá dito: «Este homem é perigoso, porque acredita naquilo que diz.»
Como todas as lendas, para a aura de Fidel Castro contribuíram também o acaso e a sorte, o que é particularmente importante num país onde o sincretismo está sempre presente nas actividades quotidianas. Por isso, quando uma pomba veio pousar no ombro do comandante-em-chefe durante o seu discurso vitorioso da varanda do palácio presidencial em Havana, houve logo quem pensasse que aquele jovem barbudo e sedutor era um enviado de Xangô.
E nem mesmo o boato de que o palomídeo teria sido previamente treinado teve qualquer repercussão. Seria, aliás, uma situação muito pouco plausível, já que não era conhecida nenhuma particular inclinação columbófila do líder guerrilheiro e supõe-se que o exército rebelde tivesse mais que fazer do que amestrar pombos – aos quais, imagina-se, a soldadesca revolucionária deveria chamar um figo, sobretudo se acompanhados pelo tradicional arroz mouro da gastronomia cubana...
Mais do que em qualquer outro país que os serviços secretos dos EUA pretendam desestabilizar, a contra-informação relativamente a Cuba tem sido uma arma utilizada sem conta nem medida, e que ultrapassa frequentemente os limites do imaginável. Como aconteceu logo nos primeiros anos da revolução, quando Fidel venceu um torneio de pesca onde tinha como adversário Ernest Hemingway. O escritor não se queixou do resultado, mas mesmo assim o evento foi utilizado na guerra de notícias contra Cuba, com alguns jornais norte-americanos a darem conta das suspeitas de que «um submarino soviético teria colocado os peixes no anzol» de Castro!
Ainda assim, muitos norte-americanos estão entre os primeiros a reconhecer a responsabilidade da política sectária dos sucessivos governos de Washington na aproximação de Cuba à a órbita política da União Soviética – cujo apoio económico, nomeadamente através de um conjunto de acordos de cooperação comercial e científica, foi fundamental para a consolidação do novo regime. É um facto que, antes do início das mais profundas transformações sociais, os dirigentes cubanos tentaram entender-se com os Estados Unidos, mas esbarraram sempre nos superiores interesses da United Fruit e dos outros grandes proprietários norte-americanos.
Em Abril de 1959, já como primeiro-ministro do governo provisório, Fidel Castro deslocou-se a Washington e encontrou-se com alguns senadores a quem tentou esclarecer sobre os objectivos da revolução que ele tinha liderado: «Não somos comunistas. Somos democratas sinceros, porque a democracia que fala apenas de direitos teóricos e esquece as necessidades do homem não é sincera nem verdadeira. Nem pão sem liberdade, nem liberdade sem pão. Nem ditadura de um homem, nem ditadura de uma classe. Nem ditadura de grupo, nem ditadura de castas, nem oligarquia. Liberdade com pão e sem terror. Somos humanistas.» Os senadores norte-americanos – Richard Nixon, mais tarde presidente dos Estados Unidos, era um deles – não quiseram ouvir o comandante, preferiram tomá-lo como inimigo e confrontá-lo, provavelmente na crença de que facilmente o obrigariam a ceder. E foi o que se viu.