Maria Teresa Horta

Maria Teresa Horta
Jornalista e escritora
Tinha 36 anos em 25 de Abril de 1974 e vivia em Lisboa

Uma mulher que gosta de ser mulher e por isso não se conforma com aquilo que dizem ser o destino das mulheres. E por isso luta, e por isso escreve, e por isso grita. Eis Maria Teresa Horta, mulher e escritora que a partir dos anos 60 se afirmou como uma voz central da poesia portuguesa, pela coragem de romper com estereótipos e tabus que pareciam inquestionáveis.

O corpo, o prazer, o sexo, eram então coisas sobre as quais uma senhora não deveria falar, muito menos em público. E por isso quando, em 1972, se junta a Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa para a publicação das Novas Cartas Portuguesas, o escândalo foi tremendo: o livro foi apreendido e as autoras levadas a julgamento. O processo terminou, já depois do 25 de Abril, com a absolvição das «três Marias», mas o rótulo de «feministas militantes» nunca mais as abandonou.

Para Teresa, esse foi um estigma que se lhe colou à pele. Não admira, sendo ela uma mulher habituada a utilizar as palavras todas para dizer o que é preciso ser dito. Jornalista e escritora empenhada nas lutas do seu tempo, acha que agora é tempo de redescobrir as diferenças que fazem com que os homens e as mulheres se atraiam, se completem, se respeitem. Mas a sua voz continua a ser incómoda e inconformada, talvez porque homens e mulheres demoram a aprender que a igualdade só se alcança através da partilha.

A poesia de Maria Teresa Horta reflecte as suas preocupações e anseios de mulher, de ser humano feito para amar e ser amado, mas que não gosta de servir nem de usar. O erotismo dos seus poemas surge como uma provocação apenas porque esse foi, durante décadas, um território masculino. E portanto as incursões de Teresa são, mais do que uma ousadia, uma ameaça intolerável.

Ela sabe disso, mas não desiste. Subversiva, assume o carácter físico do amor a par da sua dimensão emocional. E proclama que as mulheres não têm mais que esconder as dores e aceitar os sofrimentos, que o prazer é um direito por que vale a pena lutar. E que só de igual para igual se podem construir os afectos.

«Não contes do meu vestido / que tiro pela cabeça / nem que corro os cortinados / p’ra uma sombra mais espessa // Deixa que feche o anel / em redor do teu pescoço / com as minhas longas pernas / e a sombra do meu poço // Não contes do meu novelo / nem da roca de fiar / nem o que faço com eles / a fim de te ouvir gritar.»
Não, definitivamente, uma senhora não fala assim. É preciso ser uma mulher. Uma mulher livre, como a Teresa.

– Trinta anos passados sobre as lutas do PREC, o que é que se conseguiu? O que é que as mulheres conseguiram?

– Acho que, nestes trinta anos, está quase tudo por conseguir, até porque nesta altura há um retrocesso claro na posição das jovens mulheres relativamente às mulheres da minha geração. Nós exigíamos muito mais, queríamos muito mais da sociedade em relação a nós, para as nossas vidas e para a vida das mulheres, de uma maneira geral, do que elas hoje querem. Elas hoje exigem menos, e estão dispostas a fazer coisas e a aceitar coisas a que a minha geração já não estava disposta: aceitar ser amante do chefe, aceitar subir na vida através do relacionamento amoroso ou sexual, aceitar que «eu fico em casa para o meu marido ter emprego». Isto é uma coisa que, hoje em dia, tu vês em raparigas que fazem campanhas contra a legalização do aborto, por exemplo! Isto era impensável, quando eu tinha a idade que elas agora têm. Há outra vez muito menos solidariedade entre as mulheres, havendo paralelamente um relacionamento muito mais intenso – o que é curioso e é estranho. O 25 de Abril, o que é que trouxe? Trouxe uma maior pseudo-abertura. Não há dúvida de que o 25 de Abril favoreceu todos os portugueses, foi realmente o sonho tornado realidade para quem lutou pela liberdade. Mas as mulheres nem sempre aproveitaram essa liberdade, essa abertura que lhes veio mostrar que elas têm direitos – que são reconhecidos na Constituição, as leis mudaram no que diz respeito ao Direito de Família, por exemplo, são coisas extremamente importantes…

– E os maridos deixaram de ser donos e senhores da família…

– Exacto. Tudo isso mudou, é verdade. Para as mulheres, aquilo que mudou foi sobretudo do ponto de vista das leis. Neste momento, a luta pela igualdade está feita. Por isso eu costumo dizer que, como feminista, neste momento tenho a luta de que mais gosto, que é a luta pela diferença. Porque a luta pela igualdade está feita. Eu fi-la: fiz manifestações, colei cartazes, fiz o 8 de Março, as marchas a favor da liberalização do aborto, assinei papéis a dizer «eu abortei», fiz todas essas coisas. Conseguiu-se realmente, fizemos um movimento feminista – o único que existiu em Portugal, porque uma coisa são os movimentos de mulheres, de partidos que têm homens por detrás, e outra coisa é fazer um movimento de libertação que só tinha mulheres e onde as decisões eram femininas. E isso foi feito logo, foi pensado e feito no dia 7 de Maio, logo depois do 25 de Abril, quando houve a nossa absolvição pelo tribunal no caso das Novas Cartas Portuguesas. Nesse dia nasce o Movimento de Libertação das Mulheres, e eu estava na cabeça desse movimento, que fez muitas coisas que hoje parecem quase inacreditáveis. Por exemplo: nós tínhamos contacto com o COPCON, através do Otelo Saraiva de Carvalho, e quando sabíamos que mulheres davam entrada em hospitais porque tinham sido espancadas pelos maridos, telefonávamos para o COPCON, que ia lá a casa, pregava um susto de morte aos maridos, e eles nunca mais tocavam nas mulheres, essa é que é verdade. E o trabalho conjunto que houve com o Salgado Zenha, que era Ministro da Justiça, para mudar o Código de Família, foi um trabalho que hoje não há mais. O MLM acabou, e neste momento há grupos de mulheres, é verdade, há a Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres, há o MDM – que foi sempre do PCP, e que por detrás teve sempre o Domingos Abrantes – e depois há as mulheres do PS, e grupos de mulheres daqui e dali, coisas novas, mas não são grupos que façam muita coisa. Portanto, as coisas básicas estão feitas, o que eu penso que tem de se fazer e não se fez são mudanças de mentalidades. E como não se fez, as mulheres combativas que nós éramos quase não têm seguidoras. As nossas filhas já encontraram muita coisa feita, mas ainda se lembram muito daquilo por que passaram as mães e as tias, mas as filhas delas já não. E essas, que aparecem depois da liberdade construída, dada de mão beijada, hoje já se dão ao luxo de quererem voltar para casa! É verdade que elas estão nas universidades, e tu dirás: são as que estão à frente, são o maior número. São. E depois? Saem das universidades e depois, o que é que acontece? Acontece que os primeiros empregos são para os homens, acontece que eles continuam a ganhar mais, acontece que os lugares de chefia continuam a ir sobretudo para os homens, acontece que quando há um grande desemprego elas são as primeiras a serem despedidas. Coisas básicas que já deviam ter mudado: como é que centrais sindicais aceitam contratos de trabalho com diferenças salariais, quando está na Constituição que isso não é possível?

– Se calhar é precisamente porque as mentalidades não mudaram que nós vemos cada vez mais casos de violência doméstica, por exemplo…

– Sim, hoje há mais. Nunca se falou tanto na violência doméstica porque nunca houve tanta.

– E acontece em todas as classes…

– Em todas as classes. E porque é que há mais? Por uma coisa muito simples: porque, dantes, as mulheres eram mais submissas, e portanto aceitavam muito melhor o estatuto da mulher domesticada, da mulher amordaçada, sem desejo, sem vontade, sem opinião. E essa é a grande mudança do 25 de Abril. Isto tem a ver com as leis que se alteraram, mas também com o acesso a outras coisas, a abertura ao estrangeiro. Há o cinema que agora nos chega, e através dele outras visões sobre as coisas, há a telenovela brasileira que os intelectuais, que são elitistas, acham uma coisa horrenda, mas eu não acho: há de tudo, há telenovelas boas e outras péssimas, mas de uma maneira geral acabam por ser muito benéficas no que diz respeito à vida doméstica, às relações entre os homens e as mulheres, porque trazem à discussão temas que tu não vês, em Portugal, serem discutidos. E a verdade é que as pessoas não têm uma grande cultura neste país, e portanto não vão ler a Madame Bovary, vão ler a Margarida Rebelo Pinto! Então, entre lerem a Margarida Rebelo Pinto ou verem uma telenovela boa, eu prefiro que vejam a telenovela!

– Pois, mas a qualidade das telenovelas também tem vindo a decrescer…

– Mas isso é outra história. E eu nem penso só na Gabriela, que nem sequer foi a melhor – não no sentido artístico, mas no sentido da mudança de mentalidades, de levantar as questões que se devem levantar. Não, eu falo de outro tipo de novelas, em que há temas que são extremamente importantes para as conversas das mulheres entre si, porque levantam problemas que a elas não lhes passam pela cabeça. Por tudo isso é que há a violência doméstica. Porque, ao mesmo tempo que elas vêm isso tudo, começam a fazer aquilo que em Portugal se chama «levantar cabelo», ou seja: o homem diz, «faz isto», e elas perguntam, «mas faço isto porquê?» É assim que nasce a maior violência doméstica, porque as mulheres, hoje, não estão para aguentar aquilo que aguentavam dantes, não estão mais para serem criadas dos homens, que é o termo. Obviamente que, como as mentalidades não mudaram, o homem enfurece-se. Está à espera de uma e aparece-lhe outra, ele quer e ela não obedece, e ele bate.

– O velho argumento da força para quem não tem argumentos…

– O argumento da força, sempre. E aí ele bate, e há uma tradição fortíssima de espancamentos em Portugal: já bateu o pai dele, já bateu o avô, e o trisavô. E depois as pessoas andam muito frustradas, os homens também andam muito frustrados. Como eles têm o hábito de exercer a violência e o poder sobre as mulheres, se são humilhados nos empregos, ou chateados na rua, ou se o clube deles perde, quem paga são elas, em casa. É a história do homem que bate na mulher, a mulher que bate na criança, a criança que bate no cão. É isto: é sempre o mais fraco que vai apanhando com as frustrações pessoais de cada um. As mulheres, apesar de tudo, são as que pegaram mais na bandeira e foram para a rua. Não no sentido literal, mas no sentido simbólico do termo, porque se alguém mudou neste país foram as mulheres. Apesar de tudo, e apesar de as jovenzinhas hoje voltarem a achar que é crime fazer um aborto nem que a mulher tenha sido violada e tenha engravidado dessa violação, esse tipo de coisas. Ainda há pouco tempo vi, no telejornal, um caso de três mulheres muito jovens, já não sei em que país, que estiveram três anos enclausuradas por um homem, numa cave, violadas permanentemente durante todo aquele tempo, uma teve dois filhos ali! Isto passa-se ainda hoje no mundo, as mulheres continuam a ter um papel subalterno, continuam a ser violadas, violentadas, espancadas. Em Portugal as coisas podem não ser tão drásticas como isto, mas há um quotidiano de pequenas violências, de pequenas faltas de respeito, de pequenas graças grosseiras… Há uma grosseria portuguesa que os homens usam em relação às mulheres, continua a ser aquela anedota que está sempre por detrás, os homens quando falam das mulheres têm uma graça que não tem graça nenhuma.

– As mulheres continuam a ser «as gajas»...

– Continuam a ser as gajas, sim. E o que me desagrada nestas novas mulheres são coisas como faz a Margarida Rebelo Pinto no Sei Lá, que começa com uma frase do género: «Há três meses que não dou uma queca». Isto, para mim, é a grosseria masculina. Que algumas mulheres gostam de imitar, acham que é uma forma de evolução. Não é, estão enganadas, assim continua tudo na mesma. Porque o que as feministas pretenderam sempre não foi alternar papéis, não foi ficarem sentadas na sala a ler os jornais enquanto os homens iam lavar a loiça, não foi passarmos nós a usar os homens. Não é nada disso, não é a alternância de papéis que a gente quer! Nem é o modelo da Thatcher. Não são essas mulheres que nós queremos na política, nem é essa política que queremos. Muitas mulheres chegam aos lugares de topo porque são tão parecidas com os homens, tão parecidas que não lhes fazem mossa nenhuma. Não é isso que se quer. Nós somos diferentes, somos realmente diferentes, e a luta pela diferença só se faz depois de ter feito a luta pela igualdade. E, felizmente, a mim coube-me, numa vida só, viver as duas coisas.

– Se calhar, a diferença entre a esquerda e a direita, em termos de mentalidades, é capaz de não ser muito grande…

– Não, não é. Esse tipo de mentalidade verifica-se de um lado e doutro.

– Aliás, historicamente, mesmo na resistência ao fascismo, em Portugal, por regra os homens eram «os militantes» e as mulheres «as companheiras»…

– Precisamente. Eles eram os lutadores, elas eram a sombra, estavam nas casas do Partido a fazerem o papel das empregadas: a cozinharem, a limparem, a manterem a roupa limpa para eles depois poderem ir lutar contra o regime fascista. Claro que podes dizer-me que havia mulheres como a Alda Nogueira, como a Zita Seabra. Havia, sim senhora, mas eram meia dúzia. E ainda são: a meia dúzia das mulheres dos partidos, nós hoje continuamos a ignorar os seus nomes. São rostos, são sombras, é aquela frase horrenda que os homens acham que é um grande elogio, mas que eu odeio: que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Obrigada, mas eu não quero estar atrás de ninguém. Prefiro não ser uma grande mulher, mas ter a minha própria identidade e o meu próprio rosto. Quando o Mário Soares voltou do exílio, depois do 25 de Abril, perguntaram à Maria Barroso, que fazia a ponte entre cá e lá: «Então, deve estar muito satisfeita…» E ela disse: «Antes de mim, ouçam o meu marido.» Só as mulheres é que pensam coisas destas, eu nunca vi um homem pensar desta maneira. Não pode ser! Antes de mim, ouçam o meu marido? Não. Eu não sou o meu marido, eu sou eu. Agora vamos ver qual era a minha identidade num país como este, em que as mulheres estavam no quarto das crianças, na sala e na cozinha. Esta era a cartilha do fascismo. Agora temos liberdade, e por isso responsabilizo mais os homens e responsabilizo mais as mulheres. E responsabilizo estas jovenzinhas, por exemplo, que entram para o jornalismo e acham que aquilo foi sempre assim, que sempre houve mulheres nas redacções. É mentira! No 25 de Abril, as mulheres não entravam, sequer, na redacção d’O Século. Tinham que chamar o contínuo para falar com os homens que lá estavam. E eu estive dois ou três anos n’A Capital, onde estava o Maurício de Oliveira, que não deixava as mulheres estarem nas redacções onde ele estivesse como Chefe de Redacção. Tínhamos um lugar numas salinhas lá dentro, numas secretariazinhas, e depois íamos levar as coisas à redacção e saíamos rapidamente porque não tínhamos direito a estar lá. E eu tenho menos três anos de sindicalização que o Luís [de Barros] porque sou mulher. Saíamos todos os dias da mesma casa e entrávamos no mesmo jornal, mas ele ia para a redacção, era jornalista sindicalizado, e eu não. E até trabalhava há mais anos, já tinha estado no Diário de Lisboa e no República! Ou seja: tenho menos seis ou sete anos de sindicalização, pura e simplesmente porque sou mulher. E as meninas que entram hoje nos jornais julgam que isto foi sempre assim, e não é verdade. Foi preciso muito trabalho e muita luta, e devem às feministas o lugar que têm hoje na sociedade. Assim como as feministas devem às sufragistas…

– Um movimento de que se fala pouco e quase sempre como um fait-divers…

– Completamente! Ninguém fala delas a não ser para ridicularizar. Elas sempre foram ridicularizadas, como são as feministas, porque não há coisa que destrua mais que o ridículo. E então aparecem aquelas mulheres gordas, de guarda-chuva na mão, a baterem nos homens pequeninos! Isto eram as caricaturas do princípio do século XX. Só que depois começaram a aparecer as Jane Fondas, as Jodie Fosters, lindíssimas, a dizerem-se feministas, já ninguém pode aceitar essa imagem das feias. Mas ridiculariza-se de outro modo. Eu posso dizer que a minha carreira literária foi extremamente prejudicada desde a altura em que comecei a dizer: «eu sou feminista, não estou de acordo com isto, eu quero aquilo»…

– Até porque as ideias feministas, para a própria esquerda, não eram muito valorizadas…

– Pelo contrário: eram tidas como ideias burguesas e pouco de esquerda. Em Portugal, o Partido Comunista, por exemplo, sempre achou que isto eram coisas de burguesas, assuntos de lana caprina, coisas de mulherzinhas. A sexualidade, o que é isso? Eu sou uma mulher de esquerda, mas a verdade é que a esquerda é extremamente puritana, é estranhíssimo! Até porque custa-me muito mais ver um homem de esquerda dizer certas coisas do que um homem de direita…

– E um homem de esquerda diz porquê?

– Porquê? É incrível, não é? Estive quase quinze anos no Partido Comunista, e sei a luta que tive lá dentro, até porque era Chefe de Redacção de uma revista de mulheres do Partido. Foi tremendo! Tudo o que dizia respeito à sexualidade não podia passar, não se devia falar, e eu, que nunca deixei de dizer que era feminista, fui sempre extremamente hostilizada, houve sempre uma luta surda – e para o fim já não surda – exactamente porque era feminista. As feministas são sempre tidas pela esquerda como reaccionárias, esquecendo-se completamente que as lutas operárias estiveram sempre a par com as lutas feministas. Sempre. E as lutas anti-racistas também, foram três lutas sempre a par. E as feministas sempre estiveram integradas nas lutas contra o racismo e queriam integrar-se nas lutas do operariado, permanentemente. Mas de vez em quando eram «cuspidas» pelas lutas anti-racistas e pelas lutas dos operários… E as mulheres eram sempre mais exploradas, ganhavam muito menos, eram uma mão-de-obra muito mais explorada. Ainda hoje se diz que o ser humano mais explorado do planeta é uma mulher negra operária. Porque é mulher, porque é negra e porque é operária. E, depois, nós olhamos para os partidos políticos, para a Assembleia da República, e só vemos homens! E depois começa a falar-se em quotas. Eu não gosto de quotas, mas se tem de ser, paciência. Se não se consegue de outra forma, então que seja assim. E não me venham dizer que as mulheres têm medo de subir pela qualidade, pelo talento, não! As mulheres, por mais talento e mais qualidade que tenham, encontram sempre uma parede à frente que não as deixa sair da cepa torta.

– Uma mulher tem de ter mais talento para se medir com um homem?

– Tem, ainda hoje continua a ser assim. A mulher tem de ser três vezes melhor para ser tão boa quanto um homem. Por isso é que, se calhar, mesmo não gostando, temos de ir para o sistema de quotas. Isto é como o 8 de Março: eu não gosto nada disso, mas nesse dia estou sempre disposta a fazer isto ou aquilo, ou a dar uma entrevista. Então, se nunca se fala dos problemas das mulheres a não ser uma vez por ano, vamos lá aproveitar essa vez, não há outra coisa a fazer. E o 8 de Março existe por causa de quê? Das mulheres burguesas que estavam dentro de casa a fazer tricot? Não. Por causa da luta das operárias que enfrentaram o poder e foram queimadas dentro das fábricas pelos patrões. Estavam em greve e foram fechadas lá dentro, e isso eu respeito na efeméride. Quando digo que não gosto do 8 de Março é por ainda ser preciso haver um dia dedicado às mulheres, porque continuam a ter condições inferiores às dos homens. Isto é assim aqui, mas ainda é pior noutros sítios: nos Estados Unidos, a Constituição não reconhece a igualdade do homem e da mulher, e pouca gente sabe isto. Diz-se que os Estados Unidos são uma maravilha, que é uma sociedade matriarcal, e as mulheres nem sequer são reconhecidas como iguais, em direitos e deveres, aos homens! E depois acusam-nos de sermos feministas radicais, qualquer mulher que luta muito pela sua igualdade é vista como uma feminista radical e feroz – quando eu sou tudo menos isso. Só que neste pequenino Portugal alguém pode achar que eu sou uma mulher feroz. Os homens têm medo dos «radicalismos» da Teresa Horta.

– Mas tens consciência de que essa imagem esteve colada a ti durante muito tempo?

– Completamente! E afectou imenso até a minha carreira literária. Mas a verdade é que eu não estou a lutar por mim, estou a lutar pela felicidade das mulheres. É isto que respondo quando me perguntam porque é que sou feminista. Porque considero que o homem e a mulher nascem para serem felizes, essa é a única razão do nascimento: nós temos direito a ser felizes. Há um dito popular, terrível: «Casar é parir, sofrer e chorar.» Não, a vida das mulheres não pode ser isto. Não pode. E há outra frase, completamente portuguesa – e que nem sei como traduzir para outra língua – que se costuma dizer para designar muita gente: são mais que as mães. Porque toda a menina pequenina é uma mãe em potência. Porque nós só temos valor se somos mães, e enquanto mães, porque essa é a razão da nossa existência, em Portugal, é esse o nosso destino feminino. Não poder ser. É por isso que eu sou feminista. Isso não é felicidade para ninguém: gosto muito de ser mãe, tenho um filho, e sou uma avó babada, mas a verdade é que a minha vida vai muito além disso. A vida das mulheres tem de ir muito além disso, como as dos homens. Eles não nasceram só para ser pais. Ninguém diz «são mais que os pais», porque um homem pode ser pai ou pode não ser. Mas a mulher, ou é mãe ou não é. Isto está por resolver no nosso país, apesar do 25 de Abril.

– E também a participação das mulheres na vida política, e na vida pública em geral…

– É pouca e é parca…

– Pouca, parca, e muitas vezes imitando os homens naquilo que nós temos de pior. E nem é preciso ir buscar os exemplos extremos da Golda Meir ou da Thatcher, a quem o Reagan chamava «o melhor homem de Inglaterra»…

– Lá está: porque para chegarmos lá temos de ser iguais aos homens, é assim que está estabelecido. Por isso é que eu admiro muito a Maria de Lurdes Pintasilgo, que chegou a Primeira-Ministra e não deixou de ser mulher. Ninguém sabia como lhe chamar, os jornais tanto diziam «o Primeira-Ministro» como «a Primeiro-Ministro», havia uma confusão, ninguém sabia como é que havia de designar a Maria de Lurdes. E ela mandou fazer os seus cartõezinhos pessoais em que estava escrito «Primeira-Ministra», e nunca abdicou disso. Ela fazia os seus discursos, que acabavam com um poema, sempre, era uma coisa muito diversa. O que é que as pessoas diziam? Que a Maria de Lurdes não tinha consistência, que ninguém a levava a sério. Porquê? Porque era mulher e porque nunca deixou de o ser, embora fosse Primeira-Ministra. É como aquelas mulheres que estão no Parlamento Europeu e que vieram da Escandinávia, que têm comportamentos estranhíssimos para a maioria das pessoas, porque nunca deixaram de ser mulheres: há tempos houve uma que, por causa da questão das pescas, de repente desatou a cantar uma canção de pescadores, trá-lá-lá, e toda a gente riu. Elas fazem política no feminino, são mulheres, não imitam os homens. Isto não é uma coisa estranha que está na nossa cabeça utópica. Não, existem mulheres assim, mas não são elas que depois ficam nas nossas cabeças. As que ficam são as Thatchers, as Goldas Meir, as Manuelas Ferreira Leite, as Leonores Beleza – que, estranhamente, foi advogada da Comissão da Condição Feminina: depois do 25 de Abril, aparecia todos os dias na televisão, depois do telejornal, a ler pedaços das leis que diziam respeito às mulheres e tinham mudado: o direito a salário igual para trabalho igual, poderem ir com os filhos para o estrangeiro sem pedir licença ao pai, tudo isso. E, de repente, vai para um partido político, começa a crescer, começa a ficar igual, igual, e quando chega a ministro tira o leite às crianças, nas escolas! É inadmissível. Porque ela sabe, enquanto mulher, ela tem o conhecimento das necessidades das crianças: pode-se tirar tudo, menos o leite das crianças. São coisas básicas, que eles esquecem para chegar ao topo, para poderem ir para ministro. Ela não é ministra, é ministro.  

– Isso quer dizer que a sensibilidade política se sobrepõe à sensibilidade feminina?
 
– A sensibilidade política é também uma coisa masculina. Neste mundo em que os parâmetros são masculinos, inventados pelos homens, de vez em quando eu sinto-me como se vestisse um fato demasiado largo, não diz respeito a mim, à minha sensibilidade, àquilo que eu considero muito importante que as pessoas meditem. É que, sendo o homem e a mulher tão diferentes um do outro, penso que não é por acaso que a natureza faz uma coisa destas. E penso que, mantendo-se cada um homem e mulher – porque eu não quero que os homens se efeminizem e que as mulheres se virilizem – é preciso que as duas metades façam um inteiro, que terá muito mais equilíbrio do que se forem só as mulheres ou só os homens a mandar. Tem de haver harmonia na vida, e isso só se consegue com o equilíbrio entre o feminino e o masculino. E aí, sim, eu aceito que as mulheres são melhores em determinadas coisas, e os homens noutras. E quando as coisas em que as mulheres forem melhores não sejam diminuídas e tornada inferiores porque são capacidades das mulheres, e as dos homens vistas como superiores porque são capacidades dos homens, quando isso já não acontecer, acho óptimo que os homens façam umas coisas e as mulheres outras, porque são todas importantes. Se isto é utópico… Talvez seja, o sonho é sempre uma questão utópica. Mas de vez em quando os sonhos realizam-se.

– O 25 de Abril realizou-se.

– O 25 de Abril era uma utopia para nós, e realizou-se. Eu, aos 14 anos, andava a distribuir papéis da campanha do Norton de Matos na rua. E toda a gente me dizia – as pessoas que sabiam, porque o meu pai não sabia: «Que loucura, isto sempre foi assim, e há-de ser sempre assim.» Não. Nem sempre foi assim, nem há-de ser sempre assim. Sempre acreditei nisso. E desgraçadas das pessoas quando deixarem de acreditar que os seus sonhos se podem tornar realidade, não é? O 25 de Abril é a demonstração de que o grande sonho se pode tornar realidade. Mas não podemos ficar de braços cruzados sem fazer nada, porque o sonho não cai do céu, e não acredito que a Nossa Senhora de Fátima faça aparecer o sonho realizado de cada um de nós, temos de lutar pelo nosso sonho. E o meu grande sonho é de liberdade para os homens e para as mulheres. E portanto sou feminista, porque não gosto de um mundo em que uns têm direito a umas coisas e outros têm direito a outras, em que uns são mais iguais do que outros, em que uns têm direito a serem mais felizes por motivo de cor, de raça, de sexo, ou seja do que for. E como a minha luta é a luta da liberdade, eu lutarei sempre para que a mulher tenha a liberdade de poder ser tão feliz quanto o homem, de ter a vida que quer e de por isso não ser penalizada. É isso que eu quero, é uma sociedade de ajuste, de nivelamento por cima entre os sexos. É isto.

– No fundo, entre as pessoas...

– Entre as pessoas, homens ou mulheres. Não quero é que as mulheres achem que nascem para ser infelizes. Ainda hoje as mulheres ficam muito satisfeitas quando têm um filho porque acham que cumprem a sua obrigação. E eu tive um filho…

– E ficaste satisfeita?

– Fiquei, muito. Mas o meu pai telefonou-me, e disse-me: «Cumpriste a tua obrigação, deste um rapaz ao teu marido.» E era professor na Faculdade, um homem culto, etc., mas achou que eu tinha feito o que se esperava de uma mulher: dar um filho varão ao marido. É a mesma coisa que dizer: «A tua mãe não cumpriu a obrigação dela, porque teve uma rapariga.» Como é que é possível? Isto passou-se em 1968, quando nasceu o meu filho, não foi assim há tantos séculos. E não estamos a falar da Índia, nem estamos a falar no Irão, estamos a falar de Portugal!

– No Antigo Testamento está escrito que as mulheres ficavam mais «impuras» quando tinham uma rapariga do que quando tinham um rapaz!

– Exactamente. E na Índia estão proibidas as ecografias porque, quando elas sabem que vão ter filhas, a família do marido rejeita, exigem que elas abortem. E os maridos também. Isso ia dar um desconchavo completo da população, daqui por uns anos. A Índia ficava um território masculino, deixavam de nascer crianças, era uma coisa de loucos!

In Contas à Vida | Ed. Sete Caminhos | 2005