Este livro nasceu de um conjunto de reportagens e é como tal que deve ser apresentado. As páginas que se seguem não são, pois, mais do que o caderno de um repórter que não tem a pretensão de fazer História, mas simplesmente deseja relatar o que viu, o que ouviu e o que, eventualmente, descobriu na sua faina profissional.
Significa isto que não é intuito desta prosa justificar, valorizando ou desvalorizando, a dimensão sobre-humana que Ernesto Guevara de la Serna, queira-se ou não, atingiu. Uma dimensão que fez dele talvez a mais marcante de todas as grandes figuras do século XX, e que não se desvanece na banalização mercantilista da sua figura.
Guevara, o mito, interessa-me pouco. Creio, parafraseando José Afonso, que «como exemplo a seguir, o mito é, na maior parte das vezes, uma pista errada porque fundada mais na imaginação das pessoas do que nas contingências falíveis da acção humana individual ou colectiva». Prefiro, por isso, buscar o outro Guevara, mais frágil e menos infalível, mas indubitavelmente mais autêntico no seu fascínio perante as ruínas de Machu Pichu, cuja magia o tocou tão profundamente quanto a dor alheia que presenciou na viagem iniciática da juventude pela América do Sul. Ou nas suas fraquezas de homem comum, que também as teve, mesmo se a sua vontade e as circunstâncias do seu tempo o transformaram num ser incomum.
(...) Visitei Cuba pela primeira vez de forma quase acidental, em 1984, juntamente com Fausto Bordalo Dias e José Mário Branco. Eles como participantes e eu como enviado especial dos semanários Se7e e de O Jornal, vínhamos os três de uma experiência única: o Festival Internacional de Música Popular Latinoamericana y del Caribe que se realizou em Manágua nesse Verão e nos permitiu contactar de perto com a Revolução Sandinista da Nicarágua, então no auge do seu esplendor.
Pela Nicarágua andaria, nessa altura, uma das filhas do Che, Aleida Guevara March. Era uma quase anónima médica pediatra cubana em missão internacionalista – e voltaria a sê-lo, tempos depois, em Angola. Não nos cruzámos em Manágua, viemos a encontrar-nos uma dúzia de anos mais tarde, em Havana. Uma Havana agora consideravelmente diferente daquela que tinha conhecido com o Fausto e o Zé Mário, quando era de longe a mais próspera de todas as capitais da América Latina. Mas onde – apesar das enormes carências, dos bloqueios externos e internos, e de todas as dúvidas relativamente ao futuro – continuam a não existir os sinais mais profundos de degradação social e humana, visíveis em grande escala em qualquer outro país do continente americano.
Na cidade mágica que nesses idos de 80 me foi dado começar a descobrir, os objectivos básicos de qualquer ideário próximo do socialismo eram palavras com sentido: a paz, o pão, a habitação, saúde, educação – que foram os propósitos originais do movimento que se gerou em Portugal após 25 de Abril de 1974 e deram uma das mais eficazes canções de Sérgio Godinho – eram desígnios que pareciam quase totalmente cumpridos na república de Cuba, de forma metódica e reconhecida pelas diversas entidades supra-nacionais que não podiam deixar de aplaudir os resultados realmente alcançados pela ilha grande das Caraíbas, nas áreas mais delicadas de todos os sistemas económicos e sociais: a prestação de cuidados médicos e de saúde, o acesso ao ensino, à educação e à cultura, casa e trabalho assegurados.
Em vinte e cinco anos, Cuba tornara-se um dos países do mundo com maior número de licenciados, técnicos e especialistas nas mais diversas áreas, de méritos reconhecidos dentro e fora de fronteiras. A taxa de mortalidade infantil baixou de níveis terceiro-mundistas para índices inferiores aos de muitos países europeus desenvolvidos. Dos cinco objectivos básicos que atrás se enumeram, só a paz era instável – como continua a ser e continuará enquanto o governo dos Estados Unidos da América mantiver a sua política de asfixia económica e política da pequena mas orgulhosa ilha que uns simples 150 quilómetros separam de Miami.
As diferenças entre a Cuba que conheci nos anos 80 e aquela que vivi e com que me envolvi por diversas vezes a partir de meados de 90 são notórias: as dificuldades de abastecimento aumentaram, e a aposta no turismo, ao mesmo tempo que contribui de forma determinante para a viabilização económica da ilha, também acentua as desigualdades entre a população: muitos licenciados optaram por trabalhar em ofícios menos qualificados no sector turístico, porque assim têm acesso a uma fonte suplementar de rendimento em dólares, e a prostituição voltou a ser o negócio de alguns. Por outro lado, a pressão cada vez maior da ameaça externa serve para justificar novas opressões internas, sempre ampliadas nos media europeus e norte-americanos. Ainda assim, creio que nada disto destrói aquilo que é indiscutivelmente o essencial da maneira de ser dos cubanos: o seu carácter solidário e tranquilo, a bonomia tropicaliente – e sobretudo a sua dignidade enorme como povo e como nação que recusa submeter-se à lógica unipolar em vigor. Batalha perdida, é o que garantem amiúde inúmeros analistas políticos ocidentais, convencidos de que chegámos mesmo ao fim da História e de que o mundo não tem outro remédio se não render-se à evidência da superioridade imoral do imperialismo. Mas terá obrigatoriamente que ser assim?
Dignidade. Eis uma palavra-chave para definir a vida e a obra de Ernesto Guevara de La Serna, o Che. Aventureiro, sonhador, irrealista – antes e depois da sua morte foram vários os epítetos com que a direita clássica e a esquerda oficial tentaram, no final dos anos 60 e princípios dos 70, domar as multidões de jovens que, fascinados pelo exemplo do comandante guerrilheiro, exigiam «a imaginação no poder».
(...) Obviamente, a luta continua: a tenaciadade do Movimento dos Sem-Terra, no Brasil, e as acções guerrilheiras de novo tipo levadas a cabo desde os anos 90 por movimentos como o Exército Zapatista de Libertação Nacional, do México, configuram hoje um claro cruzamento entre as teses guevaristas e a sociedade da informação. À globalização imperialista, os novos movimentos procuram contrapor uma lógica de solidariedade global, que implica não tanto a rejeição do sistema, mas sobretudo a exploração das suas fragilidades. Foi assim que surgiu o misterioso Subcomandante Marcos, porque a mediatização é um elemento fundamental nos dias que correm. Marcos, seja ele quem for, e os seus homens entenderam que, no início do século XXI, já não é possível iniciar uma revolução apenas com alguns camponeses armados de fuzis e machetes, e passou a usar a internet como se fora uma espingarda. É aquilo a que Marta Harnecker chama «a exploração do terreno do alegal» pelas organizações de luta social. É claro que, como sempre defendeu Guevara, este processo só resulta após um longo trabalho de «esclarecimento e motivação da população». E foi isto que os zapatistas puseram em prática, em Chiapas, durante uma sucessão de acções de guerrilha não-violenta que lhes têm valido a admiração e o respeito do mundo.
Mas o século que ainda agora começou não se apresenta risonho. Os Estados Unidos da América já nem se preocupam em camuflar a sua ânsia de domínio do mundo, perante uma União Europeia dividida mas servil, uma Rússia saqueada e convertida ao brilho dos dólares, e uma China ex-inimiga que conseguiu tornar-se um parceiro respeitabilíssimo da Organização Mundial do Comércio ao conciliar a ditadura do proletariado com a bolsa de valores, dando origem ao socialismo de mercado – que, em rigor, pode definir-se como o autêntico estádio superior do capitalismo: mão-de-obra barata, nível zero de reivindicações laborais, horário de trabalho alargado e nenhuns encargos extra.
Agora, que o mundo se normalizou e o salve-se quem puder dita a ordem e o progresso da comunidade global, que futuro pode haver para um projecto alternativo de organização social? Nestes tempos de incerteza, revisitar os lugares e as pessoas do universo guevariano não deve ser praticado nem como um exercício de saudosismo, nem como um exorcismo inconsequente. O socialismo por que lutou Guevara não era o dos tanques de Praga, Budapeste ou Tiannanmen. A cidade sem muros nem ameias que Zeca cantou e foi o propósito da luta do Che, mesmo dissimulada pelas incertezas quotidianas, permanece – ai de nós se assim não fosse! – como objectivo maior no horizonte da Humanidade.
Foi com estes fins em vista que me aventurei à escrita deste livro, a que dediquei uma parte significativa do meu tempo nos últimos anos. Em abono do rigor, devo dizer que, embora passado a escrito apenas a partir de finais de 2000, o projecto começou a delinear-se no Verão de 1997, em Havana, quando o veterano repórter Orlando Castellanos me sugeriu a possibilidade de juntar em livro a parte sobejante da numerosa informação e documentação que eu vinha recolhendo desde o ano anterior para um conjunto de reportagens de Imprensa e Televisão. Na altura nem sequer equacionei a hipótese, mera sugestão em tarde de conversa num apartamento a dois passos do Malecón, onde Castellanos guardava cuidadosamente todos os registos fonográficos de milhares de entrevistas e reportagens, quarenta anos de história feita na Rádio Habana Cuba, a emissora de onda curta de que foi um dos fundadores, poucos anos após o triunfo da revolução.
Posteriormente, e por mais de uma vez, em Cuba e nas Astúrias fui invectivado no mesmo sentido pelo meu amigo José Luis Posada, pintor fantástico e homem livre. A ideia foi ganhando corpo e apoiantes, ultrapassou os limites das reportagens iniciais, originou outras investigações, novos testemunhos, mais viagens, algumas dúvidas e umas quantas angústias, prolongou-se no espaço, no tempo e no volume, muito para além do que estava previsto. O resultado é o conjunto de textos que aqui se apresenta.(...)
Ao longo destas páginas reuni apontamentos, entrevistas e histórias, umas mais pessoais do que outras, procurando, através da junção desses episódios, retratar com a fidelidade possível Ernesto Che Guevara, o homem, e a realidade que criou, de modo a entender os contornos da sua utopia e da forma como lutou por ela, até à morte. Procurei, por isso, alguns dos seus companheiros de luta, a família, jornalistas que o conheceram, os biógrafos, gente anónima. Em Cuba, pátria adoptiva do guerrilheiro e cenário da sua obra mais duradoura, tentei compreender, para lá dos sinais exteriores e das mágoas interiores, as motivações mais profundas deste povo e desta revolução. Daí resultaram as histórias de um país cercado que integram a primeira parte deste volume.
Para traçar o perfil de Guevara para além do mito consultei testemunhos antigos, confrontei-os com outros mais recentes, auxiliei-me de fontes oficiais e não oficiais, em Cuba e fora dela. Alguns apontamentos de reportagem e outros textos anteriormente publicados em diversos jornais mantém-se actuais, pelo que acabei por utilizá-los parcialmente como suporte de alguns capítulos. As quatro entrevistas autónomas que aqui se incluem, a dois dos seus biógrafos, à filha Aleida e ao neto Canek, correspondem a outras tantas formas cubanas actuais de ver e sentir a figura e o legado do Che. Esta última – realizada por intermédio de correio electrónico quando este livro se encontrava já concluído e em fase de revisão – é sem dúvida a mais polémica, e por isso também a mais incómoda, tanto para os admiradores como para os detractores da revolução cubana. Mas é também, estou certo, um testemunho relevante para perceber os caminhos actuais de Cuba e do seu povo.
A tudo isto, achei por bem juntar algumas das canções escritas a propósito do Che. Desde o clássico Hasta Siempre, de Carlos Puebla, ao comovente Si El Poeta Eres Tú, de Pablo Milanés, passando por temas de autores mais recentes, há um conjunto inumerável de temas dedicados à gesta do comandante guerrilheiro. Seleccionei vinte e cinco, um número tão aleatório como outro qualquer, traduzidos de modo mais literal do que literário. Uns são claramente melhores do que outros, já que o critério dominante foi o da representatividade e não o da eventual qualidade. Por razões de método, optei por incluir apenas canções deixando propositadamente de lado os poemas não musicados, de que, aliás, já existe pelo menos uma antologia de referência em Portugal, organizada por Egito Gonçalves e publicada pela Limiar em 1975.
Que os leitores possam sentir-se minimamente compensados e talvez, perdoe-se-me a veleidade, um pouco mais informados com esta leitura, é quanto me basta. O resto será determinado, como sempre, pelas circunstâncias da História. E essas, dizem-nos os factos, passam sempre pela vontade de cada homem que cria a vontade de todos os homens. Sobretudo aqueles que acreditam no valor da tal dignidade que foi sempre tão cara ao comandante guerrilheiro Ernesto Guevara de la Serna, para sempre e por todos chamado O Che.