Editor e deputado do Partido Socialista
Tinha 24 anos em 25 de Abril de 1974 e vivia em Lisboa
Este homem andou a enganar uma data de gente durante vários anos. Ou então foi uma data de gente que se enganou a si própria, talvez por culpa das circunstâncias e de alguns preconceitos. O certo é que, por bastante tempo, muitos o viram apenas como «um filho do pai». Até que um dia foi eleito para a Câmara de Lisboa, primeiro como vereador e depois como presidente. Ficou por lá uma dúzia de anos, e transformou a cidade num lugar onde vale a pena viver.
Hoje, é um dado adquirido que João Soares foi o melhor autarca que a capital conheceu depois do 25 de Abril: a cidade animou-se, com uma oferta cultural que nunca tinha tido nem voltou a ter; foram criadas bibliotecas e espaços de lazer; o Rossio e o Terreiro do Paço renasceram do caos; acabaram as cheias do Vale de Alcântara; desapareceu o supermercado da droga do Casal Ventoso; os bairros de barracas foram demolidos e os seus habitantes realojados. Deixou uma obra visível e consistente, e talvez por isso haja agora outras autarquias a disputá-lo.
No tempo em que esteve à frente dos destinos da capital, a opinião dos descrentes foi-se modificando. Afinal, o homem dava provas de que sabia fazer e não deixava as coisas a meio. Ganhou amigos e admiradores fora do seu círculo, o que naturalmente despertou invejas e atiçou cobiças. Mas o trabalho ficou feito, e houve quem não lho perdoasse. Como não lhe perdoam o estilo pouco convencional de fazer política, o arrojo, a fidelidade aos princípios.
Foi assim em Lisboa e no resto do mundo por onde andou. Sem receio de parecer politicamente incorrecto, visitou Xanana Gusmão numa prisão indonésia, denunciou os cleptocratas de Angola, solidarizou-se com todas as causas que acreditou serem justas, mesmo quando isso implicava ter de afrontar os poderes instalados dentro do partido a que pertence.
Em 2004 candidatou-se à liderança do PS e perdeu. Mas o João é um homem que não teme os desafios e não vira a cara à luta. Está-lhe nos genes, claro. E por isso a sua voz é frequentemente tão incómoda. Porque é uma voz firme e que não cala as convicções, ainda que tal implique um preço a pagar. Porque é uma voz de esquerda, e isso não convém a um mundo cada vez mais alinhado por um pragmatismo asséptico. Porque é uma voz livre. E isso dói muito a quem prefere o comodismo da subserviência.
– Trinta anos depois do PREC, achas que se cumpriu a revolução?
– Bem, em larga medida cumpriu-se. Porque, se nós tivermos memória da situação em que vivíamos no dia 24 de Abril de 1974, temos de reconhecer que se deram passos gigantescos. Claro que já há duas ou três gerações de gente adulta que nasceu depois disso, ou que não tem condições para ter memória dos quatro ou cinco anos que viveu antes do 25 de Abril. Mas, em questões essenciais, que têm a ver com a vida das pessoas, o país deu passos gigantescos. Eu, feliz e infelizmente, tenho idade suficiente para me lembrar de um país em que até era preciso licença de isqueiro! Tu não te deves lembrar disso…
– Então não lembro?!
– Não se podia acender um isqueiro a não ser que fosse «debaixo de telha». Havia uns colegas meus que até usavam bocadinhos de telhas partidas para dizerem: «estou a acender debaixo de telha»…
– E havia os fiscais, uma espécie de «pides dos isqueiros», que iam pedir lume para ver se as pessoas usavam isqueiro, e multarem quem não tivesse licença…
– Eram coisas do mais mesquinho que se possa imaginar. Portanto, isto deu, de facto, passos enormes, que só foram possíveis graças ao corte, à ruptura que se verificou com o 25 de Abril. E houve também, evidentemente, a transformação do próprio país por via da separação de todo o universo das nossas antigas colónias. E aí eu atrevia-me a ser muito heterodoxo na avaliação do que se passou depois, contra o que eram as minhas próprias expectativas e o sentimento que decorria do vento dominante na história do mundo a partir do final da II Guerra Mundial. Porque, aí, o balanço é claramente negativo, com excepção de Cabo Verde, para todos os países que nasceram do nosso império colonial. Mas também no plano dos costumes, da vida quotidiana, do relacionamento entre as pessoas, deram-se passos gigantescos. Não havia divórcio em Portugal para as pessoas casadas pela Igreja. A repressão não era só repressão política, era uma repressão de costumes: era uma sociedade profundamente fechada, e nisso houve uma grande evolução.
– No entanto, durante o PREC, tu estiveste, de alguma forma, naquele grupo que combatia o PC, para quem vocês eram os «contra-revolucionários»...
– Combatia o PC e não só. Repara que, no imediato pós-25 de Abril, o PC começou por ser uma das forças políticas mais moderadas. Eu lembro-me das primeiras greves que tiveram lugar, e foram condenadas pelo PC. Na TAP, na Marconi, já não me lembro bem aonde, houve umas greves, e foram os movimentos mais radicais – o MES, a UDP e até franjas do PS – que apareceram a defender essas coisas. E nas primeiras tentativas de autogestão, que estava muito na moda por via das influências da França e do pós Maio de 68, o PC tomou uma posição conservadora e institucional, a partir das posições que tinha, ou começava a ter, no topo do aparelho de Estado. E depois, quando começou a ver que isto estava mole, é que começou a carregar no acelerador. E eu penso que foi sobretudo a partir de 28 de Setembro – que em larga medida foi um grande embuste, nós não estávamos psicologicamente preparados, a esquerda de uma forma geral, para que pudesse aparecer uma contestação de centro-direita, civilizada, à forma como as coisas estavam a ocorrer. Porque, no fundo, o 28 de Setembro deu-se em torno de uma tentativa de organizar uma manifestação que nós hoje consideraríamos – e deveríamos ter considerado logo na altura – como inteiramente legítima. Por que razão é que pessoas, até mesmo da direita ou da extrema-direita não poderiam organizar uma manifestação? Mas é bom não esquecer que estávamos a viver em 74, o golpe do Chile tinha sido em 73, a Espanha ainda era dominada pelo Franco…
– Era um tempo complicado…
– Havia a ideia de que podia haver um contra-golpe fascista contra a revolução do 25 de Abril. Mas houve ali cenas verdadeiramente de filme negro americano: aquela história da carreta funerária que se inventou nas barricadas que protegiam Lisboa da «avançada dos fascistas», é uma coisa que hoje reconheço que foi de um extremo bom gosto, deve ter sido organizada por um cinéfilo! [risos] Não sei se foi o dr. Álvaro Cunhal se não, mas eu sei que ele era um cinéfilo, e deve ter sido um cinéfilo habituado a bom cinema americano que inventou essa. Lembro-me de, nessa noite, ali à entrada de Lisboa, a seguir ao Ralis, ouvir falar na carreta funerária que obviamente nunca ninguém viu… Por isso eu acho que a partir do 28 de Setembro é que o PC, por um lado, e o conjunto das outras forças esquerdistas decidiram acelerar um pouco – com excepção do MRPP, que tomou sempre uma posição relativamente diferente, mais próxima das posições do PS. De facto era uma oportunidade histórica, porque nunca mais – se quiseres usar as expressões tradicionais – nunca mais a burguesia portuguesa vai estar tão assustada como esteve nessa altura. Vão ser precisas quatro gerações até que a burguesia portuguesa passe outra vez por aquilo. Eles tinham quatro gerações, desde 1926, de descanso, de conforto, de tranquilidade total, e saíram do remanso de uma sociedade hiper-protegida para as convulsões de um movimento revolucionário, e apanharam um susto como nunca mais apanham. E, aqui para nós, não havia razões para terem esse susto. Porque, em 24 de Abril de 74, o PC tinha pouquíssima força, e havia dois ou três movimentos esquerdistas a disputarem com ele a animação e a agitação clandestina. Mas, tudo somado – desde a oposição tradicional, velhos republicanos, o Partido Socialista, o Partido Comunista e todos os movimentos esquerdistas que existiam na clandestinidade – nada disto contava a sério para pôr em causa o regime. É outra coisa que é preciso reconhecer em relação ao 25 de Abril – e, pessoalmente, sempre me revindiquei como partidário e um descendente da tradição reviralhista da República. Foram os velhos republicanos que insistiram sempre na ideia de que não havia cá «levantamento popular nacional», como dizia o PC, nem a «grande Revolução de Outubro» que queriam os grupos esquerdistas. O que houve foi um movimento de militares revolucionários conspiradores, na boa tradição reviralhista: foi o de 5 de Outubro, foi o de todas as tentativas revolucionárias que se fizeram depois do 28 de Maio. E o 25 de Abril de 74 foi uma conspiração revolucionária de militares – e ainda por cima de militares profissionais, os milicianos no 25 de Abril são três ou quatro, sobram dedos numa mão. Que eu saiba, em acções operacionais, é o António Reis na RTP, é o Gama que estava numa unidade na Figueira da Foz e foi libertar Peniche, e poucos mais. O PC não foi inteiramente surpreendido, mas ainda assim foi bastante surpreendido. Como o Partido Socialista. As várias correntes da oposição tinham informação, sobretudo a partir do 16 de Março, de que podia haver qualquer coisa com condições para ganhar. Mas o que aconteceu foi o triunfo do reviralho, que foi sempre tratado tão depreciativamente pelo PC e pelos que estavam teoricamente à esquerda do PC. Eu sempre fui reviralhista.
– Eu falava-te do PC porque, durante o PREC, tu estás no sector anticomunista e, anos depois, acabas por ser o promotor da primeira coligação de poder entre socialistas e comunistas. O que é que mudou: foste tu ou foram eles?
– Vamos lá ver: analisando friamente os factos, o PC tem um trabalho admirável, do meu ponto de vista. Com uma estrutura extremamente debilitada em termos de operacionalidade, uma estrutura clandestina a fazer trabalho político num país como Portugal, onde há um envolvimento em três frentes de Guerra Colonial e tudo o resto, o PCP em 24 de Abril de 74 tinha uma estrutura clandestina profissional no interior do país reduzida a uma expressão mínima, mas apesar de tudo superior a qualquer outro dos grupos esquerdistas que existiam. Mas, por exemplo, do ponto de vista da expressão da propaganda, o PC tinha menos capacidade do que o MRPP a pintar paredes, a distribuir papéis, a fazer agitação de rua… O PC tentou promover uma manifestação de rua em Lisboa, na última farsa eleitoral, que foram as eleições de 73, e praticamente não conseguiu conduzi-la. Ora o MRPP tinha condições para fazer manifestações para umas dezenas ou umas poucas centenas de pessoas num ritmo quase diário, nessa altura. Mas depois o PC consegue capitalizar gerações e gerações de pessoas que tinham passado por lá e se tinham afastado – ou porque se tinham ido abaixo na polícia ou porque se tinham fartado – e, no entusiasmo da revolução, quando começa a sentir o desvario em que estava a burguesia a partir do 28 de Setembro, tentam ir mais longe. Eu acho que o dr. Álvaro Cunhal e a direcção dele do PCP tentaram ir além daquilo que eram as suas reais possibilidades no plano estratégico internacional e deixar uma marca na História – que para todos os efeitos deixaram, embora não tenha sido bem sucedida. Tentaram, e houve toda aquela deriva que levou até ao 25 de Novembro…
– Onde o PCP acabou por funcionar como um travão do «entusiasmo revolucionário», não é? Havia gente disposta a pegar em armas, e é o PC que não deixa…
– Sim, porque eles nunca deixaram de ter «bom senso», não há ali propriamente um processo de loucura total…
– E os soviéticos também não estavam muito interessados em que Portugal fosse um país socialista…
– Eu acho que os soviéticos não estavam nada interessados.
– Aliás, o Brejnev terá dito isso mesmo ao Costa Gomes…
– Penso que foram o Cunhal e a sua direcção que quiseram tentar uma coisa que sabiam estar para além daquilo em que os soviéticos queriam, porque sentiam que havia condições. Julgo que eles cometeram um erro a seguir ao 11 de Março – outra coisa que em larga medida ainda está por explicar, porque foi uma tentativa completamente disparatada das forças ligadas ao Spínola: eles tinham acabado de ganhar, num processo democrático interno, os conselhos representativos dos vários ramos das Forças Armadas, e atiram-se para uma tentativa de golpe militar a fim de evitarem a chamada «matança da Páscoa», que é uma coisa que não se sabe como é que lhes foi «vendida» naquelas condições… E aquilo deu a oportunidade a que o PC e as forças esquerdistas todas e os seus aliados no MFA dessem um novo passo em frente, muito mais radical, com as nacionalizações da banca e de tudo o resto. Mas cometeram um erro, infelizmente para eles dramático, e altamente benéfico para os portugueses, que foi não impedirem as eleições. E isso deve-se ao PS, mas também ao Costa Gomes e aos militares moderados, como o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, e outros. As eleições de 25 de Abril de 1975 para a Assembleia Constituinte foram absolutamente decisivas porque o PC e a extrema-esquerda tinham-se sobreavaliado e foram confrontados com o que realmente pesavam na sociedade, e acho que foi uma surpresa imensa. Para além, evidentemente, daqueles desvarios dos tipos do MES, e de outros, que andaram a propor o voto em branco como um voto no MFA e aquelas coisas completamente delirantes. Dei um contributo militante anónimo, mas muito empenhado, em todas essas batalhas que se travaram em torno dos valores com que ainda hoje me identifico e que são para mim os valores do 25 de Abril. Tenho orgulho em ser ateu e ter ido para a porta do Patriarcado, no Campo de Santana, defendê-lo de uma tentativa de assalto que esteve para ocorrer no Verão de 75. Como também passei uma noite em frente ao República para tentar evitar aquela coisa disparatada que foi a ocupação do jornal. E hoje uma boa parte das pessoas que o ocuparam em nome das forças revolucionárias estão aí ao serviço do PSD ou ao serviço dos jornais da burguesia, como eles diriam na altura, mas enfim… Agora, o que aconteceu em 88-89 e que levou ao estabelecimento de uma coligação em Lisboa é uma coisa completamente diferente. O PC deixou de ser uma ameaça para o sistema democrático a partir do 25 de Novembro de 1975. E eu identifico-me com aquilo que foi a posição do PS e a posição do Melo Antunes, que foram tomadas em sintonia no sentido de não ilegalizar o PC, apesar das asneiras que eles tinham feito entre 28 de Setembro de 74 e 25 de Novembro de 75. A partir daí, o PCP vale o que vale qualquer outro partido. Eles é que têm o preconceito que os leva a sobreavaliarem-se, até há um texto do Cunhal que se chama A Superioridade Moral dos Comunistas… E em certa medida temos de reconhecer que houve pessoas que, de um certo ponto de vista, foram sempre fiéis a esse princípio no seu comportamento pessoal, com uma dedicação franciscana…
– E, por outro lado, a história do PCP não pode ser comparada com a história dos PC’s da União Soviética e da Europa de Leste: é um facto que, em Portugal, os comunistas tiveram um papel central na luta pela liberdade.
– Claro, isso é óbvio.
– Posteriormente, foi o PS que ficou muito ligado a alguns recuos relativamente ao 25 de Abril: nas nacionalizações, na reforma agrária. É com o PS que começa a normalização do país. Pergunto: seria mesmo necessário ir tão longe?
– Eu acho que para se ter ido um bocadinho mais longe do que se foi, e isso teria sido desejável, era preferível ter feito uma política de pequenos passos muito mais seguros do que aqueles que se deram. Porque na história da humanidade e dos vários movimentos revolucionários já está provado há séculos que quando se quer ir depressa demais acaba por se andar para trás, e em larga medida foi isso que aconteceu em muitas áreas. E se a gente tem feito um processo de consolidação dos vários avanços que se foram fazendo, talvez não se tivesse andado tanto para trás como se andou. Nomeadamente o que se passou a seguir ao 11 de Março de 75 foi um disparate total: por mais radical e socialista que se seja não se pode deixar de reconhecer o papel indispensável da iniciativa privada no quadro de uma economia minimamente desenvolvida. Isto lembra-me a velha polémica em torno dos estímulos materiais que os cubanos travaram logo no início da revolução: o Guevara foi o expoente máximo do combate aos estímulos materiais, mas a verdade é que tem de haver estímulos materiais, faz parte da natureza humana. Se não houver estímulos materiais, as coisas não andam. Haverá evidentemente sempre meia dúzia de pessoas que vivem como santos, na velha tradição cristã, como frades, franciscanos a sério, daqueles que usam mesmo sandálias. Agora os franciscanos às vezes também usam sapatinhos de marca e fatos de bom corte… Eu não estou a referir-me a ninguém, claro. [risos]
– O nosso amigo Júlio Pinto dizia que já não há exploradores e explorados: agora, passou a haver colaboradores e colaborados. Que te parece?
– A evocação do Júlio é-me particularmente simpática, já que não só era amigo dele como tinha uma profunda admiração pelo que ele fazia, e sobretudo pelo percurso pessoal e cívico que fez. Agora, que há exploradores e explorados, lá isso há. O que não implica que não haja também «colaboradores e colaborados». E que, às vezes, até coincidam, uns com os exploradores, outros com os explorados. E se calhar o pior é quando coincidem…
– O capitalismo é uma fatalidade?
– Não, de forma nenhuma. Eu sempre fui genuinamente socialista no sentido de que continuo a ser contra a ideia do capitalismo como motor da História. Uma coisa é reconhecer a necessidade do estimulo material, a necessidade de que possa haver benefício no plano material para quem cria mais riqueza como um estimulo para que mais riqueza continue a ser criada, e outra coisa é continuar a ser fiel aos velhos princípios que deram sentido aos movimentos socialistas iniciais. Não quero citar o Proudhon, que dizia que «a propriedade é um roubo», mas continuo a ver a propriedade da terra, a propriedade da natureza, como uma coisa que, não sendo um roubo, ainda é largamente contra-natura. Porque o mar, a terra, a natureza não devem ser propriedade de ninguém, ou se o forem só devem sê-lo de uma forma muito transitória, como todos os poderes que se exercem neste mundo em que vivemos. Agora, é preciso encontrar um equilíbrio entre isto. A verdade é que o fracasso do comunismo em todas as suas versões – quer a versão tradicionalmente considerada como ortodoxa que era a do universo soviético, quer a versão ainda em vigor na lógica do partido único na China – representou um retrocesso de tudo o que tem que ver com as ideias anticapitalistas. Mas acho que ainda há hoje uma imensa margem para que esses valores se imponham à gente mais jovem que não se identifica com esta lógica de competição desenfreada, despudorada e feroz que as filosofias neoliberais querem impor a todos os níveis. Quer dizer: há aqui espaço e há apetite, eu sinto-o ao nível dos meus filhos mais velhos, sinto que há hoje uma grande vontade de construir alternativas. Mas o fracasso do comunismo pôs em causa muito deste movimento anticapitalista. E o fracasso do comunismo não se deve ao sucesso do capitalismo, deve-se às contradições internas e àquilo que foram os erros que em nome da ortodoxia foram sendo cometidos. Nesse plano, creio que a batalha que os socialistas portugueses travaram foi percursora, em larga medida, do que se passou no Leste da Europa, e deixou perceber o que havia de perverso em todo aquele sistema.
– Tão perverso que os protagonistas acabam por ser praticamente os mesmos: hoje, os donos da Rússia são os tipos do KGB e do Konsomol. O «homem novo», pelos vistos, deu naquilo…
– E parece que há aí outra explicação: é que os homens do KGB eram os únicos que tinham informação sobre o que se passava no exterior, eram os que iam para além do muro, e portanto não tinham condições para acreditar na ideia de que se estava a construir ali uma coisa nova. A China é o exemplo de como aquilo na sua essência é profundamente perverso: eles mantiveram tudo o que há de pior no sistema de partido único e na ditadura, no plano cívico e político, e juntaram a isso o que há de mais feroz no capitalismo selvagem e sem regras. Aqueles dois sistemas coexistem, e pelos vistos dão-se bem. A China, hoje, é a expressão mais acabada do sucesso do capitalismo selvagem, a ponto de pôr em causa, agora, os sistemas de bem-estar social que existem nos outros quadros da economia de mercado que há no mundo, quer nos Estados Unidos quer na Europa. Os nossos têxteis estão a ir por água abaixo por causa da competição em termos de dumping social intensíssimo que é feito pelo Extremo Oriente e sobretudo pela China…
– Com condições de trabalho que já não há nos países capitalistas…
– Exactamente, que já ninguém tem em lado nenhum. Embora haja ali talvez uma esperança de que a Índia possa representar ali um papel de algum equilíbrio. A Índia é um caso muito curioso porque está a aproximar-se muito da China em termos de população. Os dois, somados, deixam o resto do mundo a não saber bem o que é que nós somos: porque só a China tem mais de um bilião de pessoas, e a Índia aproxima-se disso também. E, curiosamente, a Índia é, desde os anos quarenta do século passado, um estado democrático. Com todas as suas terríveis contradições, mas é um estado democrático, com imprensa livre, com crítica, com eleições, com alternâncias de poder, às vezes também com algumas violências, mas pode ser que aí se estabeleça um equilíbrio. Porque o que se está a passar, nomeadamente em matéria de novas tecnologias, com a transferência de capacidades para países como a Índia e até, em certa medida, a China, é extremamente curioso…
– Mas o panorama que vai no mundo não é propriamente uma coisa muito animadora. Como é que tu encaras esta tendência crescente para a unipolarização?
– Bem, a gente à medida que vai envelhecendo tem tendência para olhar para as coisas e dizer que isto está pior. Mas apesar de tudo continuo a ter uma visão razoavelmente optimista das coisas, e acho que se vive melhor hoje, apesar das muitas dificuldades que existem, do que se vivia há cinquenta anos. Creio que na história da humanidade nunca houve tantas condições para resolver as questões básicas de uma forma tão fácil e com tão pouco esforço físico e intelectual. O esforço que hoje é preciso fazer para dar provimento às necessidades básicas essenciais – que têm que ver com o agasalho, com a habitação, com a alimentação, com a saúde, com a educação – o esforço que hoje é preciso fazer para isso é mínimo, comparado com o que se tinha de fazer há cinquenta e tal anos. Por alguma razão o Bill Gates, hoje, é o homem mais rico do mundo. A acumulação primitiva do Bill Gates desmente todas as teorias marxistas! O Bill Gates vende sistemas de inteligência, e começou numa garagem de Los Angeles, na Califórnia. Nenhum de nós, hoje, comunica sem passar por ele, porque temos que ir ao Windows. Isso é o símbolo da facilidade com que hoje se produzem as coisas de que precisamos. O problema é de repartição das riquezas, e de desequilíbrio entre as riquezas…
– Pois. O fosso entre ricos e pobres é cada vez maior.
– O fosso entre ricos e pobres é maior, mas porque não tem havido coragem para abrir, para acabar com as fronteiras. A Europa é um bom exemplo, porque é talvez o mais sólido e mais consolidado espaço de bem-estar, liberdade e respeito pelos direitos fundamentais que existe no mundo – e eu conheço o mundo razoavelmente. Mas a Europa não pode fechar-se egoisticamente atrás de uma muralha que constrói para impedir o acesso dos outros. O que se passa no Estreito de Gibraltar é, de facto, o pior dos símbolos a esse nível: são as pessoas que vêm do Magreb e da Africa subsariana e que se fazem ao mar em barcos fragilíssimos, arriscando a vida e morrendo às dezenas, para tentarem chegar clandestinamente a este espaço de bem-estar onde nós vivemos, e onde continuam a verificar-se movimentos chauvinistas, e alguns até racistas, que recusam a emigração, nomeadamente a que vem do Leste. É preciso é que as pessoas tenham a coragem de ser audaciosas. Olha o que se passou com a moeda europeia: cinco anos antes da criação do euro toda a gente dizia que era impossível, que era insensato, e que se tiravam aos governos nacionais instrumentos vitais de afirmação da nacionalidade. Mas depois quem beneficiava desses instrumentos era o senhor [George] Soros – que aliás é um tipo simpatiquíssimo e que escreveu um livro muito interessante [A Crise do Capitalismo Global, edição Temas e Debates, 1999] – que nas Ilhas Caimão, fazia ataques à libra inglesa, à peseta espanhola, e às vezes subsidiariamente ao escudo. E no entanto graças à coragem política da liderança europeia do [Jacques] Dellors criou-se uma moeda que acabou com isso tudo, e que está a pôr em causa a supremacia dos americanos através do dólar, que era o instrumento de financiamento do défice americano e a moeda de referência no mundo. Eu não sei se, de alguma maneira, não foi o facto de o Saddam Hussein ter sido o primeiro a cotar o petróleo em euros e não em dólares que deu origem à intervenção americana. Porque tipos como o Saddam Hussein há muitos naquela região do mundo, e eles só quiseram derrubar aquele – quando, por acaso, o Iraque até era das sociedades mais laicas. Não é que eu tenha a menor simpatia por um torcionário como o Saddam Hussein, mas torcionários ali há-os aos montões, e vão lá continuar. Portanto, eu acho que essa revolução que se fez com a criação do euro é um símbolo muito importante. Porque às vezes são pequenas coisas que podem ser decididas ao nível das várias instâncias de concertação e de gestão internacional, como as Nações Unidas e a União Europeia. Por exemplo: acabar com o papel perverso dos off-shores, com esta lógica de economia de casino em que os mercados se transformaram e que é uma coisa que não tem nada a ver com a real criação de riqueza. Se acabarmos com os off-shores e se impuserem regras simples – e que são relativamente fáceis de impor como a taxa Tobin e outras – sobre as operações de especulação financeira, damos um salto tão grande como se deu com a criação da moeda única europeia.
– Então o que é que falta? Falta coragem?
– Falta coragem, faltam lideranças capazes, falta audácia. Nós estamos todos muito cinzentões e muito conservadores. Ao nível da esquerda portuguesa, ao nível da esquerda europeia, há falta de gente irreverente e com vontade de dar um salto em frente. E, depois, há o papel perverso que têm os media. Não estou a acusar ninguém, mas a verdade é que, com as televisões e também agora um pouco com a internet, nós vivemos no espectáculo permanente. Os tipos do Maio de 68, o Guy Débord e os situacionistas, que fizeram aquela análise da sociedade do espectáculo, estavam a milhões de anos-luz de prever que isto se transformava, de facto, num espectáculo permanente. Nós temos consciência de tudo o que se passou nos últimos vinte, trinta anos. Há pouco estávamos a falar do período do «processo revolucionário em curso», o famoso PREC, e nessa altura houve três ou quatro momentos altos que passaram por um grande debate televisivo que ainda há pouco tempo foi transmitido na RTP Memória. O que era um debate televisivo nessa altura num país onde só havia dois canais de televisão? O que é que foi o impacto da primeira telenovela brasileira, que ainda passou a preto e branco, a Gabriela? E o que é isto hoje? No fundo, o dia-a-dia transformou-se numa sucessão de coisas efémeras que têm efeito mediático nesta sociedade de espectáculo, mas que não passam disso. Mas a sucessão do efémero acabou por tornar-se uma coisa duradoura. O que é que resiste? Nós estamos confrontados com um quotidiano onde o acessório se tornou de tal maneira omnipresente que acaba por tornar-se no essencial. E aí o tal papel perverso dos media, e nomeadamente da televisão que se faz a todas as horas em directo: hoje é inconcebível uma guerra sem que a televisão nos dê imediatamente as imagens do sangue. E quando não há uma câmara profissional, estamos logo nesse dia a receber as imagens dos amadores, como aconteceu no tsunami no Oriente! A comunicação entre as pessoas, graças aos telemóveis – de que nós não abdicamos, mas que são «instrumentos de tortura» – tornou-se uma coisa inacreditável!
– Deixa-me voltar um pouco atrás. Tenho a ideia de que o teu percurso político não foi propriamente facilitado pelo facto de seres filho de quem és. Durante muito tempo, muitas pessoas olhavam para ti como o filho de Mário Soares e não tanto como o João Soares…
– Acontece com muita gente, e é normal que aconteça: a imagem do meu pai é tão forte e ele tem uma marca tão impressiva na nossa história recente que é normal que as pessoas digam isso, o que só me honra. Temos as melhores relações no plano afectivo, e no plano das ideias também. Eu já falei sobre isso muitas vezes, e acho que no balanço das vantagens e dos inconvenientes, os inconvenientes foram sempre maiores que as vantagens. Mas eu não me queixo, pelo contrário, tenho orgulho nisso e acho que as vantagens, apesar de inferiores aos inconvenientes, valeram a pena. Eu não herdei os amigos do meu pai e levei com todos os inimigos do meu pai, que não são poucos. [risos] Acrescenta aos que não gostam de mim, os muitos que não gostam do meu pai, sendo que nunca somei os amigos dele. No plano da actividade politica e cívica, isso já dá um bocado a medida das coisas. Se eu tenho uma boa ideia e a exprimo, com clareza e em público, a tendência é para dizer «esta ideia foi-lhe dada pelo pai». Se digo um disparate, sou comparado com as melhores coisas que ele fez e então dizem «o tipo não lhe chega nem aos calcanhares». Mas não tenho nenhuns complexos de Édipo por resolver. Por vezes tenho é de aturar os gajos que não resolveram bem o Édipo com ele, por razões políticas, e isso ainda dá coisas mais complicadas…
– De qualquer modo, creio que os anos em que estiveste na Câmara de Lisboa, quer como vereador quer como presidente, te trouxeram um capital de reconhecimento público que até aí não existia…
– Eu aí não estou muito bem colocado para avaliar, mas penso que sim…
– A Câmara de Lisboa foi o teu grande momento de glória, digamos assim?
– Eu gostei muito do que fiz na Câmara de Lisboa, e continuo a ser o único que foi para lá por amor àquilo que a Câmara é, e não a pensar noutra coisa. Porque quer o Aquilino Ribeiro Machado, quer o Abecassis, quer o Jorge Sampaio tinham ido para lá por outras razões, ou tinham sido escolhidos por outros. Fui o único que lutou para ser autarca de Lisboa e para ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Depois, a partir daí, as pessoas começaram a olhar para aquilo como uma plataforma de onde se dá o salto para outra coisa. Ora eu sempre quis ir para lá por aquilo que se faz lá. E tenho pena de ter perdido porque tinha muito amor ao que estava a fazer. E não estava a pensar em nenhuma outra coisa.
– O trabalho na autarquia deixou saudades?
– A Câmara de Lisboa foi das experiências mais interessantes e mais bonitas ao longo da minha vida, que já leva 55 anos. O trabalho na autarquia é o trabalho mais fascinante que existe no nosso sistema político, porque em nenhum outro lado tu podes estudar os problemas, conhecer a realidade, sonhar com os projectos que permitem resolver os problemas, concebê-los, projectá-los e depois executá-los, e sentir se eles foram ou não úteis para as pessoas que tens o objectivo de servir. Além de que, em Lisboa, isso mexe com tudo o que tem a ver com a vida deste mundo em que vivemos: mexe com a habitação, com o saneamento, com relações internacionais…
– Depois disso, tentaste ser secretário-geral do PS…
– Isso aí foi uma cabazada grande! [risos]
– A tua derrota terá sido uma derrota da esquerda do PS?
– Não consigo ver as coisas assim. De esquerda, em princípio, são todos os que são militantes do PS, pelo menos eu faço questão de acreditar nisso. Agora, aquilo é um universo muito curioso. Estamos a falar de um universo eleitoral de vinte e tal mil pessoas, sendo que o Sócrates teve oitenta e tal por cento, teve vinte e um ou vinte e dois mil votos, o Manuel Alegre teve cinco mil votos, e eu tive mil e quinhentos votos. Portanto há aí uma diferença abissal…
– Foi uma vitória do «aparelho» do PS?
– Não, porque de facto a votação foi participada e as pessoas tinham consciência do que estava em jogo, e quiseram fazer aquela opção. E aí o que há a fazer é respeitá-la, como democrata que sou…
– Por vezes tenho a sensação de que, se calhar, tens mais amigos e apoiantes fora do PS do que lá dentro…
– É possível. Olha, nesta campanha aconteceram muitas coisas curiosas. Uma campanha interna num partido como o PS obriga um tipo a deslocar-se pelo país todo. E eu, em poucos meses, dei a volta a todos os distritos do país numa pequena carrinha que me foi emprestada por um médico meu amigo. Íamos aos sítios mais recônditos, e éramos muito bem recebidos no restaurante onde almoçávamos, na bomba de gasolina onde parávamos, na praça central da terra por onde passávamos. E depois, às vezes, havia muito mais frieza dentro da sede do Partido Socialista onde estavam as trinta, quarenta pessoas que iam assistir à sessão, porque já estavam comprometidas com outra candidatura. Isso é curioso. Não tenho nenhuma avaliação em termos de sondagens, mas reconheço que é curioso. Apesar de já não ter há alguns anos funções públicas com relevância mediática de primeiro plano, reconheço que ainda tenho uma grande notoriedade no país, e as pessoas de uma forma geral conhecem-me e não costumo ter problemas de antipatia em lado nenhum. Às vezes há um ou outro tipo que aparece, mas de uma forma geral nunca tive problema em lado nenhum…
– Agora és deputado reeleito pelo PS. Sendo tu um homem de acção, isso chega-te, ou dá-te um sentimento de insatisfação?
– Dá, dá-me um sentimento de insatisfação. O parlamento tem um papel muito importante, que tem de ser valorizado e tem de ser respeitado. Eu tenho consciência de que, de uma forma geral, os portugueses desvalorizam o papel do parlamento e consideram que aquilo é uma casa onde se fala muito e pouco se faz. E reconheço que, às vezes, o parlamento também se põe a jeito. Mas acho que essas críticas nascem fundamentalmente do facto de os portugueses não se reconhecerem, não se reverem, não se sentirem representados por quem elegem. Porque o sistema eleitoral que nós temos – e eu tenho-me batido sempre contra isso – leva a que nós votemos em siglas partidárias e não em pessoas. E enquanto não se modificar essa situação, enquanto não se acabar com o monopólio dos partidos em matéria de proposição de candidaturas – e eu sou um homem de partido – enquanto não pusermos as pessoas a fazer opções em torno de nomes, não se acaba com uma parte do descrédito do nosso sistema político. Que não é pior do que na generalidade das outras democracias europeias consolidadas há muito mais tempo do que a nossa, mas que resulta fundamentalmente deste facto: de as pessoas não se sentirem representadas. Mesmo nos círculos mais pequenos, às vezes as pessoas não identificam sequer o cabeça da lista em que votaram, quanto mais em círculos como Lisboa. Eu não te vou perguntar quem era o terceiro da lista em que votaste, porque não sabes, e és um cidadão particularmente bem informado. Até porque não quero que digas em quem é que votaste… [risos]
– Mas eu posso dizer…
– Ou votaste no PS ou no Bloco de Esquerda. Ou então votaste no Jerónimo, coitado, que é bom homem, também merecia… [mais risos] Mas tenho a certeza de que, qualquer que tenha sido o teu voto, não sabes quem era o terceiro que foi eleito com ele. As pessoas não identificam, e os eleitos, depois, também não sentem nenhuma relação com quem os elegeu. Nesse aspecto acho que sou uma das excepções à regra, nunca me preocupei muito em estar em sintonia com a direcção partidária: quando estou, estou, quando não estou também não me coíbo de dar a minha opinião.
– Então, e agora?
– Agora? Eh, pá!, uma pessoa que esteja de bem consigo próprio, na sua pele, nunca tem problemas. Se um tipo está de bem consigo próprio, tem todas as condições para estar bem com os outros. Excepto com aqueles que nos agridam ou que sejam desagradáveis. Se eu tivesse a oportunidade – como tive, nos anos em que estive na Câmara – de utilizar a energia e as capacidades que tenho ao serviço do bem comum de uma outra maneira, podendo produzir coisas mais úteis (construir casas ou fazer equipamentos, ou pôr de pé edições) tudo bem. Se não se pode fazer isso no plano público, faz-se isso no plano privado, de outra maneira…
– Portanto, desistir não está nos teus planos?
– Não. Desistir de quê? Desistir de viver? Ou desistir de estar de bem comigo e com os outros? Claro que não. A luta continua.