A propósito do Gil: mais uma vez, tal como aconteceu no tempo da tua mãe, há dois artistas em simultâneo na família. Como é a vossa «co-habitação»?
– É muito engraçado. Ainda recentemente cantei com o meu filho no bar dele, o Speakeasy, cantámos com uma orquestra de jazz, foi uma coisa muito engraçada. E no final fizeram-me essa mesma pergunta para a revista «Caras» – que é uma revista pela qual eu tenho simpatia, ao contrário de muitas pessoas, porque é uma revista que sempre me tratou bem. E saiu-me aquilo, vou repetir-me, mas é o que eu acho: sinto-me um bocado ensanduichado, entre a mãe e o filho. Só que é pão muito bom, dum lado e do outro. É como me sinto, e isto é muito confortável, é muito agradável, percebes? É um pão especialíssimo, de um lado e do outro, e sinto-me ali uma coisa que não é nem fiambre, nem queijo, nem presunto: sinto-me qualquer coisa que se encaixa bem nestas duas metades de pão. Juro-te que é como me sinto!
– De certo modo, pode considerar-se que houve uma herança que tu recebeste e que transmitiste também...
– Há uma coisa que está hoje muito em voga agora, que são os genes. Falam muito disso, e eu penso que funciona. O meu rapaz tinha uns cinco anitos, era um cotomiço... E esta casa estava sempre cheia de gente. Imaginas o que era isto aqui, todas as noites, com Paredes e Adrianos e Paulos e Fernandos e Rogérios Paulo e actores e cantores e... Muitas vezes os miúdos saíam de manhã para a escola, e esta sala era um nevoeiro total! E tínhamos os estores em baixo e tudo, fechados como se fosse de noite, eles iam para a escola e nós ainda estávamos aqui nos copos e na farra até às tantas! Os meus filhos cresceram assim... E, com cinco anitos, as pessoas perguntavam-lhe: «Então o que é que tu queres ser quando fores grande?» E ele dizia sempre: «Se não fosse cantor queria ser astronauta.» Ele dizia isto com cinco anos, «se não fosse cantor». Esta coisa da música, nele, está muito presente. E foi, dos meus três filhos, o que assumiu – embora a minha filha seja também uma pessoa ligada ao mundo do espectáculo, é produtora de televisão e de cinema, e tem um conceito estético já noutro ângulo, o da imagem. O meu outro rapaz, completamente ligado ao som, e de uma rara sensibilidade para captar som, é um artista. Mas nem a minha filha nem o meu filho mais velho assumiram o palco. Este, muito cedo começou a dizer que era esse o caminho. E gosta, tem paixão, e tem uma lucidez muito grande à volta daquilo que quer fazer, porque tem um grande respeito quando eu comento que não foi fácil ser filho da Lucília do Carmo. E ele às vezes mete-me assim o braço cheio de ternura: «Eh, pá, ó Velho, mas também não é nada cómodo ser filho do Carlos do Carmo, desculpa lá!» Eu digo: «Ó Filho, eu estou aqui do teu lado». E ele: «Eu sei que estás do meu lado, pá, mas é uma barra pesada, para o bem e para o mal.» Eu ponho-me no lugar dele e percebo, mas costumo moralizá-lo e dizer sempre o seguinte: «Desculpa, faz o teu caminho. Eu tentei fazer o meu, faz o teu caminho. E há uma coisa: tens-me sempre ao teu lado, sempre, incondicionalmente.» E como vês ele está a fazer o seu caminho, lentamente, embora convenhamos que num período mais difícil do que o que eu apanhei quando arranquei. Ele faz parte da geração à rasca...
– Já que estamos a falar da família, vamos recuar uns anos, ao tempo em que começaste a cantar e delineaste o teu rumo, fora do fado tradicional puro e duro. Como é que reagiu a tua mãe, que também era artista?
– Não achou muita graça. Devo dizer-te que o meu pai, se eu o conheci bem (e penso que o conheci muito bem, embora ele tenha morrido novo, mas é um homem de quem guardo imensa saudade), o meu pai talvez depois viesse a sentir orgulho, enfim, porque a minha carreira tem sido felizmente uma carreira conhecida. Mas se havia uma ideia que ele detestava era a ideia de que eu viesse a ser artista, ponto final. A minha mãe, muito baseada na conversa entre os dois, queria era afastar-me desse universo, e ao principio não achou muita graça: «Não te metas nisto, porque é que te estás a meter nisto? Isto é um mundo tão complicado, homem! Deixa lá, estou cá eu para cantar umas cantigas, trata da tua vida. Ser artista é uma chatice, não julgues que isto é uma brincadeira!» E eu levei uns cinco anos a querer tomar uma posição concreta. E então disse: «Não, agora vou ser profissional, acabou esta tibieza – este estar aqui, mas não estar, gravo discos, não gravo, faço espectáculos, não faço... Vou assumir isto.» E, quando assumi, aí a minha mãe percebeu-me melhor, percebeu que era uma determinação, uma vontade. E era muito interessante que – por exemplo, na nossa casa de fados – o meu público vinha procurar descobrir a minha mãe, e o público da minha mãe descobria-me a mim. Era muito interessante este cruzamento. Ao princípio, a tolerância que o público da minha mãe tinha para mim era uma coisa muito engraçada. Chegavam ao pé de mim e diziam: «Gosto de o ouvir, você é um miúdo que canta bem, mas a sua mãe, é uma coisa...» E a gente habituava-se a isto. Depois, era o contrário, era a malta nova que me vinha ouvir e dizia assim: «Porreiro, pá, mais uma vez, que bom ouvir-te! Mas a tua velha canta muita bem, pá! Que maravilha, não sabia que a tua velha cantava tão bem!» E foram anos nisto. Foi muito bonito, este lado, esta simbiose do público. E é a razão porque eu hoje tenho um público que vem dos quarenta e poucos anos e que vai até muito tarde. Outro dia cantei em Tavira – um espectáculo lindíssimo, na antiga Fábrica Balsense, com umas centenas de pessoas, numa noite espectacular de Verão – e, no final, apareceu-me uma senhora de 90 anos, muito lúcida, com um rosto muito bonito, que me disse: «Acompanho-o desde o seu princípio e, enquanto tiver pernas, onde você estiver, eu estou lá!» Este gesto, para alguém que canta, é comovente. Por isso é que eu sou um apaixonado pela minha profissão. É que, sabes?, a gente nunca tem realmente a noção de para quem está a cantar, cada uma daquelas pessoas é muito importante: quem são, o que vai naquelas cabeças... Agora está muito em voga fazer-se o perfil do público... Eu sei lá qual é o perfil do meu público! Tu sabes? Conheces o perfil do meu público?
– Eu acho que tens vários públicos...
– Eu não sei qual é o perfil do meu público. Mas quando me aparece uma senhora de noventa anos a dizer uma coisa destas, no mesmo espectáculo onde me aparece a tal jovem de vinte e tal anos a dizer que, quando era miúda, a mãe e o pai lhe davam cabo de cabeça com os meus discos, mas que agora gosta de me ouvir porque se reencontra com os pais que já desapareceram fisicamente... Esta amálgama de coisas é tão interessante! Imaginas o que isto representa para quem canta, a responsabilidade que isto envolve, mas ao mesmo tempo o cunho de beleza que tem! É uma magia. Eu, quando vou para cima do palco, vou imbuído de uma grande vontade de comungar com as pessoas uma certa forma de distensão. É como se disséssemos: «O mundo está a agredir-nos, vamos aqui fazer uma trégua entre nós, com a ajuda dos meus poetas e dos meus músicos, a gente faz aqui uma hora e pouco de descontracção.» E é bom ver como as pessoas reagem, como se libertam, como têm um momento de felicidade. E nós partilhamos isso, estás a ver? Isto é a antítese do mercenário. É tão bom! O Marcello Mastroiani, que já há pouco citei, costumava dizer: «Gosto imenso da profissão que tenho porque sou um privilegiado: porque tenho a profissão que escolhi, pagam-me para eu fazer uma coisa de que gosto e, não satisfeitos com isso, de vez em quando dão-me um prémio. O que é que eu posso querer mais?» E eu faço minhas as palavras dele.