Luís Filipe Costa

Luís Filipe Costa
Jornalista e realizador de televisão
Tinha 38 anos em 25 de Abril de 1974 e vivia em Lisboa

«Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas.» A voz grave e quente do locutor de serviço no Rádio Clube Português a partir das oito da manhã do dia 25 de Abril de 1974 nunca mais me saiu da cabeça. Historicamente foi o segundo a dar voz ao movimento dos capitães, mas para a maioria dos portugueses ele foi a voz dos revoltosos nesse dia glorioso. Joaquim Furtado, a quem coube ler o primeiro comunicado do MFA, estava de serviço na madrugada e foi rendido por Luís Filipe Costa depois do alvorecer.

Assim, todos os que só pela manhã se deram conta do que estava a passar-se – e foram a maioria – guardaram na memória aquela voz, já então familiar e que revelava uma singular capacidade para nos juntar em volta do aparelho de rádio. Porque nessa altura ouvia-se rádio. E fazia-se rádio, de um modo apaixonado como há muito não se faz, ou pouco se faz. Para ele, o 25 de Abril foi uma festa em que participou sem poder estar lá, no Terreiro do Paço e no Carmo, onde as coisas aconteciam. Até que, ao fim do dia, arranjou maneira de se libertar do estúdio e vir para a rua, reportar a revolução em directo, que é o melhor de tudo. Guarda desse tempo uma memória apaixonada, de que deu conta em dois romances fundamentais para quem quiser entender o que foram os anos quentes e os que se lhes seguiram: A Borboleta na Gaiola, que publicou em 1984, e Agora e na Hora da Sua Morte, com data de 1988. Também fez filmes, reportagens e documentários.

Pelo meio conheceu algumas injustiças, a menor das quais não terá sido a polémica que envolveu a realização televisiva, por ele assinada, do derradeiro concerto de José Afonso no Coliseu dos Recreios, posta em causa por quem tinha a obrigação de não o ter feito – porque todos sabiam da competência, dedicação e empenhamento de Luís Filipe Costa naquele momento, irrepetível e emocionalmente arriscadíssimo.

Talvez por essas e por outras, nos últimos anos remeteu-se a uma descrição ainda maior do que aquela que lhe conheço desde que o conheço – e já lá vão muitos anos e muitos lugares. Diz que não tem nada para dizer, mas eu não acredito. Acho que ele só precisa mesmo é de alguma coisa que lhe acenda novamente o lume e o faça voltar a escrever. Ou a filmar. E algo me diz que um dia destes vamos voltar a saber dele, mesmo que não volte a haver outra revolução.

 – Foste uma das vozes do 25 de Abril, mas nestes últimos anos, de alguma forma passaste a uma certa penumbra. Meteste-te lá, foste metido, deixaste que te metessem? O que é que aconteceu?

– Aconteceu um pouco de tudo isso. O caminho foi desbravado por eles, mas eu, digamos que enveredei por ele de modo consciente. Sabia que ao nível da realização de filmes, sobretudo filmes para televisão, era muito difícil fazer qualquer coisa nesta altura. Mas há também uma questão muito pertinente: eu não tenho nada para dizer a ninguém neste momento. E portanto, se estivesse a falar, era para fingir que tinha alguma coisa ainda para dizer. E a verdade é esta: eu não tenho nada para dizer seja a quem for.

– Isso é estranho, vindo de uma pessoa que, no próprio 25 de Abril, nos disse que o país estava a mudar, que havia uma revolução que estava a ser feita. Porque é que deixaste de ter alguma coisa para dizer? Foi porque a revolução se transformou em evolução?

– Talvez um pouco. Mas há também as circunstâncias: a actualidade mundial confunde-me, embora eu continue com grandes certezas, mas estou confuso a respeito de algumas coisas, os percursos da gente da minha geração… E tenho medo de enveredar por campos que não quero, de me pôr a olhar para o umbigo e coisas assim que efectivamente não me interessam, desgostam-me mesmo.

– Quanto a mim, isso é fruto do desencanto: o 25 de Abril evoluiu numa direcção que hoje provavelmente também te desgosta…

– Naturalmente. Eu acho que Portugal perdeu uma oportunidade histórica que não perdeu na altura dos Descobrimentos, como não perdeu em 1383. Esta abortou a meio. Tínhamos o caminho, enfim, pelo menos apontado para nos tornarmos um país muito especial no contexto universal, mas acabamos por perder a oportunidade e isso, evidentemente, desgosta-me. Porque sinto que este país tem uma grande propensão para adormecer. Acho que Portugal, os portugueses adormecem profundamente durante séculos. Depois acordam exactamente para fazer os Descobrimentos, para fazer a revolução de 1383, para fazer o 25 de Abril, que espantou o mundo. Eu tive a oportunidade, e tu provavelmente também, de fazer algumas coisas no estrangeiro nessa altura e lembro-me de ter verificado in loco na França, na Bélgica, em vários lados, como as pessoas por um lado se assustavam, mas como por outro se alegravam com o que se passava em Portugal. E sobretudo como se surpreendiam com este pequeno país, aqui assim nesta zona da Europa, a fazer uma coisa que não passava pela cabeça de ninguém!

– A Revolução dos Cravos ainda hoje é uma referência no estrangeiro, tenho constatado isso quer na Europa quer na América Latina. Em todo o caso, há uma coisa que ninguém pode tirar a quem esteve no 25 de Abril, e que se pode traduzir com as palavras de um pintor cubano meu amigo que viveu intensamente a revolução cubana. Dizia-me ele, no final de uma conversa onde havia também muitos desencantos: «Mas nós voámos!» Sentes isso?

– Sim, sim, sim! Aquele 1º de Maio ninguém nos tira! O susto que pregámos a algumas pessoas, o gozo que tivemos, a festa que fizemos – isso realmente ninguém nos tira. Nas comemorações dos trinta anos do 25 de Abril tive a ocasião de ir a várias escolas, e uma das coisas que me deslumbra nestes contactos com os jovens das escolas, é verificar que alguns deles descobrem a grande generosidade que esteve na génese da revolução. Como tu dizes, na maior parte do mundo, quando se fala de Portugal fala-se da festa que foi a revolução portuguesa, muito mais do que em Portugal. Nós perdemos a dimensão do que significava a festa que vivemos.

– Dizias há pouco que os portugueses de vez em quando acordam. Nós lembramo-nos de toda aquela gente que esteve nas ruas no 25 de Abril, de repente Portugal ficou cheio de antifascistas, e muitos deles se calhar uma semana ou quinze dias antes estavam a aplaudir o Marcelo. Será que os portugueses acordam, ou são acordados?

– Eu acho que, infelizmente, precisamos sempre de uns líderes. Por todo o lado onde tem havido transformações tem havido sempre algumas pessoas a puxarem carroças às vezes com rodas bem quadradas.

– Em Portugal temos muitas vezes uma certa tendência para uma espécie de auto-apoucamento militante: somos os pobrezinhos, os outros sabem sempre mais e são melhores do que nós – que é uma coisa que não se passa com os espanhóis, por exemplo. E no entanto nós fizemos uma coisa da dimensão do 25 de Abril, que espantou o mundo. Porque será que somos tão pouco auto-confiantes? Como é que tu olhas os portugueses?

– Eu olho os portugueses como vítimas de quatrocentos anos de Inquisição e de cinquenta de salazarismo. Esses dois terríveis, temíveis, medonhos fenómenos fizeram com que, entre outras coisas, estejamos muitas vezes à espera que nos ponham uma prancha por onde possamos escorregar rumo ao futuro.

– Nos últimos anos acho que a espera foi mais do dinheirinho da Europa, não é? Virá daí o adormecimento?

– Pois! Há sempre uma «providência alemã» que se estende a mão e que nos ajuda…

– Mas, ainda assim, parece-me evidente que o 25 de Abril valeu a pena…

– Claro, claro, isso não se discute. Eu tenho um filho que naquela altura tinha 13 anos e que, pelo andar da carruagem, estava muito a tempo de ir parar à guerra! Eram só mais cinco anos. É uma das coisas de que me orgulho, é ter participado na Revolução e ter contribuído para que o meu filho não fosse matar ou ser morto numa guerra perfeitamente injusta, que não tinha solução, e com a qual ele não tinha nada a ver.

– Hoje, a normalização do país é uma realidade, as promessas de Abril estão cada vez mais longe. O que é que se pode fazer? Qual é o caminho?

– Não sei. Se calhar, se soubesse, se tivesse certezas, não estaria neste remanso que tu invocaste no começo desta conversa. Não faço a mínima ideia como é que podemos sair disto. Li uma notícia aqui há dias, houve umas eleições parcelares no Minho, num sítio onde foram despedidos mais não-sei-quantos trabalhadores, e foram ganhas pela direita. Como é que essas coisas se harmonizam na cabeça das pessoas? A direita está a despedir pessoas a todo o momento, ou pelo menos patrocina os patrões que despedem trabalhadores; e no entanto os trabalhadores, que serão com certeza a maioria da gente daquela povoação, votaram na direita que os despede. Como «mudar» essas cabeças?

– Será que a borboleta se meteu na gaiola? [risos]

– Olha, não sei, é isso que me atrapalha. E sou um homem atrapalhado neste momento, falando num bom português ou, como diria o Fernando [Assis Pacheco], num bom lisboeta…

– Eu já ouvi alguns amigos nossos dizerem que, se tivessem menos uns anos, iam-se embora daqui, iam para outro país. Tu alguma vez pensaste nisso?

– Não, nunca tive essa necessidade. Sou capaz de o ter dito como desabafo, como a maior parte dos teus e meus amigos, terão dito. Mas lembro-me que uma das frases que foi importante na minha adolescência, uma frase do Alves Redol: «A aventura é ficar.» Salvo erro, quem ma disse foi o Virgílio Martinho. Eu ainda era muito miúdo, mas como tinha um primo com mais cinco ou seis anos do que eu, com treze anos comecei a conviver, calcula, com o que restava dos surrealistas em Lisboa: o Virgílio, o António José Forte, conheci essa gente toda, e creio que foi através do Virgílio Martinho que ouvi essa frase do Redol. Foi uma das que me marcou, como mais tarde uma outra do Hemingway: «Eu nunca estive doente, só estive ferido!». Talvez tenha umas ideias feitas que tiveram importância no meu percurso. Mas não me arrependo de nada. Acho que realmente era aqui que eu devia fazer aquilo que tinha a fazer. Foi pouco, mas enfim, meti o pauzinho na engrenagem.

– Fizeste a tua parte?

– Fiz.

– E se amanhã tivesses que dar a voz a outro 25 de Abril?

– Ia já, a correr! Da outra vez, lembro-me, foi aqui neste quarto, a minha mulher não estava, quando um amigo me telefonou a perguntar o que é que se passava com o Rádio Clube. Porque eu não sabia: saí à uma da manhã de serviço, fui visto na saída pelos oficiais que iam ocupar o Rádio Clube Português e que já estavam lá defronte, em carros, e vim para casa. Estava a ler um livro, na cama, quando um amigo me telefonou, e então liguei para o Joaquim Furtado. Foi uma conversa críptica, porque não sabia ainda para que lado é que aquilo pendia, e perguntei-lhe:
«Joaquim, passa-se alguma coisa?»
«Sim.»
«O quê?»
«Bom.»
«Não podes falar?»
«Não.»
«Está gente ao pé de ti?»
«Está.»
Até que eu acabei por lhe pedir para perguntar se podia ir – não sabendo se era um golpe do Kaúlza ou não. Eles disseram que sim, e fui. Mas antes de me levantar da cama, lembro-me que estive para aí um minuto a tremer e a pensar: «onde é que me vou meter?» Com medo. Mas fiz como a Joana d’ Arc: gastei todo o medo nesse minuto, gastei todo o que tinha, e fui. Mas, desta vez, não ia precisar do minuto, ia mesmo logo, a correr. Desta vez não precisava nem de um minuto.

– Pronto. Já está.

– Acabou?

– Se tens mais alguma coisa para dizer…

– Tenho. Queria só dizer que me parece que, desta vez, não vamos levar tanto tempo a acordar…

In Contas à Vida | Ed. Sete Caminhos | 2005