A Utopia segundo Che Guevara é um livro muito honesto, colorido e por vezes vibrante, do excelente jornalista que é Viriato Teles. Trabalho apaixonado, que levou anos a fazer-se, participa da reportagem, das entrevistas (aliás múltiplas entrevistas, desde os diálogos com personalidades marcantes às colheitas de opiniões de rua) e do documento histórico.
Há nesta obra, prefaciada por Baptista-Bastos, no seu modo caloroso e inspirado, um tom próprio e um grande amor a Cuba e ao seu povo, que no entanto não recua perante o registo de vozes contrárias, introduzindo por vezes no texto a polémica.
Quem já visitou Cuba e ficou tocado pelo seu encanto sensual, pela alegria da sua música, dos seus ritmos tropicais, pela beleza tão singular da Habana Vieja, do canto do mar no Malecón, da arquitectura do Caribe, da abertura das suas gentes, seu trato familiar, tudo isso vai reencontrar neste livro, juntamente com informações rigorosas sobre o passado da Ilha, as lutas pela independência, a aventura épica do assalto ao quartel Moncada e da guerrilha na Sierra Mestra, com factos precisos, dados e evocações que resultam de muita leitura, muito inquérito e um trabalho de campo por vezes minucioso.
Cheiros, paladares, relances sobre a paisagem e sobretudo sobre a alma do povo, o seu viver e sentir. E de tudo isto sobressai sempre a preocupação dominante de reencontrar Ernesto Guevara nas diversas etapas da sua existência, através de depoimentos seguros e até de comentários soltos, assim tentando reconstitui-lo na sua bravura, na sua ironia, na sua grande capacidade de afecto, na sua quase secura com os desconhecidos, que podia transformar-se em ternura. E na sua inteireza radical, na carga ilimitada de sonho, apoiada numa cultura muito rica e numa firme consciência marxista e revolucionária.
O jovem médico generoso que percorreu de mota a América andina e caribenha, o Che da batalha de Santa Clara, o político dos estímulos morais, mais fortes do que os materiais, o guerreiro do Congo e da Bolívia, o paladino das grandes causas e fruidor dos pequenos prazeres, que fascinava as mulheres e as vezes se deixava também fascinar, o prisioneiro ferido de Valle Grande, sereno perante a morte, encontrá-lo-emos nesta viagem pelas ideias, pelos acontecimentos, pelas palavras em torno dele. É o que Viriato Teles em boa hora persegue e nos comunica com talento. Não deixou de consultar os biógrafos mais conhecidos, até os detractores da Revolução, nem de auscultar quem rodeava Guevara ou a sua própria descendência.
Duas grandes entrevistas de sinal contrário surgem no final do volume: uma, datada de 1997, com a filha médica do Che, Aleida Guevara, que fala serenamente do pai e do seu modo de estar no mundo, com infinita admiração e carinho, que também fala com orgulho do povo cubano e da sua solidariedade. Diferente e a entrevista com o neto do Che, Canek Sánchez Guevara, ele também ligado à memória do avô, mas exilado no México, libertário, escritor e artista gráfico, que acusa Fidel Castro de haver desvirtuado a revolução cubana, instaurando uma ditadura pessoal.
Do confronto de dois pontos de vista tão opostos sobre Cuba não se podem tirar conclusões, a não ser a de que Viriato Teles, que não esconde a sua simpatia pela Revolução Cubana, quis entretanto fornecer ao público várias visões e perspectivas, o que, enriquecendo o livro, não lhe retira valor nem autenticidade.
Aliás, o carinho com que trata a «utopia» de Ernesto Guevara, longe de insinuar que não será fácil ela realizar-se, deixa-nos, a terminar a obra, as letras das inúmeras canções dedicadas ao Che.
E não posso deixar de inscrever aqui, partilhando a sua emoção, a ultima quadra de Hasta Siempre (letra e música de Carlos Puebla):
«Aqui se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.»