Tu conseguiste uma coisa muito rara, quase única, quando o Carlos Paredes não apenas escreveu uma música propositadamente para ti, como depois te acompanhou na gravação. Que eu saiba, ele só tocou num outro disco alheio, o «Que Nunca Mais», do Adriano...
– Ah, o nosso querido Carlos! Foi, foi no «Um Homem no País», um disco especial, um disco mal amado...
– Gravado há uns vinte anos...
– Sim, em 1982, se não me engano. É um disco mal amado, mal compreendido, que surgiu na sequência do «Um Homem na Cidade». E aconteceram vários factores que complicaram a feitura do disco: o Ary adoeceu, já não estava em grande forma, e alguns daqueles fados já foram arrancados a ferros, já com muita impaciência, e isso diminuiu uma parte do trabalho. Mas fica como um documento engraçado e, para mim, muito especial. Até porque também tem uma música do Zeca, que também já estava doente e acabou a assobiá-la, tenho aí a cassete...
– O «Fado Excursionista».
– O Paredes tinha a primeira parte do «Fado Moliceiro» feita há muito tempo, mas faltava acabar a música. E acabou o resto uma tarde, aqui em minha casa. Era uma tarde em que Lisboa estava empolgada: tinha acabado de chegar o Papa, e como o aeroporto é aqui perto, esta avenida era uma loucura! Nós estávamos ali, na sala de jantar, e o Paredes de vez em quando já dizia: «Que loucura, este som desta multidão». E o Ary, já com a sua impaciência: «Cala-te pá, vai à merda, cala-te lá com a multidão, faz lá a parte B, tens que fazer esta parte!» O Ary era muito intenso a trabalhar e eles davam-se muito bem, havia um respeito recíproco. Até que, de repente, o Paredes sai com o resto da música, tirararira tirarara, mas até que isso acontecesse... Eu tenho, felizmente, estas coisas todas guardadas em cassete, eu gravava estas sessões todas. Eu penso deixar isto tudo ao Museu do Fado, porque isto vai ser muito interessante daqui a muitos anos, ao falar-se destes génios, destes Paredes, destes Zecas, do Ary, esta gente fantástica que afinal frequentou o mundo do fado por minha causa, praticamente. E é muito interessante, depois, ouvir o modo louco como isto tudo era feito! E daí a o Paredes ir ao estúdio foi um passo, foi um dado adquirido. Achou-se por bem que, sendo uma musica dele, fosse ele a dar-lhe o seu som, a sua sonoridade...
– E se alguém tem um som próprio é o Paredes...
– Um som muito próprio, só dele. O Paredes é também, na minha opinião outro «caso». Não é despropósito chamar-lhe génio. O Paredes é um grande artista que, nos seus acordes de guitarra, executa a expressão da sua cultura, da sua alma. Ele não é um simples guitarrista, é um executante da alma portuguesa. Porque, normalmente, eu não consigo situar o som da guitarra do Paredes em nenhuma região portuguesa específica. A mim tanto se me dá que seja a Madeira, como seja Melgaço, como seja Sagres, como seja Castelo Branco, como seja Aveiro, para mim é absolutamente igual. A guitarra de Paredes abarca isto tudo, é uma dimensão muito portuguesa, tanto do interior como do litoral. É muito universal porque cada verso musical é culto. É espelho de uma alma humilde, sinceramente humilde, culta, ansiosa e progressiva. Isto é um universo muito complexo. E ele tinha isto tudo lá dentro, portanto ao tocar tudo é assim. Teve a sorte – porque é importante na vida ter esta sorte, também – teve a sorte de ter durante muitos anos ao lado um homem que intuía os seus acordes, que é o Fernando Alvim. Um grande senhor, tenho pelo Alvim a maior consideração...
– E aquela forma discreta como ele está na música do Paredes!
– Como ele é: um senhor, discreto...
– ...mas que está sempre lá, onde é necessário.
– A base de sustentação, não é? Caindo no acorde certo no momento certo. Porque, convenhamos, quem conhece o Paredes sabe que ele não tocava duas vezes do mesmo modo. Donde, era preciso pressenti-lo... É bom estarmos a falar destas coisas, ainda bem que tu pões estas questões. Para já, porque sabes muito bem do que estás a falar. E depois porque me pões a falar de coisas que me dão muito prazer e me dão muitas saudades do futuro. É porque isto não tem nada a ver com o passado, isto é gente que construiu... Sabes o que é? Estás a ver aquelas escadinhas que há em Lamego? Da Senhora dos Remédios, não é? Eu já cantei lá. E tive a tentação de, antes de ensaiar, subir algumas escadas. Cheguei a meio e desisti, vim para baixo, senão depois não cantava! Esta gente não. Estes Zecas da vida, estes Paredes da vida, fizeram as escadas todas, fizeram estas escadas que vão até ao céu! E a gente está a falar destas escadas, mas estamos ainda no décimo degrau...
– Ao longo destes anos, tiveste a fazer canções para ti muito do que de melhor existe em Portugal. Acho que não é exagero dizer que trabalhaste com alguns dos melhores músicos e dos melhores compositores...
– Até agora tenho tido essa sorte, sim senhor.
– E trabalhaste com pessoas muito distintas. Calculo que deve ser muito diferente trabalhar, por exemplo, com o Fernando Tordo ou com o José Mário Branco, não é?
– Pois. Cada pessoa dessas tem o seu universo. E o que é interessante é pensar nesse leque tão variado de pessoas que têm trabalhado comigo ao longo da vida e ver que, nalguns casos, uns tinham um preconceito em relação ao fado. Outros eram até radicais em relação à atitude para com o fado. Outros ainda nem o consideravam como qualquer coisa que existisse à sua volta. E é interessante que essas pessoas, devagar, através dos nossos laços de afectividade, foram-se aproximando do fado de uma foram tão intensa que acabam por lhe dar muito bom contributo. E aí... Deixa-me ser vaidoso uma vez na nossa conversa. Será a única, dificilmente me terás aqui mais a pôr-me em bicos de pés. Mas isso sei que fui eu que consegui: trazer determinado tipo de gente para o fado que só lhe tem feito bem. Porque se pegarmos no fado dos últimos trinta anos, há fados antológicos feitos por essas pessoas. Verdadeiramente antológicos. E depois não venham os puristas dizer que aquilo não é fado. É fado, mas é fado dos tais degraus, os tais degraus da Senhora dos Remédios. E tenham paciência, as coisas têm que ir à frente! Porque o Piazzolla, quando fez o que fez na Argentina, deu naturalmente muito mais possibilidades a um cidadão como eu de ouvir hoje com outros ouvidos o Carlos Gardel: se não tenho ouvido o Piazzolla, se calhar hoje não achava graça nenhuma ao Gardel...
– E houve algumas pessoas que trabalharam contigo, a princípio de modo esporádico, e que acabaram praticamente por se tornar compositores de fado. O Paulo de Carvalho, por exemplo, é hoje um homem muito dedicado ao fado...
– Claro. E, na área específica do fado corrido (que isto depois tem áreas, diversos graus), o Paulo é um especialista. Ele não é especialista nem no fado menor, nem no fado Mouraria, mas é especialista – lisboeta retinto, forte e feio – de fado corrido. E digo-te: é o grande especialista dos últimos trinta anos do fado corrido. Os fados dele – que são fados populares, fazem parte do património colectivo que as pessoas cantam – são de uma grande simplicidade, completamente despretensiosos musicalmente, mas têm todo o espirito lisboeta. E com acordes de um músico que vem de outras áreas...
– Esse é um trabalho que ele começa a fazer, se calhar, justamente por causa de ter trabalhado contigo...
– Provavelmente. Nós temos uma amizade grande, um amizade muito sólida. E por isso a gente fala das coisas, não falamos só dos nossos filhos e das nossas mulheres ou da nossa vida. Falamos da musica e dos nossos gostos, do que nos encanta e do que nos desencanta, tudo faz parte da nossa conversa. Portanto, o universo do fado... Eu diria até que, hoje, o Paulo frequenta-o mais do que eu... De vez em quando temos aí uns serões, à conversa os dois, em que ele me vem contar histórias de casas de fado que eu nem conheço, onde ele esteve e que o tratam como mais um dos deles. O fado abre os braços ao Paulo e aceita-o como um fadista, e acho isso uma maravilha. E ele depois conta as histórias – tem imensa graça, porque ele é um lisboeta retinto – conta-as com aquela malandrice lisboeta... E aí sim, ele faz-me andar muitos anos para trás. Eu digo assim: «Eh, pá! Isto ainda é possível, ainda existe este modo de narrar as coisas passadas no antro fadista!» E então aquilo é mesmo um flashback. Para que eu, confesso-te, já não teria muita paciência. Esse ritual parado no tempo, hoje já não tinha paciência para ele! As casas de fado... Falta-lhes dinâmica!
– Não houve mudanças no universo das casas de fado?
– Não creio, infelizmente não creio. Sabes que para fazer omeletes é preciso ovos, e quanto mais qualidade os ovos tiverem melhor é a omelete. E os ovos de qualidade escasseiam...