Sentada à minha frente na sala ampla da antiga residência do Che em Havana, no bairro de Nuevo Vedado, a médica pediatra Aleida Guevara March olha-me com a firmeza de quem mantém intactas as convicções adquiridas na adolescência, quando ouvia, com indisfarçado orgulho, os colegas de escola relatarem os feitos heróicos de Ernesto Che Guevara, seu pai. Aleidita, como é comummente tratada em Havana, Aliucha, como lhe chamam os mais íntimos, nasceu e cresceu com a revolução cubana. Do pai guarda uma vaga memória de infância, alimentada ao longo dos anos pelas lembranças que a mãe, Aleida March, fez questão de lhe transmitir, assim como aos três irmãos.
Só passados 30 anos sobre a epopeia boliviana do Che, Aleida Guevara aceitou expor-se publicamente para falar do pai e da revolução. O que se segue é o resultado de uma longa conversa numa tarde de Havana, no Verão de 1997, a primeira entrevista da filha mais velha de Che Guevara e Aleida March a um jornalista português. Trata-se, obviamente, de um testemunho marcado pela proximidade familiar e por uma lembrança apaixonada do pai, mas que nem por isso deixa de reflectir o sentimento de toda uma geração relativamente ao homem que inspirou as suas mais nobres aspirações.
O discurso de Aleida está naturalmente de acordo com aquela que é a versão oficial do governo cubano sobre a vida e obra do Che. Apoiante incondicional do regime, coube-lhe fazer o discurso solene, em nome da família, no dia da chegada dos restos mortais de Guevara à ilha, em 1998. Falou, então, dos que morreram na Bolívia em 1967, «para continuar os ideais de Bolívar e de Martí, a construção de um continente unido e independente». Para Aleida Guevara, este não foi um sacríficio vão porque «os grandes sonhos só se realizam com imensos sacrifícios».
Durante a nossa conversa em Havana, Aleida dizia-me mais ou menos o mesmo sobre os cubanos mortos em Angola. Na altura, o MPLA já tinha trocado o marxismo-leninismo pela economia de mercado, a UNITA ocupara o lugar do antigo inimigo na lista das organizações proscritas pelos Estados Unidos e já pouca gente duvidava da natureza cleptocrata do governo liderado por José Eduardo dos Santos. O sonho, uma vez mais, chegara ao fim da forma mais dura, mas Aleida contrapunha aos meus um argumento de peso para justificar a luta internacionalista na antiga colónia portuguesa: a contribuição dos militares cubanos para o fim do apartheid, por tudo o que a sua presença em Angola significou, como contraponto à acção dos mercenários sul-africanos.
Hoje, Aleida Guevara continua a acreditar que, apesar de todos os recuos, a humanidade tem forçosamente de caminhar para um futuro melhor: «Os povos têm sido mais do que saqueados e, por isso, a situação económica vem piorando cada vez mais. O que me leva a reflectir que homens e mulheres têm de pensar no que vão fazer: ou morrer de fome ou morrer tentando mudar essa realidade», afirmou numa entrevista à BBC, em 2004. Participante activa nos fóruns sociais dos últimos anos e em numerosas campanhas contra o terrorismo do Império, a filha do Che não duvida de que só através da criação de uma sociedade mais igualitária é possível alcançar a paz: «Cada dia que passa, há um grupo de ricos mais ricos, mas que é pequeníssimo, e uma quantidade tremenda de homens e mulheres com as suas necessidades primárias por resolver. Parece-me que isso está a levar a humanidade na direcção de um momento de crise muito violento, e acho que deveríamos começar a resolver esse problema.» Pelo menos neste aspecto, a realidade não pára de lhe dar razão.
– Que recordações guarda do seu pai?
– Não são muitas, como compreenderá. Quando comecei a ser uma mulher, tentei recuperar na minha memória todas as pequenas situações de que me lembrava com o meu pai e a situá-las no seu contexto, para poder recordá-lo bem, para ficar sobretudo com as coisas que mais me interessavam, as que têm a ver com o contacto humano que ele teve comigo. É isso que me leva, por volta dos meus 20 anos, a iniciar a busca destas recordações íntimas. E houve algumas coisas que consegui recuperar, muitas delas já formadas por pessoas que estavam à minha volta nessa época, sobretudo a minha mãe.
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– Antes da partida do Che para a Bolívia, em finais de 1966, há um episódio passado durante um jantar em que ele apareceu com o disfarce que iria utilizar para sair de Cuba e onde você quase o reconhece...
– Ele já estava com o disfarce de «Ramón», mas queria despedir-se de nós, dos seus filhos, porque era um homem muito terno, com muito amor para dar. E, embora soubesse que não podia abraçar-nos e dizer-nos que era o nosso pai, mesmo assim queria ver-nos. Então a minha mãe levou-nos a jantar com ele. Apresentaram-no como o velho Ramón, um espanhol amigo, muito amigo, do meu pai. Dizem – disso eu não me recordo – que num dado momento eu lhe disse: «Tu não pareces ser espanhol, tens ar de argentino». Dizem que toda a gente se espantou: eu era uma menina de apenas cinco anos que, de repente e sem o saber, punha em causa todo aquele trabalho...
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– Mas, segundo sei, passaram-se outras coisas nessa noite...
– Depois disso, eu estou a brincar com os meus irmãos, em correria pela sala, escorreguei e bati com a cabeça numa mesa que – nunca me vou esquecer – tinha um tampo de mármore cor-de-rosa. Disso lembro-me muito bem: dei uma cabeçada tremenda e fiquei com um «galo» enorme na cabeça. Então o meu pai tomou-me nos seus braços, de uma maneira tal... Alguma coisa deve ter-se passado no meu subconsciente, algo de muito especial eu devo ter sentido. Porque, daí a pouco, estava ele a conversar com a minha mãe, mais ou menos à mesma distância a que estamos nós os dois agora, e eu comecei às voltas a dizer: «Tenho um segredo, tenho um segredo». A princípio a minha mãe não fez caso, até que a certa altura lá quis saber qual era o tal segredo. E então eu digo-lhe: «Mamã, eu penso que este homem está apaixonado por mim.» Eu era uma miúda, tinham-me dito que ele era um amigo do meu pai. E a maneira como ele pegou em mim e me protegeu era uma coisa que nenhum outro homem me tinha feito. Ora se ele não era o meu pai, na minha lógica feminina só podia estar apaixonado por mim. Anos depois, a minha mãe contou-me que foi difícil para ele ter que ficar assim, sem me abraçar e dizer que sim, que estava muito apaixonado. Mas sei que ele levou dali uma lembrança muito bonita, porque soube que eu tinha captado o seu amor por mim. E essa é também uma das coisas mais lindas que me ficou do meu pai. Essa noite é um exemplo da sua capacidade de amar sem palavras, de expressar os seus sentimentos sem falar.
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– Dizem que você é muito parecida com o seu pai...
– A minha mãe é muito mais parca de palavras, eu sou uma grande conversadora. Mas ela ensinou-nos sempre que não há dois seres humanos iguais, cada pessoa é um indivíduo. Que, na vida, há uma balança que é preciso saber utilizar: pomos as coisas nessa balança e vemos para onde se inclina o nosso lado. Portanto, ninguém tem o direito de fazer comparações. Temos que ser capazes de ser boas pessoas, de entender e ajudar o nosso semelhante – essa foi a educação básica que nos foi dada. Depois, claro, cada um reage mais a este ou àquele aspecto, precisamente porque somos indivíduos diferentes. No meu caso pessoal, a vida foi muito tranquila. Senti sempre muito amor, muita ternura à minha volta e que, por ser filha do Che, as pessoas gostavam de mim. Pela educação que recebi, dei-me conta de que, quando em algum momento me exigiam mais do que às outras crianças, era simplesmente uma demonstração de amor em relação ao meu pai. Aí, eu dizia – e digo, ainda – que não sou o meu pai e que, portanto, não podem exigir-me que actue como ele. Tudo isso eu aprendi com a minha mãe...
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– O que sentia quando, como é hábito nas escolas cubanas, ouvia as outras crianças dizerem: «Seremos como o Che»?
– Sentia um orgulho enorme. Estavam a dizer que queriam ser como o meu pai e isso era um grande motivo de orgulho. Mas era também um grande compromisso, porque, por ser filha desse homem, eu tinha que fazer todo o esforço para ser pelo menos o melhor possível como ser humano. Mas somos apenas, digamos assim, os seus «acidentes genéticos». [Sorri] Tocou-nos a nós, temos muito orgulho e muita honra, mas sabemos quais são as nossas possibilidades.
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– Para lá de uma referência ética e humana, a figura de Che Guevara está a transformar-se num mito, talvez o maior do século XX. Tem consciência disso?
– Tenho. E isso é uma coisa que me assusta muito. Porque quando se converte num mito um homem que foi justo, honesto, valente, está-se a separá-lo das pessoas. E o meu pai era um homem, de carne e osso, com virtudes e defeitos como toda a gente. Era um homem muito completo, talvez um homem único, mas como homem que era pode ser imitado, pode ser igualado e pode ser superado. É difícil fazê-lo, reconheço, em algumas coisas será praticamente impossível. Mas, como é tão humano como eu, está ao meu nível e eu posso fazê-lo se a isso me propuser. Se se converte simplesmente em algo para adorar, já se afasta dos homens por quem ele viveu e morreu. E isso eu gostava que nunca acontecesse.
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– Se o seu pai agora pudesse voltar aqui, o que acha que ele pensaria de tudo o que aconteceu em Cuba nos últimos 30 anos?
– Quando o meu pai foi embora, em 1965, ele sabia que esta revolução não tinha marcha atrás. Ele não viveu as coisas que se passaram entretanto e que obrigaram a uma série de mudanças e de reajustamentos, por isso é praticamente impossível responder a essa pergunta. Quem teria sido o meu pai? Uma vez, o meu irmão Camilo disse-me que, se estivesse vivo, talvez não fosse o nosso pai. O mais provável é que estivesse morto, se não na Bolívia, em outro lugar, se a sua saúde lhe permitisse continuar a combater. E, se não, ele estaria sempre preocupado com o bem-estar e o futuro do povo cubano. Isso é uma certeza para mim.
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– Embora por razões diferentes, portugueses e cubanos têm na sua história uma situação comum, que é o elevado número de mortos em Angola. Olhando para o que agora se passa nesse país, você acha que valeu a pena?
– Valeu. Vale sempre a pena ajudar um ser humano, faça ele depois aquilo que entender. Esse é o seu problema. No caso de África, a questão passa pelos muitos séculos de atraso e pela situação herdada do sistema colonial. Angola é uma criação artificial, como quase todos aqueles países. Os europeus chegaram ali e dividiram aquilo como entenderam, separando tribos inteiras, sem ter em conta a cultura e a tradição daqueles povos. Dividiram tribos inteiras, sem se lembrarem que em África não há nações e que o tribalismo é ainda a forma de identidade colectiva mais marcante. O único país africano que tem fronteiras reconhecidas por eles mesmos, que tem as características de nação, é a Etiópia. Tudo o resto foi feito pelos colonizadores, à medida dos seus interesses. O sentimento de pátria não existe, existe é o sentimento de terra, de ligação à terra que lhes dá comida, que cultivam e de que tiram benefícios. Para nós, não é assim: mais do que a terra, há a pátria. E, como dizia Martí, «o amor à pátria não é o amor ridículo à terra que se pisa e se transporta, é o ódio a quem a oprime e o rancor eterno a quem a ataca.» Isso é a pátria, para nós. Mas não se pode pedir aos companheiros angolanos que pensem da mesma maneira. O que nós fizemos foi dar um exemplo, ajudar as pessoas. Eu salvei vidas de crianças angolanas, com as minhas mãos. Que essas crianças um dia se recordem de que houve uma cubana que uma vez lhes tocou, as tratou ou simplesmente lhes deu um pouco de ternura, isso para mim é mais do que suficiente.
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