Lisboa, 25 de Março de 1982. Faltam dez minutos para as onze da manhã e Léo Ferré espera-me no átrio do hotel onde combinámos encontrar-nos. Uma vez perguntaram-lhe: «Então tu dizes que és anarquista, mas cumpres horários e páras nos sinais vermelhos?» E ele: «Precisamente porque sou anarquista.» Apenas outra forma de dizer o que já tinha escrito: «Le désordre c’est l’ordre moins le pouvoir.» Pois é.
O passaporte diz que Léo Ferré nasceu no Mónaco em 1916, filho de Joseph e de Charlotte, ela costureira e ele director de pessoal do Casino de Monte Carlo. No fim da adolescência, em 1935, Léo foi estudar Direito para Paris, mas não lhe valeu de nada. Regressou ao principado para trabalhar como locutor na Rádio Monte Carlo, e por lá permaneceu até fazer trinta anos. Mas tudo se transformou quando conheceu Edith Piaf e se mudou para Paris. «Não passo de um artista de variedades e não posso dizer nada que não seja “de variedades”, para não ser acusado de falar de coisas que não me dizem respeito». Nesse tempo, uma carreira artística leva tempo a construir, está longe ainda a era dos tops que hão-de aplicar à música a estratégia de produção da fast food. Ferré espera oito anos até poder cantar no Olympia, o que acontece pela primeira vez em 1954.
Dois anos depois conhece André Breton, cuja amizade terá um papel fundamental na sua vida e no desenrolar da sua obra. Mas é a partir dos anos 60 que Ferré se torna um nome popular, sobretudo entre os mais jovens, deslumbrados com a música e as palavras de temas como “La Solitude” (gravado juntamente com um grupo rock, o Zoo, para escândalo dos puristas da francofonia), “Il N’y A Plus Rien” ou “Les Anarchistes” – ouvido em tal abundância durante o Maio de 68 francês que Léo Ferré esteve anos sem voltar a cantá-lo, «porque as bandeiras negras são bonitas, mas não deixam de ser bandeiras».
Léo Ferré é ternura, é violência. É. «Provoco o amor e a insurreição. Yes! I am um imenso provocador». A provocação de Ferré penetra como uma agulha contra a indiferença. Nas palavras, nos gestos, nos olhos tremendamente vivos que nunca deixam de nos fixar. Provoca, ainda, quando desafia a mitologia intelectual e traz para as canções a poesia dos intocáveis que já foram malditos – Rimbaud, Baudellaire, Aragon, Appolinaire – lado a lado com a sua própria poesia. Maldita?
O Ferré que encontro nessa primavera iluminada tem quase 66 anos e as mesmas convicções que o guiaram a vida inteira. Está em Lisboa a convite de Luís Cília, amigo e admirador que assim cumpre o desejo antigo de o trazer a Portugal. A conversa prolonga-se muito para além das duas horas de fita gravada, o tempo passa a ser uma dimensão desconhecida. Il n’y a plus rien.
E no entanto Ferré não é deus, nem demónio, nem profeta. Apenas um homem, de um outro país que não o vosso, de um outro bairro, de uma outra solidão. Que mija, ejacula, chora. Que prefere o tu ao você, no diálogo. Que gosta dos Pink Floyd, de Lennon, do Diabo, de Apollinaire, e que detesta Marx, Estaline, Salazar, De Gaulle, Mitterrand. Ferré, Léo, filho de Joseph e de Charlotte, c’est ça. Sentemo-nos, então, antes que o café matinal arrefeça.
– Dizem que Léo Ferré é o sobrevivente de uma geração perdida...
– Melhor do que isso: que sou o porta-voz de um mundo perdido. É isso, de facto, porque tenho a impressão de que fui inspirado... Para me fazer compreender, eu falo de um mundo perdido, porque ele existe, certamente. Não o vemos, mas eu persisto. Prefiro pensar que aquilo a que se chama alma são os extraterrestres, as coisas que estão para lá do nosso entendimento, mas que existem. Quer sejam Deus ou um tocador de violoncelo. Mas de certeza que não são um fascista...
– O “mundo perdido” é a Utopia?
– Não. Vou dar um exemplo: se olhares para um carreiro de formigas, tu dizes: “Que interessante que isto é!” E não tens necessidade de intervir, porque as formigas são demasiado pequenas. Ora eu penso que há certamente outras pessoas no Universo que olham para nós, e nós somos as formigas. E é por isso que não há uma intervenção contra o terror neste mundo. Terror político, claro. Não há intervenção contra os que matam e torturam pessoas em El Salvador e na Guatemala, por exemplo. E será assim, até ao dia em que eles peguem numa lupa e olhem para as formigas – para nós – e vejam tudo isso. Então eles intervirão e eu creio que é muito possível que isto venha a acontecer. Se eu lhe chamo o “mundo perdido” é porque é um mundo que nós inventamos, que não se vê. E é muito bom dizer que ele existe, porque constitui uma esperança. E sem ela não se podia viver...
– E qual é o teu papel entre as formigas?
– Eu faço música, sou a formiga que canta...
(Ri-se, como quem procura não esconder nada. É como se dissesse: «Je voudrais m’insére dans le vide absolu et devenir le non dit, le non avenu, le non vierge par manque de lucidité.» Fala da música como o seu veículo para chegar às pessoas, desdenha daqueles que «pensam que são poetas quando não passam de dactilógrafos». O repórter ouve. É jovem e está disponível para o fascínio. Conhece a música de Ferré desde que, era ainda mais jovem, percorreu “La Solitude”, perdido nos becos de uma pacata vila de província, descobrindo que “on n’est pas serieux quand on a dix-sept ans”. E quando finalmente partiu à descoberta do mundo, meteu na bagagem uns quantos livros e alguns discos: os seus portugas de eleição, mas também Brel e Pink Floyd, Beethoven e Vinícius, jazz avulso e algum Stones, os Zappas que tinha à mão. E Ferré, claro. Agora, o repórter jovem, que daí a dois dias fará vinte e quatro anos, sente que tem a vida toda à sua frente. Ainda não sabe que nunca mais vai esquecer aquele aniversário, celebrado com Ferré em palco e lágrimas nos olhos. Mas bastar-lhe-á esta conversa para compreender que nunca mais vai ser o mesmo.)
– A maior parte das pessoas que gostam das tuas canções são homens e mulheres entre os 20 e os 30 e tal anos...
– Até menos. Dá-me muito prazer saber que pessoas de 16 e 17 anos conhecem as minhas coisas. E isso acontece sobretudo através dos discos. Estás a ver como é importante? É uma forma de enviar a minha mensagem: em vez de o fazer por telegrama, faço-o por disco. Uma vez encontrei uma rapariga, bastante nova, que me disse: “Tu estás em minha casa há cinco dias. E há cinco dias eu não te conhecia. Comprei os teus discos e agora conheço-te. Vens comigo?” Ora isto é extraordinário. E o que é isto? É a música. Porque as pessoas não lêem poesia. Comprar um livro de poemas, ir às livrarias, isso não existe, à parte de pessoas como nós. Com o disco...
– Isso não quererá também dizer que há uma esperança de futuro na juventude?
– Sim. O meu pai disse me um dia: “Comigo não há maioridades.” Isso hoje mudou muito, felizmente. Mas os jovens não são ajudados. Em França, por exemplo, os economistas que fazem os orçamentos para a “defesa nacional”, para a guerra, têm problemas porque os aviões, as máquinas, os carros de assalto estão fora de moda. Mas com metade daquilo que se gasta para preparar os meios de defesa, os generais, os soldados, podia-se dar um subsídio aos jovens dos 18 aos 21 durante três anos. Voilá. [Faz um gesto largo, entre o irónico e o admirado] Os jovens são incompreendidos pelos adultos, pelos velhos. Há dois anos propuseram-me conceber um espectáculo de três semanas no Palácio dos Desportos, em Paris, onde incluí uma cantata de Prokofiev. Então escolhi rapazes e raparigas para dançarem no espectáculo. Mas vesti-os de “jeans” e blusões, como se estivessem numa discoteca. Porque não havia de ser assim? Porque não se pode dançar Prokofiev numa discoteca?
– Isso é a subversão?
– Claro. Eu sou um subversivo...
– E como reagiram os intelectuais?
– Os intelectuais ficaram desconcertados. Os intelectuais... [Abre os braços com ar de desprezo e sorri] Sabes como é...
– Em Portugal existe muitas vezes a ideia de que a França é o mundo da cultura. Mas afinal o que é a França?
– A França é um país de origem latina. [Risos de parte a parte] É verdade. O problema é outro, porque a cultura são as pessoas. E essa palavra cultura... A cultura, como dizia alguém, é ter aprendido tudo e ter esquecido tudo. Mas a partir do momento em que há um ministro da Cultura... Pfff...
– Falaste de ministros da Cultura...
– Putain!...
(Ferré ri-se das autoridades, dos burgueses, dos revolucionários de cartilha e nós rimos com ele. Ri-se de Mitterrand, «não o conheço», de Brejnev, «chamo-lhe Brejcu», de Ronald Reagan, «um actor medíocre», de todos os políticos. «Venderia o poder se pudesse fazê lo», dirá no decorrer do espectáculo. E o poder, incapaz de lutar contra a sua arte, limita-se a ignorá-lo. António Duarte, jornalista e amigo que também participa neste encontro, cita Marcuse: «A única linguagem verdadeiramente política é a linguagem poética». Ferré pega na deixa.)
– A diferença entre Marcuse e eu é que eu tenho mais facilidade em fazer-me compreender, porque tenho a música. A música é o veículo, é o autocarro, o comboio ou o avião que leva as palavras aos vossos ouvidos.
– Disseste há tempos que a humanidade vai a caminho de um fascismo generalizado, com os cidadãos a terem números em vez de nomes. Será esse o nosso futuro?
– É o futuro, tal como o é agora o presente e, de certo modo, o foi o passado. Lembro-me do que se passou comigo quando era pequeno e fui para o colégio. Tinha nove anos e a minha mãe levou-me à gare de Monte Carlo, sob os auspícios de um senhor professor, com destino ao colégio. Então, durante oito anos, esse senhor chamou-me sempre pelo número 38. Era uma marca. Para isto e para aquilo era sempre o 38...
– Acreditas na derrota do capitalismo?
– Não penso nisso. Na União Soviética também há um capitalismo, de Estado. É uma questão de nomenclaturas. Quer dizer: há 250 milhões de russos e alguns milhares vivem à sombra de Brejnev – que tem não sei quantos cadillacs e tudo isso... É que os homens são todos iguais mas, como dizia o outro, há uns que são mais iguais do que os outros...
– O que é a igualdade?
– [Aponta para o coração] O amor.
– O que pensas dos movimentos de libertação das mulheres?
– As mulheres têm necessidade de se revoltar, neste mundo incrível. É inacreditável que, nos nossos dias, uma mulher tenha um salário inferior ao de um homem só porque é mulher. Mas os movimentos de libertação das mulheres... A esses eu chamo os ‘movimentos das mulheres mal fodidas’.
– Mais subversão...
– Aqui, não. É a realidade. As mulheres são diferentes dos homens, mas é preciso que se associem, que se entendam. É necessário que o homem ame a mulher, e a mulher ame o homem. Voltamos à mesma questão: tudo começa no amor. Até há poucos anos, as mulheres italianas não tinham direito a voto. Porquê? É espantoso! Não entendo que haja diferença de direitos. Mas isso é uma luta que todos nós, homens e mulheres, temos de empreender.
– Achas importante a legalização do aborto?
– Mas ainda não é legal, aqui?! Em França e em Itália, já. É um direito básico, o mínimo que se exige! O que é preciso é evitá-lo, porque é perigoso. Creio que a verdadeira pílula tem de ser ministrada nas universidades: é o ensino do amor sexual – e, sobretudo, aos homens. Porque poucos homens conhecem as mulheres. Mas o mais engraçado é que todos se consideram muito sabedores... O conhecimento profundo da mulher e da sexualidade por parte dos homens seria a verdadeira pílula. A pílula para os homens.
– Desde há uns anos que vives em Itália, no campo. Porquê?
– Porque tenho possibilidades de o fazer. Tu não podes viver no campo, mesmo que queiras, porque trabalhas aqui, numa cidade. E nas cidades as pessoas não se conhecem nem se amam.
(O amor, mais uma vez. Marie, amor de Léo, espanhola de Salamanca, mãe de três filhos do poeta. «Je te donne les fleurs à inventer, les jouets d'une comète, les raisons d’être fou, la folie dans ta tête...» Marie, mulher, Léo, o amor como motor revolucionário. É isso que quer comunicar às pessoas que o ouvem, mas acredita que o seu trabalho «tem um pouco de D. Quixote». É essa, acrescenta, «a dimensão da solidão.» Ferré diz tudo isto sem leviandade. Ele sabe:)
– Foi nesse sentido que escreveste canções “heréticas” como “Thank You Satan” ou “Merci, Mon Dieu”?
– “Thank You Satan” é um agradecimento a Satanás por fazer de nós “maus”. A outra é agradecimento a Deus por todas as porcarias que nos envia lá de cima. Tudo o que se considera “mal” é bom. Tudo o que se considera “bom” é mau. [pausa] Bom, excitei-me um bocado...
– Diz se que és o último dos “cantores malditos”, como o foram Jacques Brel e Georges Brassens...
– Não acho que eles tivessem sido, ou sejam, “malditos”. Nunca o foram. Não tinham a maldição de Baudelaire, por exemplo. Talvez as pessoas lhes chamem malditos por moda, ou por não saberem do que falam.
– Que é “ser-se maldito”?
– Incomodar.
– Brel e Brassens não incomodavam?
– Nem por isso. Eram bem amados e pouco odiados. E também não é verdade que fossemos os três amigos e que nos conhecessemos muito bem.
– Ser-se maldito é escrever, como fazes em “La Violence et l’Ennui”, que suprimida a violência nasce o aborrecimento?
– Certamente. Esse disco fala do movimento abortado de 1968. O Maio de 68 foi fantástico. Era a violência das palavras e dos gestos, sem tiros de revólveres.
– É essa a violência que apregoas?
– É essa violência que assumo. Quando saiu “La Violente et L'Ennui” houve jornalistas que disseram que eu estava velho...
– Disseram isso?
– Sim, sim, Então, como estou velho, quis provar-lhes que estava mesmo velho. Assim, em Outubro passado, a editora propôs-me um novo álbum e eu disse: “Está bem, mas gravo três discos.” Tomaram-me por louco. Então peguei no telefone e marquei datas de gravação num estúdio de Milão. Marquei um “rendez vous”, por 15 dias, com a orquestra sinfónica da Radiotelevisão de Milão, preparámos as composições e entrámos em estúdio. De 4 a 18 de Dezembro ficou tudo gravado: três discos. Portanto, estou velho...
– Era necessário dar essa prova quantitativa a essa gente que afirma que estás velho? Ou não será que quem diz isso é que sofre de senilidade?...
– Não era preciso todo este aparato, mas também foi uma maneira de, de uma assentada, dar forma a ideias musicais e a escritos que, de outro modo, iriam ter concretização discográfica adiada.
– Vamos então ao conteúdo desse triplo-álbum. Como se chama?
– O álbum deverá ter três títulos autónomos, um para cada disco: “Ludwig”, “L'Imaginaire” e “Le Bateau Ivre”. O primeiro disco, “Ludwig”, é sobre Beethoven. Nele conto uma história que se passou comigo quando era miúdo. É curioso, porque ali defendo a tese de que os artistas são-no por circunstância. Beethoven fez determinadas coisas porque o provocaram para as fazer. Eu próprio penso muitas vezes como é que fiz “Il n'y a Plus Rien”... Bom, no caso de “Ludwig”, um editor tinha-me pedido um prefácio para uma obra sobre Beethoven. Então, meti a folha na máquina e tentei. Escrevi três páginas e cheguei à conclusão de que não queria escrever esse prefácio. Nesse texto, tenho a impressão de que é Beethoven que me fala. Mais tarde havia de resolver incluir esse texto neste disco. Li-o sobre a música e penso que resultou. O segundo disco chama-se “L'Imaginaire” e tem muita percussão. No terceiro, “Le Bateau Ivre” volto a musicar Rimbaud. Espero que este álbum não agrade a toda a gente, senão é seguramente mau...
– Falaste na criação de circunstância citando “Il n'y a Plus Rien”, dando a entender que terá sido obra do acaso. Como surgiu esta composição?
– Um amigo meu ia realizar um filme sobre São Francisco de Assis nos tempos actuais. Pediu me para fazer de São Francisco e eu disse que sim, mas avisei o que não invocasse o meu nome quando mostrasse a ficha técnica às entidades que financiam o Cinema, porque podiam não “gostar” da minha participação e o filme ficaria sem subsídio. Afinal, ele divulgou mesmo o meu nome e eles deram-lhe o subsídio à mesma... Então, nesse filme, eu sou Francisco, um Francisco que vive os problemas da actualidade. Francisco fala com os pais sobre a miséria e a exploração na sociedade. Abre-se uma porta sobre pessoas que ele, Francisco, não conhece. Um companheiro vem ao seu encontro e incita-o a uma “peregrinação” militante. Antes de deixar tudo e de partir, Francisco despe-se diante dos pais e diz: “Il n'y a plus rien, não há mais nada”. Com base nesta frase, o camarada que realizou o filme, um jornalista, pediu-me também para escrever um texto que servisse de ideia base para as filmagens. Escrevi o texto. Em seguida, de viagem ao Canadá, lembrei-me de compor uma música para esse texto, a que tinha chamado “Il n'y a Plus Rien”. Estreei a peça no Olympia, em Paris, e correu muito bem. “Il n 'y a Plus Rien” nunca teria existido se não me tivessem convidado a participar nesse filme. Não é curioso?
– De um clássico para outro: “La Solitude”. Foi um disco diferente, gravado com um grupo de rock, o Zoo...
– Humm...
– Não gostas desse álbum?
– Não aprecio muito...
– Em Portugal foi e é um dos teus discos mais populares...
– Deixei de gostar desse disco, por razões muito pessoais...
– Quando chegaste a Lisboa disseste que gostarias muito de gravar com os Pink Floyd. Porque não gravas?
– Porque é muito difícil encontrá-los. Se mos apresentares, tudo bem, é mais fácil... [risos] Também gostaria de voltar a actuar em Lisboa, mas com uma orquestra sinfónica portuguesa. Será possível?
– Talvez... Não há assim muitas orquestras brilhantes...
(Judite Cília, que está por perto, põe a hipótese da Orquestra da Gulbenkian. «Gulbenkian? Quem é?», pergunta Ferré. «Foi um homem do petróleo que criou uma Fundação em Lisboa para actividades culturais», esclarecem. «Ora aí está como um capitalista pode ter utilidade», comenta o poeta.)
– Lembro-me que antes da Guerra havia cá uma grande orquestra, do maestro Pedro de Freitas Branco, mas eu “apenas” pretendo uma orquestra que trabalhe. Se trabalha e é eficiente, “ça marche”. Também há agrupamentos corais?
– Também.
– Então é preciso metermo-nos ao trabalho. [Voltando se para Luís e Judite:] Tenho de voltar cá.
– Conheces o Luís Cília há muito tempo?
– Não. Só pelos discos. Falámos as primeiras vezes por telefone. Ele chamou-me. Falou-me do Coliseu. E respondi-lhe que ele devia estar doido...
(O repórter é jovem e está disponível. No Coliseu, emociona-se com o que ouve, e mais tarde não terá palavras que cheguem para descrever tudo o que viu e sentiu. Words, words, words. A música a crescer, a figura de Léo a encher o Coliseu, plena de força e de sinceridade, cruel e meiga, agressiva e terna. «Videla? En français: Budelle, tripes. En italien : Budella, tripes. En portugais je ne sais pas comme il se dit mais c’est la même chose. En Argentin? Allez-y voir! Allez...» Vão. Vejam como se diz, ouçam as metralhadoras dos tiranos. Videla e Brejcu, o assassínio e a traição. Marx était un hippie, mas há quem prefira a vida em comprimidos, como o veneno.
O repórter é jovem, está disponível e pensa. À sua volta há quem solte as lágrimas, homens e mulheres na catarse da partilha, iluminados pela energia que se desprende do palco em tons de vermelho e negro. «Ne sont pas les mots qui fait la poésie, c’est la poésie qui ilustre les mots». Assim. A subversão instalada nas palavras, as palavras mais fortes que qualquer espingarda. Ferré larga o microfone e sai do palco para cantar no meio do público. «Avec le temps va, tout s’en va...» Assim. Destruidor e amante, implacável e misericordioso, cruel e sensível, imenso e feroz. E no fim a imagem do velho leão no palco, a multidão ao fundo, fixada pela câmara atenta de Inácio Ludgero, a pedido do artista: braços abertos num abraço total, emocionado. Porque Léo Ferré é assim mesmo: simples como os homens grandes, insensato como as crianças, único como só ele. À demain, à bientôt, à toujours, mon frére.)
Bocas de Cena | Ed. Campo das Letras, 2003
(Primeira publicação: Se7e | 31.Mar.1982)