Muito cedo conheceu o peso da responsabilidade de ser «o neto de Che Guevara». Filho de Hilda Beatriz Guevara Gadea, a primogénita do mítico guerrilheiro, Canek Sánchez Guevara nasceu em 1974 e optou por sair de Cuba em 1996, um ano depois da morte da mãe. Músico, escritor e artista gráfico, Canek é um crítico do rumo seguido por Fidel Castro, a quem acusa de se ter afastado dos objectivos originais da revolução.
Anarquista por convicção – as suas únicas ligações políticas conhecidas são com o Movimento Libertário Cubano, que se reclama herdeiro das tradições anarquistas do chamado grupo dos três Enriques (Enrique Roig de San Martín, Enrique Messonier e Enrique Creci) que no século XIX teve um papel de relevo na luta pela independência de Cuba – Canek Sánchez Guevara acredita que «o socialismo do século XXI só pode construir-se a partir da consciência colectiva, e esta não pode florescer senão a partir de uma liberdade radical»
Deste modo, as ideias de Sánchez Guevara são particularmente incómodas para o regime de Fidel Castro. Não só porque se trata de um descendente directo do principal ícone da revolução cubana, como, principalmente, porque Canek está longe de poder ser considerado um contra-revolucionário: o que ele contesta não é propriamente o sistema, mas antes o regime político vigente na ilha, que considera ser «um vulgar capitalismo de Estado também chamado fidelismo». Consciente de que «ser ‘de esquerda’ implica antes de tudo questionar com dureza as incoerências e dislates da própria esquerda», Canek não hesita em afirmar: «Fidel Castro lutou como homem livre e hoje nega a liberdade dos outros: tornou-se despótico, cínico e prepotente até ao paroxismo. Nem melhor nem pior que um Fox, um Bush, um Berlusconi ou um Putin qualquer. Castro é um deles: tão igual como diferente – a mesma coisa, o mesmo lixo, noutro contentor».
Em Oaxaca, onde vive, Canek mantém-se voluntariamente afastado da generalidade dos grupos da oposição cubana no exílio – que, de resto, não poupam críticas à sua tese de que não foi o socialismo que falhou em Cuba, mas sim Fidel que se afastou do ideal socialista, como afirmou numa carta ao editor da revista mexicana Proceso, Homero Campa, em Outubro de 2004: «Todas as minhas críticas a Fidel Castro e epígonos partem do seu afastamento dos ideais libertários, da traição cometida contra o povo de Cuba e da espantosa vigilância estabelecida para preservar o Estado acima das suas gentes». Por outras palavras: «A minha crítica ao regime de Havana não surge porque ele seja comunista, mas sim porque não o é…» Uma posição a que não é certamente alheio o conselho que ouviu da mãe quando, ainda adolescente, recusou entre sarcasmos um convite para ingressar na Escola Militar Camilo Cienfuegos: «Se vais criticar a revolução», disse-lhe Hilda Guevara, «primeiro deves saber de onde vem, quais são os seus princípios e quais os seus fins.» Acrescenta Canek que, na mesma altura, Hildita o mandou ler Marx. O jovem seguiu a sugestão materna. E, hoje, é com base nas ideias de Marx que recusa as práticas de Fidel. Em boa verdade, poderá discordar-se do que pensa e diz Canek Sánchez Guevara – mas não se lhe pode negar a frontalidade e a capacidade de argumentação. Avesso a conceder entrevistas – a única que lhe conhecemos é uma «auto-entrevista» publicada na Proceso e que teve grande eco junto dos principais meios de comunicação europeus e americanos, com as (deliberadas ou não) deturpações do costume – Canek Sánchez Guevara aceitou, no entanto, abrir uma excepção para este livro, respondendo por correio electrónico a um conjunto de questões sobre o avô Ernesto e o rumo actual da nação cubana.
- Que significa para ti ser «o neto de Che Guevara»?
– É uma pergunta complexa, pois não tem uma resposta única. Digamos que no plano estritamente familiar, o Che para mim significa menos do que o meu outro avô, Jesús Sánchez, a quem, esse sim, conheci, com quem brinquei e ri... Mas ser neto ou filho de uma personagem como Ernesto Guevara é algo que marca muito para além do familiar, do pessoal, do íntimo; trata-se de «algo» que transcorre fundamentalmente no plano do público — muito mais que no âmbito privado. Digamos que os meus amigos procuram-me porque sou o Canek, e os jornalistas fazem-no porque sou Neto do Che... Agora, por trás de tudo isto há um montão de sentimentos indescritíveis que escapam a toda a lógica e a toda a explicação, porque o certo é que — queira ou não — ser Neto do Che é algo que «pesa» (ainda que não o diga em sentido negativo). Mas não é só isso: eu cresci no meio da esquerda, os meus pais inculcaram-me uma série de ideais que são pré-guevaristas e que o Che adoptou também. Os amigos e companheiros dos meus pais foram durante os primeiros anos da minha vida o equivalente a tios, primos e avós. Mas, por não serem parte de uma esquerda ortodoxa e anquilosada, os meus pais educaram-me na discussão e no questionamento perpétuo, e tal como alimentavam as minhas fantasias infantis, assim também me explicavam a cada passo em que consistia a realidade. Dentro de todo esse envolvimento o Che era importantíssimo, não só pelo vínculo familiar de minha mãe, mas também porque todo o círculo que nos era próximo pertencia à esquerda latino-americana ou europeia (alguns à teórica, outros à armada) e para todos eles o Che era já uma figura importante. Penso que, mesmo que não fosse neto do comandante Guevara, se tivesse, apesar disso, crescido no ambiente em que cresci, pensaria mais ou menos como penso hoje, porque a minha relação com os ideais revolucionários não provém do meu apelido, mas sim do riquíssimo mundo de discussão e participação política em que cresci. Assim, temo que não possa responder à tua pergunta concreta (“que significa ser neto do Che”) simplesmente, porque não sei como explicar-me. Até onde sou capaz tentei racionalizar uns quantos pontos, mas não sei descrever o mais profundo de tudo isto. Talvez se trate de algo muito mais visceral que intelectual, talvez seja apenas o bramido da torrente sanguínea ou o grito de guerra dos genes... Na verdade, não sei.
– Viveste a tua meninice repartida entre Cuba, México, Itália, Espanha… Não se pode dizer que fosse um crescimento «normal»…
– Creio que se alguma coisa caracteriza a meninice é o sentimento de “normalidade” que a rodeia, pois durante a infância não se conhecem muitas opções. Para mim, a minha infância era tão normal como para qualquer outra criança a sua própria. Depois, falando com os meus amigos, inteirava-me de que um deles sempre tinha vivido na mesma casa, outro não conhecia o mar e aqueloutro jamais tinha estado numa montanha. A mim isso parecia-me muito esquisito pois para mim o “normal” era andar muito de um lado para outro (inclusive, se vivíamos numa cidade viajávamos continuamente para outras cidades). A única coisa que na verdade me custava era ter de mudar tantas vezes de escola, deixar para trás os amigos e começar tudo de novo. Além disso, o meu exacerbado terror à instituição escolar provocava-me sempre ataques de choro e pânico em cada “primeiro dia de escola”. Em contrapartida, adaptava-me com facilidade, e pouco tempo depois já tinha adoptado o sotaque e os costumes das crianças do lugar (conta uma lenda familiar que poucos dias depois de estar em Espanha uma tarde cheguei a casa e, à queima-roupa, disse a meus pais: Joder tíos, es que vosotros sois la hostia... ). O que posso dizer é que todo esse vai-vém me curou de nacionalismos, de ver o mundo em pequenino e de acreditar que a "pátria" é mais importante do que o “homem”.
– «Seremos como o Che», dizem os meninos cubanos nas escolas. Quando ouvias esta «proclamação», o que se passava na tua cabeça?
– A primeira vez que ouvi a frase dita em coro fiquei pasmado, a meio caminho entre o orgulho e algo próximo da impotência. Depois, quando comecei a estudar em Cuba e tive que repetir a frase todos os dias na escola a coisa adquiriu outro matiz. Por um lado parecia-me uma impertinência enorme (para não dizer estupidez) pretender que todos fossemos de uma só forma; por outro, sempre me pareceram ridículos os rituais elegíacos (religiosos, partidários, culturais ou o que sejam: aborrecem-me. Mais tarde, tudo isto começou a parecer-me excessivamente hipócrita, pois os que nos incitavam a repetir tais consignas tinham tanto de revolucionários como eu de oftalmologista, digamos.
Acima de tudo, ser “revolucionário” não implica em primeiro lugar questionar profundamente o Estado e as condições sociais, económicas, políticas e culturais de uma sociedade? Sem esse primeiro passo não há pensamento revolucionário; no entanto, em Cuba, o governo emanado da Revolução proíbe tais atitudes. É estranho: no mundo em que cresci a Revolução é um acontecimento; em Cuba é um Estado. Um Estado “revolucionário” continua a parecer-me uma contradição insanável – mesmo se de contradições está feito o mundo. A questão é que a revolução é um momento, não uma perpetuidade – e “perpetuar” a revolução parece-me um mito tão grande como o da fonte da eterna juventude... Então, que significa “ser” como o Che? Em minha opinião significa, acima de todas as coisas, ser coerente até ao fim… Pergunto-me: é isto o que nos pediam que fossemos?
– Pelo que te disse a tua mãe e o que ouviste dos amigos e companheiros de Che Guevara, que imagem criaste do teu avô?
– Como disse antes, a personalidade de um homem plenamente comprometido com as suas ideias dá-me um grande alento; para além disso, parece-me um homem sumamente contraditório —e em tudo isto há que estabelecer a diferença entre o revolucionário e o autoritário, entre o guerrilheiro e o homem de Estado, mas sobretudo entre o mito e o ser real. De qualquer forma, todo o homem é filho da sua época, das suas circunstâncias, e parece-me terrivelmente ridículo julgá-lo a partir dos valores do “hoje” absoluto e pessoal, ignorando assim os valores do seu verdadeiro presente (os do “ontem” específico em que ele se desenvolveu). O que, sim, tenho claro é que se tratou de um homem disposto a arriscar tudo pelos seus ideais e isso, em si mesmo, já me parece admirável. Que além disso as minhas próprias ideias (sim, já sei, não há ideias próprias, vamo-las “recolhendo” pelo caminho — colhemos as ideias de outros e adoptamo-las como próprias) coincidam com muitas das suas aumenta ainda mais a minha admiração por ele, mas isso de nenhuma maneira indica que eu pense viver a minha vida como ele viveu a sua. Admiro-o como admiro muitos outros seres que não são meus parentes... Como disse antes, há coisas que nada têm que ver com o apelido.
– Se ele fosse vivo, qual pensas que seria a sua atitude perante o estado actual de Cuba?
– Na verdade, não sei. Quando vivia em Havana muita gente (sobretudo pessoas que tinham idade suficiente para ter vivido a revolução) me sussurrava entre runs e sorrisos cúmplices que se o Che estivesse vivo se levantaria contra o tirano. Mas o certo é que ele foi embora da ilha, renunciou aos seus cargos, e quis começar tudo de novo. Penso que se teve discrepâncias com “o Velho” não quis — ou não pode — torná-las públicas; se percebeu para onde se dirigia esse barco, não pode detê-lo nem denunciá-lo — ou não quis, talvez. Honestamente, não faço a mínima ideia a respeito da sua provável atitude perante a realidade cubana de hoje, mas o certo é que o Che era em primeiro lugar um rebelde, não um funcionário ou um homem de Partido... Por último, a tua pergunta lembra-me algumas que eu fazia à minha mãe e a que ela, invariavelmente, respondia: “Ai, Canek, se eu tivesse rodas seria bicicleta, que raio de pergunta é essa?”
– Digamos que é uma pequena «provocação». E cá vai outra: será que o Che se transformou numa presença incómoda para Fidel?
– Não duvido, mas tampouco posso prová-lo. Não duvido, não pelo próprio Fidel mas antes pela lógica do Poder em si. Do poder absoluto, claro, mas também do poder puro e simples (ao fim e ao cabo todo o poder é em si mesmo um absoluto). A casualidade existe — e pessoalmente penso que somos o irredutível subproduto do caos — e não poucos cubanos se questionam sobre a pertinência de chamar casualidade à sorte que tiveram os outros três grandes comandantes da revolução: Camilo Cienfuegos, desaparecido num acidente de aviação, Hubert Matos, condenado a vinte e cinco anos de prisão por traição à Pátria, e Ernesto Guevara, cuja sorte bem conhecemos, lá na Bolívia. Para muitos, o Che era um autoritário, sim, mas também era um homem com um profundo sentido crítico. No me admira que algumas das suas interrogações tenham calado fundo na personalidade de alguém como Fidel Castro, com o seu tremendo sentido de infalibilidade —denominador comum a todos os ditadores. Outra coisa que os tiranos têm em comum é essa profunda paranóia que os faz ver inimigos por todos os lados, inclusive entre os seus amigos. Como disse no princípio, na lógica do poder absoluto tudo isto é normal; não vejo como Fidel poderia ser alheio a essa normalidade.
– Há quem diga que Fidel Castro atraiçoou o Che e que, se quisesse, teria podido evitar a sua morte na Bolívia. Que pensas disto?
– Parece-me “lógico” se aceitamos como premissa que o Che se tinha tornado incómodo para Fidel (ou para Raúl, como sabê-lo?). O certo é que com a capacidade militar que então Cuba tinha podiam tê-lo tirado da Bolívia em poucas horas, a partir do Chile de Allende. Sabe-se que o Partido Comunista boliviano abandonou a guerrilha à sua sorte e diz-se também que o KGB esteve implicado em tudo isso (o Che nunca gostou do modelo soviético, e o modelo soviético nunca gostou do Che); mas, repito, conhecendo um pouco a história do poder entendemos que tudo isto é lógico, normal, em toda a luta pelo absoluto (não o avalizo nem o aplaudo, simplesmente constato que é assim). Para aqueles que ainda pensam que Cuba “é o único país do mundo onde o ser humano pode ser humano” — como um dia afirmou um certo compatriota teu — a ideia de que na Revolução existe autoritarismo parece-lhes insuportável; mas para os que entendemos que o autoritarismo não tem tanto que ver com uma série de ideais como com uma série de práticas, tudo isto se torna possível (e visível). Na política real as coisas acontecem de um modo muito distinto do que dizem os manuais revolucionários e os tratados económicos; infelizmente muitos iludidos no mundo alucinam que Cuba é uma ideia e não uma realidade real. Quando se perde esta perspectiva o pensamento anula-se e só funcionam as crenças, as simpatias e as adulações (ou ataques) vulgares... O certo é que na luta pelo poder estas coisas acontecem — em Cuba e em qualquer outro país.
– Nos últimos tempos, as tuas críticas ao regime cubano foram muito ampliadas nos meios de comunicação ocidentais. Dás-te conta daquilo que significam as tuas ideias enquanto descendente directo de um dos principais obreiros da revolução cubana?
– Percebo o peso simbólico que isto pode ter, mas penso que se as minhas ideias têm algum valor real, este só pode provir das próprias ideias (se é que valem alguma coisa, claro). Mas a realidade é feita também de simbolismos — ou percebemo-la através destes — e compreendo perfeitamente que haja quem que se preocupe mais pelo meu apelido do que por aquilo que eu mesmo penso. As minhas críticas ao regime cubano não têm que ver com o meu avô, mas comigo, com a minha geração, com a Cuba que eu conheço; não com a do Che. Como disse antes, não creio que as minhas ideias a esse respeito fossem muito diferentes se me chamasse Gutiérrez em vez de Guevara. Agora, claro que tu me estás a entrevistar porque sou neto do meu avô (como tu do teu, suponho); e claro que quando os teus leitores se confrontarem com esta entrevista pensarão primeiro nos meus vínculos familiares, mas quero crer que nada disto anula ou fortifica as minhas críticas ao Estado cubano. As ideias que eu sustento são as de muitos outros cubanos, filhos e netos de bons e desconhecidos cidadãos, que não têm voz pública e que, se se expressassem, seriam imediatamente acusados de «gusanos». O que eu penso, se vale, vale por si mesmo, pela confrontação com a realidade, não pelo meu apelido; mas, insisto, entendo o peso que tem e se eu não tivesse esse «peso» (esse apelido) tu não estarias a entrevistar-me. A realidade, afinal de contas, funciona também de modo simbólico.
– Naquilo que passa das tuas palavras para a opinião pública, por vezes surge a ideia de que estás contra a revolução. Mas tu continuas a dizer que és comunista. Isso quer dizer que Fidel já não o é?
– Primeiro, a que é que chamamos comunismo? A uma série de ideais de igualdade e liberdade ou a uma série de ditaduras erigidas em seu nome? Isto leva-me a outra pergunta: a que é que chamamos revolução? A um acontecimento social surgido da saturação de todo um povo, ou a um estado que pugna em vão por eternizar-se? Alguns ingénuos (alguns bem intencionados) referem-se ao regime ditatorial como A Revolução, quando a verdade é que a revolução ocorreu há já quarenta e tal anos. O que resta é um Estado totalitário emanado dessa gesta revolucionária; o que resta em Cuba dos ideais do comunismo é uma ditadura que em seu nome controla tudo e a todos. Eu recuso-me a chamar «comunismo» a essa farsa — parece-me demasiado desprestigiante para a ideia—, e desgosta-me também chamar revolução a algo que nas últimas décadas não deu nenhuns passos verdadeiramente revolucionários. A revolução já morreu, e o comunismo, se existiu, foi um sonho de que despertámos brutalmente em 1989. A verdade é que nem estou contra a revolução (como podia estar contra acontecimentos naturais — a cubana não foi a primeira nem será a última revolução, há que ter isto claro, é apenas mais uma), nem sou anticomunista. O que é absolutamente certo é que estou contra a imposição de qualquer Absoluto; sou contrário a toda a tirania, mesmo que pretenda perpetuar-se com consignas «comunistas» ou «revolucionárias». E se tudo isto fizesse de mim um gusano, então só poderia afirmar que nasci num organismo em avançado estado de decomposição...
– «Ser de esquerda implica antes de tudo questionar com firmeza as incoerências e dislates da própria esquerda». São palavras tuas, e parece-me que têm muito a ver com o pensamento do teu avô – que, creio, foi bastante crítico perante muitas dessas incoerências. Estás de acordo?
– Tens razão (e julgo já o ter mencionado antes), Ernesto Guevara possuía um sentido crítico profundíssimo, mas também há que lembrar que se houve alguma ruptura entre ele e Fidel, ou se compreendeu que o totalitarismo do Estado cubano acabaria por arruinar o país, preferiu calá-lo para não «dar armas» ao inimigo ou porque afinal de contas ele ainda era parte disso. Sem dúvida que foi muito crítico, mas sem dúvida que não o foi assim tanto. Foi muito crítico dentro do ambiente asfixiante da voz única, mas não tanto a ponto de questionar a própria asfixia. De qualquer forma, insisto sempre, há que mergulhar nas condições do momento — no envolvimento, nos contextos — para analisar qualquer figura histórica, ou acontecimento. Nem a revolução cubana ocorreu porque uma vanguarda comunista decidiu que assim seria (ocorreu, como todas as revoluções, porque as condições materiais, políticas, objectivas e subjectivas, eram já demasiado opressivas para todos os sectores da sociedade), nem Ernesto Guevara de la Serna era apenas um herói galhardo e límpido ou um arrogante aventureiro absolutista. Ernesto Guevara, chamado o Che, era um homem complexo e dinâmico — diferente de outros, lineares, cinzentos, sempre iguais de tão monotemáticos. Não falo do revolucionário, nem do homem de Estado, nem do pai de família, nem do amante, nem do aventureiro; falo do homem que continha em si todos esses homens... Repito: era um homem complexo, profundo, crítico e sumamente vital. O Che morreu muito jovem, mas morreu obcecado com a vida que ainda poderia construir-se; Fidel agarra-se à vida com unhas e dentes, ainda que apenas fale de morte. Enfim, claro que Ernesto Guevara era muito crítico com certas atitudes da esquerda, mas também não digeria muito bem as críticas às suas próprias atitudes. Como disse, era um homem complicado...
– Como imaginas que será Cuba depois de Fidel?
– Na verdade não sei o que se passará. Imagino que poderia desencadear-se uma luta furiosa nos intestinos do Aparelho (todos esses parasitas lutando pelas sobras); que sairiam do buraco os dirigentes agora transformados em empresários e as máfias que já operam impunemente na Ilha. A burguesia socialista e a aristocracia revolucionária no tardariam a aliar-se com os antigos inimigos do povo e venderiam Cuba inteira se disso dependesse a sua sobrevivência. Esse é um cenário que imagino; o cenário soviético, digamos. Pessoalmente creio que devemos resgatar do abandono muitas das instituições herdadas da revolução, hoje em completa ruína. Não me refiro só aos sistemas de saúde e educação, mas também ao sistema parlamentar conhecido como Órgãos do Poder Popular. No fundo de tudo isto está subjacente uma pergunta que considero fundamental: são na verdade incompatíveis o socialismo e a democracia? Eu penso que não, que não deve ser assim e que onde não há liberdade individual não pode haver verdadeira liberdade social, porque afinal de contas a sociedade sempre é feita de indivíduos. Não há socialismo onde os indivíduos não têm verdadeiro poder de decisão no que respeita ao social (não há socialismo onde um ditador decide os destinos de todo um povo). Penso que a entrada massiva do capitalismo é iniludível; mas uma coisa é entregar-se e outra utilizá-lo. Penso que para fazer frente a um capitalismo forte têm que haver um Estado forte em que a sociedade toda participe e tenha voz e voto nas decisões comuns. Não falo só de eleições, pois de nada serve eleger um idiota que depois vá fazer o que lhe dá na gana — e ainda por cima com a anuência de decentes e honestos deputados e senadores sempre preocupados com o bem do povo; falo de verdadeira participação, começando pela elaboração das leis que depois todos teremos de respeitar. É necessário um Estado que reparta os benefícios do capital com justeza para evitar cair na voragem do “salve-se quem puder”; é fundamental garantir os direitos sociais da população, apesar do capitalismo imperante...
Porque o capitalismo, há que deixá-lo bem claro, nunca se foi embora de Cuba, pura e simplesmente, estava sob o controlo do Estado; mas quando Fidel morrer, e com ele o fidelismo, o assalto do Capital vai ser, no mínimo, como um tsunami. De facto esse assalto já começou e iniciou-se com o aval do Comandante e dos gendarmes do socialismo; assim, o Estado de operários e camponeses colabora activamente na exploração dos trabalhadores. O pior de tudo isto é que a cúpula fidelista encarregou-se bem de diluir todo o intento de auto-organização, de autogestão, de crítica ainda que dentro do próprio socialismo, deixando assim desamparados os trabalhadores cubanos perante a invasão do dólar. Sem sindicatos operários funcionais, sem organizações políticas ou de cidadania independentes, sem uma produção livre, como fazer frente às transnacionais que aguardam a luz verde, e às injustas regras do Banco Mundial e do FMI? Por isso insisto no tema, devem ser resgatados da actual inoperância os sindicatos e as organizações de participação dos cidadãos para que o pouco que ainda resta da gesta revolucionária não seja vendido a um turista por três patéticos dólares... Em definitivo, estou farto da hipocrisia e da mentira. Prefiro a aceitação da realidade do capital e fazer o possível para que esse capital renda frutos em termos sociais — que as escolas e hospitais funcionem bem, que a educação seja cada dia melhor e não o contrário, que os cubanos sejam plenos donos da sua força produtiva e decidam a quem vendê-la — a essa farsa em que nada é permitido, mas vale tudo. Porque na “vida real” em Cuba toda a gente vende e compra; legal ou ilegalmente o capitalismo sempre esteve entre nós.
Mas tudo isto quem o diz é o eu pragmático porque o eu anarquista sonha com a abolição total do Estado e do mercado, com a queda das fronteiras e com a livre circulação de trabalhadores e produtos, com o desaparecimento da dicotomia entre indivíduo e sociedade; e já colocado nesse plano, não me conformo com menos. Mas se algo tenho claro, querido Viriato, é que Cuba já teve demasiados sonhadores prontos a confundir a realidade com a ideia, e não necessita de mais um. Por isso, o melhor é calar-me.