Ao fim deste tempo todo, ainda sentes medo quando vais para o palco?
– Olha, Viriato, sem rábulas: cada vez tenho mais medo! Mais do que há vinte anos, mais do que há trinta, mais do que há dez...
– Talvez porque a responsabilidade também é maior...
– Não sei se a responsabilidade é maior. Há bocadinho falei-te nela, é um facto, mas... Eu não sei o que é, pá! Mas é um grande medo, cada vez mais.
– Medo de quê? De correr mal?
– De correr mal, é óbvio. E sobretudo é de não estar à altura das expectativas que as pessoas possam criar sobre aquilo que pode acontecer entre nós. Porque entretanto fomos estabelecendo uma fasquia. E essa, sem demagogia, passa pela palavra amor que tem cumplicidades a vários níveis: cumplicidade a nível afectivo, a nível ideológico nalguns casos, a nível sentimental noutros, pequenas cumplicidades que eu próprio desconheço. Eu posso ser o ponto de referência de uma pessoa que está ali e que conheceu a mulher ao ouvir um disco meu, e foi esse disco que os uniu. Há uma ligação que a gente não controla em relação à vida das pessoas. E o facto de estarmos perante gente que nos quer bem, que compra o seu bilhete e se senta para ouvir alguém de quem gosta... É dramático pensar que os podemos desiludir. Isto é um facto, não tem demagogia nenhuma, acredita. É assim, foi assim anteontem numa aldeia onde cantei, foi assim a semana passada, na Fábrica Balsense, em Tavira, foi outro dia na Ópera de Frankfurt... Depois, para mim, não há palcos de dimensões maiores ou menores. Para mim são todos iguais porque as pessoas que ali estão são queridas, ninguém as obrigou a ir, portanto ou tens alguma coisa para lhes dar ou há uma grande desilusão. E há uma coisa que é verdade: tu és humano, não és um robot, e as coisas não te saem sempre bem. E pensar que terminas um espectáculo e que tens que recuperar outra vez aquelas pessoas que perdeste – porque elas vão voltar, para ver se aquilo foi um azar momentâneo ou se tu realmente já estás em queda livre – tudo isto te passa pela cabeça antes de cantar. E devo dizer-te que eu demoro três fados a arrumar a cabeça: os meus primeiros três fados são para descontrair. Há momentos excepcionais em que basta um, mas isso é raro, acontece quando o rei faz anos. Aqueles primeiros dez minutos, sentir o público, ouvir os aplausos, perceber os silêncios, perceber se os músicos estão bem ou mal dispostos, se está a tocar cada um para o seu lado ou se estão unidos... Nada disto tu sabes previamente.
– Qual foi o teu pior momento em cima de um palco?
– Foi em Vilar de Mouros, no segundo Festival de Vilar de Mouros. É uma história engraçada. Eu fui convidado pelo António Victorino d’Almeida, que também estava ligado à organização, e eu com o António vou até ao fim do mundo... Mas lembro-me que pensei: «O Festival de Vilar de Mouros? É uma coisa estranha: fado, Vilar de Mouros...» Na véspera tinha cantado não sei aonde, e recordo-me de chegar com os músicos, os técnicos, a minha equipa, um bocado cansado. E, a tentar descontrair um pedacinho, dei-me conta de que, um pouco por desorganização, eu estava programado para cantar na noite punk! Isto é autêntico, confirma com o Victorino d’Almeida se te queres rir... E assim foi. Quando cheguei ao palco... Só te digo que dificilmente a minha família terá sido mais insultada em toda a minha vida do que naquela noite! Mãe, pai, filhos – tudo o que era família minha foi insultada! Já para não falar dos insultos directos, mandarem-me com objectos estranhos... E eu a pensar: «Estou aqui num corpo estranho, isto é uma coisa esquisita, nunca me tinha acontecido.» E cantei dois fados – anestesiado, completamente anestesiado – que eles não ouviram, porque em insultavam: «Vai-te embora, vagabundo!», coisas assim. Imaginas o tipo de rapaziada, de botas cardadas e aquilo tudo... Então passou-me uma coisa pela cabeça, olhei para os meus músicos e disse: «Vamos cantar uma canção, vamos cantar a Pedra Filosofal, vamos fazer aqui uma inversão.» Comecei a cantar, fez-se um silêncio enorme, calaram-se completamente, trautearam o final comigo e aplaudiram freneticamente. Aí, cheguei ao microfone e disse: «Vão bardamerda!». E fui-me embora.
– Foi a tua vingança...
– Pergunta ao António, que ele conta-te esta história. Era um ambiente completamente anti-fado. Mas a «Pedra Filosofal» eles ouviram, religiosamente, é outro universo. Não me perguntes o que é que ia na cabeça deles, o que é facto é que aquilo foi judicioso. E eu esmerei-me, aquela bancada culinária funcionou com todos os ingredientes que tu possas imaginar. Só que depois deu-me uma raiva tão grande pelo mau tratamento que tinha recebido: «Ah, é? Então agora não canto mais, vão bardamerda!» Virei-lhes as costas... Eles ficaram a assobiar, mas já eu lá não estava...
– Deve ter sido uma grande surpresa, sendo tu um tipo que tem esse «ar formal», como diz a Judite...
– Ó Viriato, quem não se sente não é filho de boa gente! Eu fui ali contratado para cantar. Não fazia a mínima ideia de que estava numa noite punk! O que podia acontecer era não comparecem, pronto. Não vão, não estão interessados. Agora o problema é que a seguir a mim era rock da pesada, o que realmente tem pouco ou nada a ver comigo. Eu caí ali de pára-quedas, e fui crucificado. A sério, esta é topo de gama... Noutras alturas houve alguma dificuldade, aqui e além, mas coisas assim más, feias, não. Tenho uma lembrança de ter cantado nas Astúrias, para portugueses que trabalhavam nas minas, no âmbito dum 10 de Junho. Foi um capitão de Abril, o meu amigo Vítor Alves, que me pediu – «Carlos, é uma gente abandonada, são portugueses que estão para ali, gente que nunca deve ter vindo a Lisboa, alguns deles há anos que não vão a Trás-Os-Montes, de onde são quase todos originários...» E foi uma grande sensação de vazio, estive a cantar para pessoas completamente distantes de tudo o que eu estava a dizer, de tudo o que eu estava a cantar. E não sei se haveria alguma coisa que os aproximasse. Isso deu-me muita tristeza, foi uma experiência difícil, até porque era um espectáculo que tinha um objectivo humano: não fui ganhar dinheiro, fui lá para ajudar a festejar o 10 de Junho junto de uma comunidade portuguesa abandonada! Foi uma experiência marcante, negativa, mas essas coisas fazem bem à gente, esses banhos de humildade. Aprende-se muito com os insucessos.
– E tiveste muitos insucessos?
– Para ser rigoroso, acho que não. O público tem sido generoso comigo. Mas também, verdade seja dita, eu tenho lutado muito para que isso não aconteça, percebes? Criei, com te dizia há bocado, uma relação prévia de confiança. E isso afastou os insucessos, ao longo da minha carreira. Houve surpresas pontuais, quatro, cinco casos, mas que me fizeram bem. Porque me fizeram reciclar, fizeram-me reflectir e não perder a modéstia. Porque, como artistas, temos direito a ser narcisos, a ser vaidosos, temos direito a isso tudo, já faz parte do nosso universo. Mas também faz parte do nosso universo não perder de vista a modéstia, porque é tudo muito relativo. Não só porque a glória é efémera, mas também porque, com as grandes transformações que o mundo sofre constantemente, nos apercebemos de uma coisa: que, se um artista não se torna cuidadoso com a sua atitude perante aqueles que lhe querem bem, perante aquilo a que, de forma abstracta, chamamos público, pode tornar-se num objecto descartável e tem o desgosto de, depois, ninguém o querer. Não se consentir transformar-se num objecto descartável requer muita tenacidade.