Estou a lembrar-me da primeira vez que te entrevistei, para o «Mundo da Canção», há vinte e tal anos. Nessa altura disse-te que, de certo modo, aprendi a gostar do fado contigo. E acho que isso aconteceu com muita gente da minha geração. Porque havia aquela ideia de que o fado era uma coisa «do antigamente». Hoje já se sabe que não era bem assim, e que inclusivamente o fascismo, a princípio, nem gostava muito do fado...
– Objectivamente, é preciso dizer uma coisa: o Salazar não gostava do fado. Há que ser claro...
– Até há um livrinho, editado pela Mocidade Portuguesa nos anos trinta, que se chama «O fado, canção de vencidos», justamente porque o fado não era uma coisa que se adequasse à ideia do Império. Mas a verdade é que o fascismo se aproveitou do fado, o que lhe deu uma carga muito negativa. Tu tens noção da importância que tiveste para as pessoas que não gostavam de fado e que acabaram por lá chegar através de ti?
– Não terei essa noção plena, mas chegam-me regularmente comentários muito simpáticos. O que é que acontece? Eu tenho feito isto de uma forma muito serena, a minha conduta em termos do mundo do espectáculo é uma conduta serena. Eu não sou propriamente aquele cidadão que gosta de dizer a si próprio: «Ah, se eu não fosse português, teria feito isto e aquilo.» É mentira. Tenho feito aquilo que tenho podido, não me sinto mal com aquilo que tenho feito, não me sinto mal por ser português, bem pelo contrário. Mas eu acho que a gente, na vida, colhe muito do que semeia. E eu estou numa fase de colher o que semeei. E como, ao longo da minha vida, isto foi sempre uma permuta que fiz com as pessoas, e é uma coisa muito afectiva, as pessoas também sentem necessidade de conversar comigo. Eu não sou – nunca fui, penso – o tipo de artista a quem as pessoas correm, «dê cá um autografo», assim de uma forma eufórica, que passado um ano é descartável. Não. Foi sempre uma coisa contida, o autografo é pedido no final, quase timidamente, como que uma recordação que se vai ter, que se vai guardar. E frequentemente até nem é o próprio que o assume: pede-o para outra pessoa, para a mãe... Aliás, nesse aspecto eu estou como o Marcello Mastroianni: inicialmente pediam-me directamente as miúdas muito giras, depois passaram a pedir para as mães, e agora já me pedem para as avós! Isto vai andando assim e tem imensa graça, é o ciclo natural da vida... Mas há sempre um comentário, não é o autografo seco, distante. E nesses comentários é que eu vou absorvendo aquilo que as pessoas têm para me dizer e vou percebendo o que é que tenho andado cá a fazer. E invariavelmente é-me dito isso por gente de uma certa faixa etária: «Sabe que eu detestava o fado, mas através de si eu comecei a gostar. E tem aqui a minha filha que está a ir pelo mesmo caminho, também acha o fado um bocado careta, mas gosta do seu fado». Ora isto, se por um lado faz bem ao ego, já que qualquer pessoa gosta de ouvir uma coisa destas, por outro lado reforça-me a responsabilidade. Ou seja: isso implica que, quando gravo ou quando piso um palco, como me tenho tornado uma pessoa de referência, tenho responsabilidades assumidas com as quais não gosto de brincar, levo isto muito a sério. Aliás, é um dos meus defeitos, eu levo-me muito a sério. Mas é assim, esta é a realidade dos factos. E tenho um bocado essa noção do que tu disseste há bocado, porque as pessoas dizem-mo claramente. Agora, há um dado novo, muito interessante, que também me é transmitido. É o jovem, na faixa dos trinta e poucos anos, mulher ou homem, que vem ter comigo numa perspectiva muito simpática, e que vem ou pedir-me desculpa, ou reforçar um sentimento de reencontro com a mãe ou com o pai: A saber: «Eu detestava ouvi-lo cantar porque a minha mãe e o meu pai punham discos seus de manhã à noite e eu já estava enjoado, não o queria nem ver na minha frente. Agora a minha mãe e o meu pai morreram e eu reencontrei-me consigo, e deixe-me dizer-lhe que gosto muito de o ouvir». Ou seja, eu estou a provocar um reencontro com a mãe e com o pai. Este é um tipo de sentimento. Ou então é do tipo: «Eu desde miúdo que me habituei a ouvi-lo e sempre gostei. Os meus pais tinham a música deles, eu tinha a minha música, mas de vez em quando o meu pai ou a minha mãe chamavam-me a atenção e eu sempre gostei de o ouvir. Mas, sabe?, agora saboreio isto de forma diferente, desde que a minha mãe e o meu pai morreram, você conforta-me». Isto também me acontece, acontece-me muitas vezes. Portanto, aqui eu diria como o Chico Buarque: quando são os jovens que se chegam é tudo bónus...
– Imagino que, nos anos 60, quando fizeste os primeiros discos, deve ter havido alguma gente, nomeadamente entre os chamados puristas do fado que devem ter ficado um bocado preocupados...
– Ontem como hoje. Tu dificilmente me verás aceite nesse sector, para eles sou um cantor, não sou um fadista.
– Pois. O «estigma» mantém-se...
– Sim, mantém-se. Mas devo dizer-te que acho isso saudável e explico porquê. Para mim não há fado, há fados. E formas, e estéticas. Portanto, a riqueza do fado, a meu ver, está no contributo que cada interprete que toca ou que canta lhe dá, lhe traz, lhe empresta. Se traz alguma coisa (e a história do fado, no fundo, não é mais nem menos do que a história dos seus interpretes), então sim, tem valido a pena. Ora o que os puristas têm dificuldade em perceber é que a única maneira que eu tinha de fazer funcionar uma carreira que já tem quarenta anos era por este caminho. Porque se eu tenho seguido o caminho do purismo, hoje era o filho da Lucília do Carmo... Ora eu não deixei de ser o filho da Lucília do Carmo. Com muita honra! Sou é o Carlos do Carmo. Sou as duas coisas. A Lucília do Carmo tem o seu espaço no fado, inatacável, de grande qualidade. Falas com qualquer purista e ele dir-te-á que considera a Lucília do Carmo a maior de todas. O filho é outra coisa ...
– É um «cantor»...
– Obviamente. Porque, entretanto, a minha preocupação está ao nível de muitas coisas que vêm de longe e que não são fantasias exibicionistas, são necessidades interiores. Se tu ouves um leque de músicos como aquele que eu te referi há bocado quando falámos do Zeca, se tu gostas de ouvir jazz e se te habituas a ouvir os Armonstrongs e os Coltranes e os Miles Davis... Se vais continuar a gostar de ouvir jazz e se ouves a Billie Holiday, a Ella Fitzgerald, a Sarah Vaughn e se começas a ouvir universo riquíssimo improvisado, tudo isto te provoca na cabeça determinadas necessidades. Então tu começas a achar que o contrabaixo no fado é uma coisa cheia de lógica... Claro que, agora, é cheia de lógica, mas quando eu o trouxe para o fado, os puristas arrasaram-me! A orquestra no fado não é uma agressão. Porquê? Desde que seja um arranjo bem feito, desde que sejam instrumentos bem tocados, porque é que há-de ser? Onde é que se descaracteriza? É preciso é que a pessoa que canta lhe dê o cunho. Ora todo este conjunto de coisas, de arranjos, de músicos que foram chegando ao fado através de mim, são hoje um bom ponto de partida para uma juventude que, se quiser, com muita calma, ouve a discografia e tem ali muitos pontos de referência para desenvolver um trabalho. Isto faz-se com necessidade interior, vem de dentro, como a questão da própria palavra. Quis Deus que eu me cruzasse com o Zé Carlos Ary dos Santos e tivesse tido com ele uma amizade tão intensa e tão séria, e que tivessemos tido oito anos de trabalho que corresponderam a trinta. Foi muito bom para mim, foi muito bom para o Ary. Mas foi seguramente muito bom para o fado...
– Isso é inquestionável.
– Este conjunto de coisas são inapagáveis, são coisas que me mantêm sempre desperto para esta situação. A palavra é importantíssima no fado porque o fado é uma narrativa, é uma história. Eu, de cada vez que canto o fado, estou a contar uma história de dois, três, quatro minutos, e tem que ser contada sobre a música. É bonito quando os músicos são criativos e trazem acordes inspirados, interessantes, e que não estão seguramente a descaracterizar a raiz do fado, estão apenas a dar o salto qualitativo. E todo este universo de inquietação está permanentemente na minha cabeça: cada vez que vou a um palco, cada vez que gravo um disco, cada vez que canto um fado numa televisão, isto está sempre presente no meu espírito, sempre. Obviamente, eu sei que estas questões têm um preço, mas como tenho essa consciência, e como, ainda por cima, felizmente me vejo reconhecido por tanta gente, não tenho de que me queixar.
– Ou seja: essa concepção purista radical, digamos, é apenas uma forma de conservadorismo...
– É que, como te digo, não há fado, há fados! Ainda há pouco tempo morreu um homem por quem eu tinha grande apreço, o Fernando Maurício. A minha mulher, então, era fanática: a Judite adorava ouvir o Maurício! Eu tinha grande apreço pelo modo que ele tinha de dividir a oração, de «atirar» a voz, aquele requebro fadista. Ele era muito genuíno, e era o que nós podemos considerar um fadista «de escola» – ele fez escola, há muita miudagem, raparigas e rapazes a cantarem à maneira do Maurício – é o chamado fadista de bairro, genuíno. Ora isto é uma autenticidade, isto é um facto. Mas isto não simboliza, por si só, o fado. Como eu, sozinho, não simbolizo o fado. Ou como a Amália não simboliza, sozinha, o fado, apesar do que por vezes se diz. Tenho o maior respeito e a maior admiração por ela, mas as pessoas têm de ter um pouco de lucidez e perceber que a Amália representa um tipo de fado: dimensionado a um nível muito forte, muito grande, projectado por uma voz impar, mas é um tipo de fado!
– Aliás, o próprio fado da Amália nem sempre agradou aos puristas...
– Nunca! Só que, hipocritamente, depois de ela morrer viraram o bico ao prego. Aquela velha hipocrisia: quando se morre, estamos todos de acordo. A esse respeito eu digo-te só mais uma coisa para fechar rapidamente este ciclo de maledicência. Após a morte da Amália ouvi depoimentos de enaltecimento feitos por pessoas a quem sempre ouvi dizer horrores dela! Isto é de uma hipocrisia sem limites! É óbvio que tem de haver respeito por quem morreu, não tem que se dizer mal, é incorrecto. Mas abstenham-se! Ou então, se disserem alguma coisa, sejam moderados. Mas não! Eram as mesmas pessoas que, poucos dias antes, diziam as maiores barbaridades! Eu sei do que estou a falar porque sou do universo do fado! Há sempre uma ambiguidade à volta da análise dos fadistas, mulheres e homens, que leva àquela lógica de que «a minha capela é que é a tal, a forte». Ora isto não vive de capelas. O que é bom é haver estes universos variadíssimos. Nós podemos analisar o fado mais facilmente se ouvirmos cantar, a saber: a Hermínia, a Lucília, a Berta Cardoso, a Argentina Santos, a Maria Teresa de Noronha e a Amália. Ao ouvir isto, a gente percebe, no feminino, o que é o fado. E já não vai dizer «o fado», vai dizer «os fados», porque estamos aqui perante seis personalidades. Mas nos homens acontece exactamente a mesma coisa, porque vamos ouvir o Carlos Ramos, que tinha uma forma de dizer, ou um Alfredo Marceneiro, um Fernando Maurício. Estou a falar de alguns nomes. Claro que eu estou a falar de pessoas que foram, não estou a falar dos que estão vivos. Porque falar dos que estão vivos é muito delicado, na medida em que eu posso ter os meus gostos, mas não devo ferir susceptibilidades e não quero ferir susceptibilidades. Estou a falar do que se passou. E sendo isto uma tradição oral, foi com esses que nós aprendemos. Acontece é que eu aprendi com estes que te acabo de referir, mas também com o Sinatra e o Brel e o Chico e o Zeca... E o meu fado tem isso tudo.
– E, se calhar, é por isso que te é mais fácil chegar a pessoas que à partida estavam menos motivadas para o fado...
– Não te sei explicar, mas o que é facto é que está lá tudo isso. Está, porque faz parte de mim, do tal jazz, dessa coisa toda, desse desejo. Eu fico fascinado quando estou a cantar acompanhado por um bom músico, é uma coisa que me deslumbra, que me apaixona...
– Nota-se...
– É uma coisa que me motiva, um bom musico motiva-me. Um «aldrubias», eu ao fim de dois, três concertos já estou chateado: «Eh, pá, este tipo... isto é uma locomotiva desgovernada.» Porque há uma coisa que a gente não pode perder de vista: no fado há uma total interdependência entre quem canta e quem toca. E este assunto, que não está resolvido ainda, que é um assunto complexo da ligação afectiva – afectiva, desta é que eu falo – entre quem canta e quem toca, é um assunto que não está resolvido no fado. E que é gravíssimo e que pode levá-lo a estiolar. É um assunto da maior importância, tem que haver um entendimento. Um guitarrista quando está a tocar para a fadista A não pode tocar da mesma forma que toca para a fadista B. E isso não está a acontecer. Não sei se me estou a explicar, ou se tu me estás a entender...
– Estou, estou...
–Cada universo fadista requer um acompanhamento próprio. Nós tivemos um grande senhor do fado (felizmente ainda está vivo, tem oitenta anos, se não me engano), que foi um genial acompanhador: Raul Nery. Esse era um homem que nos acompanhava conforme nós cantávamos. Estão aí os discos, quem quiser que os ouça: os discos da Amália, os discos da Maria Teresa de Noronha, os meus discos, um ou outro do Max. Ele acompanha as pessoas conforme elas cantam, dedica-se ao que as pessoas estão a cantar, ele está a ouvi-las. Os grandes guitarristas acompanhadores, se quiserem uma fonte, têm o Raul Nery. E estou completamente à vontade para falar disto, porque se tu pegares na minha discografia reparas que gravei com todos os grandes nomes da guitarra portuguesa, excepto o Armadinho que morreu quando eu tinha oito anos. É só ouvir, está lá tudo. O Nery é verdadeiramente um acompanhador. Este universo de acompanhamento no fado tem a maior importância para quem canta. Devo dizer que é o problema dentro do fado que me preocupa. Estou a vê-lo até, em termos de relação humana, a deteriorar-se, o que me preocupa seriamente...