«Não podemos demorar mais de dez minutos.» Com estas palavras pouco animadoras, Marcel Marceau recebe-me à porta do camarim 105 do Casino Estoril, cerca de hora e meia antes do início do último dos dois espectáculos que apresentou no VIII Festival de Música da Costa do Estoril, que se realizou em Agosto de 1982. Ali, sem maquilhagem, é difícil reconhecer naquele homenzinho de 59 anos, os traços do “clown” que, em palco, assume as figuras ora ternas ora grotescas das suas personagens. Apenas os olhos vivos e a expressão sonhadora que se liberta ao longo da conversa revelam a identidade do mimo mais famoso do mundo.
A sua vida confunde-se frequentemente com a de Bip, o palhaço triste e sábio que criou em 1947 e se tornou no seu alter-ego. Reza a história que Marcel Marceau, nascido em Estrasburgo em 1923, começou muito cedo a praticar a linguagem gestual que o tornou famoso. A descoberta do cinema (mudo, ainda, por esse tempo) e a sua admiração por actores como Charlie Chaplin, Buster Keaton, Harry Langdon, Stan Laurel e Oliver Hardy, levaram-no a escolher a arte do silêncio.
Com 23 anos de idade, já a viver em Paris, matriculou-se na Escola de Arte Dramática de Charles Dullin, no Teatro Sarah Bernhardt. E no ano seguinte estreou-se como Arlequim numa pantomima de Jean-Louis Barrault. O enorme êxito da sua participação encorajou Marcel a apresentar o seu primeiro mimodrama, “Praxitele e o Peixe Dourado”. Foi quanto chegou para firmar o seu talento.
A consagração viria com Bip e o estilo único da sua representação silenciosa, expresso em momentos que fizeram história: “Caminhando Contra o Vento” é um clássico da Mímica, tal como “O Fazedor de Máscaras” ou “No Parque”, referências estudadas desta dificílima arte dos gestos. Ou o olhar atento sobre os percursos do homem nas suas diversas idades que se expressa num exercício mímico famoso a que chamou “Juventude, Maturidade, Velhice e Morte” e que, como disse um espectador perplexo, sintetiza em menos de dois minutos o que a maior parte dos novelistas não consegue dizer em vários volumes.
Quando nos encontramos em Lisboa, Marcel Marceau já conquistou o mundo sem dizer uma palavra, e sabe disso. No diálogo, porém, há-de revelar-se tão surpreendentemente capaz de manejar as palavras como de dar vida aos gestos banais. Na véspera, o actor deixara-se fotografar por Inácio Ludgero durante a fase de maquilhagem – um “ritual” que poucos repórteres conseguiram até hoje devassar. Cansado, Marceau resolveu adiar a conversa para o dia seguinte e, à hora marcada, estava à nossa espera.
Durante a conversa, o mimo falou da poesia, de Éluard, da vida, de Bip, dos sonhos. As mãos acompanham o movimento rápido das palavras, e, por momentos, deixa-se levar pelos pensamentos, para retornar imediatamente até junto de nós. Recorda as suas visitas anteriores a Portugal, em 1959 e 1962, e sorri ao falar da sua vida e dos seus projectos. «Só temos dez minutos», diz Marceau. Foram quinze, o repórter nem tempo teve para se sentar. Mas seria preciso mais?
– Que razões levaram o Marcel Marceau a escolher a mímica em lugar, por exemplo, do teatro tradicional?
– Penso que através da mímica podemos exprimir-nos muito melhor, de um modo muito mais profundo do que através das palavras. Sobretudo numa época cósmica, como é a nossa, em que se vive de um modo muito veloz. Creio que isto é muito importante para a geração mais jovem. E a mímica é uma arte que “grita”, uma arte cheia de acção, que se exprime através do corpo. É uma forma maravilhosa de comunicar com o público do mundo inteiro, sugerindo a violência, os sentimentos de amor, as emoções. É uma arte teatral do presente.
– O Marcel Marceau começou em meados dos anos 40...
– Foi. Estive na Resistência, em França, e comecei a trabalhar como mimo depois da Guerra. Mais tarde, fundei uma Companhia, que levou à cena trinta mimodramas. Foi um período muito importante porque me permitiu criar um estilo novo e obter uma aprendizagem muito grande em termos de encenação e de representação. Depois da desagregação da companhia, parti em direcção ao mundo. Sozinho, com as minhas pantomimas de estilo e os personagens que criei – como o Bip, que se bate em jeito de Dom Quixote contra os moinhos de vento que não param de rodar, e que actua de uma forma que faz com que muitas pessoas, de várias gerações, se reconheçam nele, através dos seus anseios, dos seus sofrimentos, das suas realidades. Penso que esta é, de facto, uma virtude da comunicação através da mímica e, por isso, acredito que as fábulas do futuro terão alguma coisa que ver com isto. O Bip surge como um pouco de luz na noite, como Pierrot...
– Que relação há entre Bip e a sua vivência de ex-resistente?
– O Bip é um grito do momento presente, um ser que tanto pode fazer rir como chorar. É, de facto, um personagem do teatro, cheio de lucidez ao encarnar os aspectos trágico-cómicos da vida social. E é também uma personagem que sonha, que luta – é, portanto uma personagem política. Tal como Dom Quixote. Daí que a relação entre Bip e a Resistência seja muito clara: na Resistência, lutei contra a guerra e contra o fascismo; actualmente luto pela paz e contra a violência. É a mesma luta. Sou pela poesia, pela compreensão entre os povos e pela justiça. É nesse sentido que eu dirijo o teatro que faço, como uma forma de combate e de transmitir ao público aquilo que criamos, a nossa poesia e as nossas ideias.
– Acha que actualmente, com o avanço da técnica cinematográfica e da televisão, o futuro da mímica pode correr perigo?
– Não. Pelo contrário: acho que avança cada vez mais. Penso que é muito mais fácil fazer cinema do que fazer mímica. Toda a gente pode ser actor de cinema. Mesmo quem nunca representou na vida. O que eu admiro no cinema são os técnicos e os recursos da técnica. E os actores também, é claro, porque têm a capacidade de representar a verdade. Mas estar num palco, sozinho, durante duas horas, em frente de um público, é muito diferente... Penso que a mímica é uma arte mágica, como o circo. É essa magia, esse desejo permanente de criar uma arte que seja bela, que seja nobre e importante, que faz perdurar a mímica. Porque as pessoas têm necessidade dessa magia, desse sonho, que não existe no cinema. A mímica é a arte do sonho, do silêncio, da poesia.
– A arte mímica de hoje segue o caminho que o Marcel Marceau ajudou a abrir?
– Eu fui aluno de Étienne Decroux e fiz parte da companhia de [Jean-Louis] Barrault. Foi com ele que fiz “Les Arbes du Paradis”, foi ele que me deu a conhecer alguns aspectos da pantomima do século XIX. E quando as pessoas falam de Marceau pensam, imediatamente, no renascimento da pantomima. Há jovens que dizem, claro, que sou clássico, um tradicionalista. Os jovens podem dizer aquilo que quiserem, mas eu penso que a arte não tem fronteiras, nem tem época. Creio que os jovens têm necessidade de aprender o seu próprio ofício. E quando se trata de um ofício como a mímica, é necessário aprendê-lo de um modo profundo, verdadeiro. É necessário pesquisar, aprender bastante. Nesse sentido, proponho uma experiência e uma técnica...
– A companhia que o Marcel Marceau pretende criar em 1984, surge na sequência dessa sua proposta?
– Sim, essa companhia nasce da minha escola e também de outras escolas. Certamente que vou ter influência nas formas de encenação e de representação. Mas é um novo caminho que vou trilhar, uma nova fase da minha vida teatral. Poderia dizer que, neste aspecto, a minha vida teve uma primeira fase, que foi a busca e a criação das pantomimas de estilo, e uma segunda fase – a viagem à volta do mundo, através de cinco continentes. A terceira fase será a recriação, o renascimento de uma Companhia de Mimos, que funcionará juntamente com a Escola de Mimodrama, onde não se estuda apenas a pantomima mas também a dança moderna e a acrobacia, e da qual sairão os componentes da Companhia.
– O Marcel Marceau encontra-se em Portugal pela terceira vez. Que diferenças nota entre esta estada e as anteriores?
– Acho que as pessoas não mudaram. O que mudou foi a técnica, foram as condições, os governos. Mas as pessoas continuam as mesmas. Como em toda a parte. A violência existiu sempre, o ódio existiu sempre, os homens sofrem sempre. Mas continuam sensíveis à beleza, ao amor, ao sofrimento. A evasão do homem é eternamente a mesma: os seus gritos, as suas lágrimas o seu desespero, a sua alegria tudo isto é tão antigo como o próprio homem. Se assistimos à representação de uma tragédia grega, ela continua igual ao que era...
– Mas acredita que seja possível modificar essa situação do homem que sofre?
– Isso não mudará nunca. O Homem permanecerá sempre rodeado pela violência, pelo ódio e também pelo amor. O que é preciso é fazer os possíveis para que o amor triunfe sobre a violência. Mas os problemas existirão sempre. Não é possível criar um mundo sem problemas – para isso seria preciso suprimir a morte... Mas a juventude é a portadora da esperança. E as pessoas, mesmo quando têm a minha idade, continuam jovens se não perderem essa esperança. E isso é extraordinário. Através da beleza e da poesia, procura-se vencer a própria morte. E nós sabemos que existe apenas um momento para viver e uma eternidade para morrer. Mas, nesse momento para viver, nós temos que trazer connosco a beleza, o amor. Voilá. E os outros, os que virão depois de nós, encontrarão um mundo melhor, uma forma de fazer avançar a humanidade. É isso que tem acontecido desde sempre: a humanidade avança e recua. Ela avança muito, mas também já recuou, durante muitos anos. E tudo isso é passado, o presente e o futuro. O passado é a cultura, são os museus, a música, toda a arte que ficou de outros tempos; o presente é a vida de todos os homens; e o futuro é o amanhã – feito a partir das buscas constantes do homem, para criar, em cada momento, a beleza, a magia, o sofrimento, as lágrimas. Na certeza de que o mundo não avança sem erros e de que não existe um estado de igualdade permanente ou de felicidade total. Na certeza de que não poderemos suprimir a morte nem as injustiças, mas que, apesar disso, é possível construir alguma felicidade e que a humanidade, apesar de tudo, avança. Lentamente, mas avança.
– Quando chegou a Lisboa, o Marcel Marceau disse que se sentia com a mesma energia de um homem de 30 anos...
– Sim. É assim que eu me sinto. Penso que um artista, como qualquer homem que cria, é sempre jovem, independentemente da idade que tenha. Não há mais criação, a partir do momento em que o espírito envelhece. É por não ter envelhecido que Picasso continua vivo. Porque o artista não é um homem diferente dos outros. Apenas tem a chance de, através da sua arte, se identificar com um milhão de seres, com o seu público. Porque sem o público, que não é, necessariamente, composto por artistas, o criador não pode existir. É nisso que eu acredito: nas pessoas que sabem amar e comunicar esse amor. Como acontece com os artesãos, que executam um processo de criação a partir de si próprios, das suas mãos, da sua cabeça. A partir da sua solidão. Eu acredito que os artistas, tal como os jovens, são as pessoas que se importam verdadeiramente com os valores mais nobres: mostrando os segredos do seu sofrimento, os seus próprios segredos, o artista cria uma dimensão nova, livre. Não precisamos dos anjos para isso e não acredito que eles sejam uma solução. Foi um grande poeta francês, Paul Éluard, que disse: “O homem não necessita senão de viver em liberdade”. C'est ça!
In Bocas de Cena | Ed. Campo das Letras, 2003
(Primeira publicação no Se7e | Ago.1982)
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