Padre Mário de Oliveira

Padre Mário de Oliveira
Padre sem paróquia e jornalista
Tinha 37 anos em 25 de Abril de 1974 e vivia em Lourosa

Era capelão das tropas portuguesas na Guiné-Bissau, e nessa condição ousou pregar a Paz. Mas o tempo era de guerra, ainda que esta fosse uma guerra particularmente injusta. E Mário de Oliveira, o capelão pacifista, acabou com guia de marcha para a «metrópole», como então se chamava a Portugal continental. Não esteve mais de quatro meses no teatro de operações, mas foi o suficiente para perceber que, se queria espalhar a palavra de Jesus Cristo, teria de, como Ele, sujeitar-se à raiva e à incompreensão dos poderosos.

Ordenado presbítero da Igreja Católica em 5 de Agosto de 1962, Mário de Oliveira tinha sido até então coadjutor da Paróquia das Antas, professor de Religião e Moral nos Liceus Alexandre Herculano e D. Manuel II, no Porto, pároco de Paredes de Viadores, no Marco de Canavezes. Depois de expulso da Guiné, foi pároco de Macieira da Lixa, no concelho de Felgueiras. Aí continuou o seu apostolado pela Paz, e as suas homilias depressa começaram a andar de boca em boca, o que lhe valeu ser duas vezes preso pela PIDE e outras tantas julgado no Tribunal Plenário do Porto. A acusação era sempre a mesma, «subversão», tal como, quase dois mil anos antes, aconteceu com um certo nazareno.

A hierarquia católica não lhe perdoou a intromissão nas coisas terrenas, e sobretudo não lhe perdoou a coragem de afrontar o poder fascista, com que a Igreja sempre manteve relações privilegiadas. Como consequência, Mário de Oliveira foi afastado do ofício pastoral, e assim continua, mais de 30 anos passados sobre a restauração da democracia. Mas o ostracismo a que foi votado pelos seus pares não lhe quebrou a determinação, e em 1975 tornou-se jornalista profissional. Passou pelas redacções do República, do Página Um, do Correio do Minho, e actualmente dirige o Jornal Fraternizar, que ajudou a fundar em 1988.

Hoje como ontem, a sua voz permanece clara e incómoda. Íntegra como a coragem que demonstrou ao longo de toda a vida. Os vários livros que já publicou reflectem a mesma preocupação com o mundo e com as barbaridades que têm sido cometidas em nome de Deus. Que Fazer com esta Igreja?, Nem Adão e Eva, Nem Pecado Original ou Fátima Nunca Mais são alguns dos títulos que têm provocado alguma azia a bispos e cardeais. Mário de Oliveira, o Padre Mário da Lixa, padre católico sem templo nem altar. Que não lhe faz falta nenhuma.

– Três meses antes do 25 de Abril, o padre Mário estava preso, acusado de «actividades subversivas». Como viveu a revolução?

– Depois de duas prisões políticas em Caxias e outros tantos julgamentos no Tribunal Plenário do Porto, só podia viver a revolução de Abril 74 com emocionante alegria. Na manhã do dia 25, acordei em casa dos meus pais, em Lourosa, Santa Maria da Feira. Quando cheguei à cozinha, para o pequeno-almoço, liguei o rádio por notícias. Saiu-me aquela música em forma de marcha alegre, só interrompida pela leitura do comunicado do Comando do Movimento das Forças Armadas. Uma e outro foram de imediato interpretados por mim como sinais duma revolução para a liberdade. O meu coração ficou aos pulos, olhei a minha mãe e abracei-me a ela emocionado, enquanto lhe dizia: «Mãe, deve ter havido uma revolução libertadora no nosso país. Se assim for, nunca mais serei preso pela PIDE. Acabaram-se os sofrimentos por motivos políticos, quer para vós, quer para mim.» Felizmente, as horas e os dias seguintes confirmaram que assim havia sido. Por isso, a quem me queria ouvir, não me cansava de dizer: a verdadeira Páscoa, este ano de 1974, foi no dia 25 de Abril, não no dia em que o calendário a havia previamente fixado. Para mim, aquela foi a madrugada em que o nosso país nasceu como povo de povos e morreu definitivamente como império colonial. Respirei alegria e festa como nunca antes.

– A propósito, lembro-me de um livrinho editado por altura de uma das suas prisões, cujo título era uma pergunta: «Subversão ou Evangelho?» Era uma questão pertinente face à sua actividade de então?

– A questão era e é pertinente. O livro em causa contém as principais peças do processo do meu primeiro julgamento no Tribunal Plenário do Porto. Foi organizado e editado pelo meu advogado de defesa, o meu amigo Dr. José da Silva, então deputado com o Dr. Francisco Sá Carneiro e outros da chamada «Ala Liberal», na Assembleia Nacional. O título foi da responsabilidade do advogado. Na altura, o Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, chegou a sugerir, emocionado, um outro título: Evangelho no Pretório. O Dr. José da Silva achou a sugestão muito interessante e muito oportuna, mas não quis ir tão longe, porque entendia que a minha absolvição no Plenário do Porto tinha deixado furiosa uma certa direita católica no país. Um título tão afirmativo como o sugerido pelo Bispo D. António iria, certamente, acirrar ainda mais os ódios teológicos desses católicos do regime salazarista. Por isso, optou por um título mais humilde, em forma de pergunta. Mas a resposta à pergunta do título era óbvia para quem lesse as peças do processo que «faziam» o livro. Aliás, a própria sentença absolutória do colectivo de juízes apontou na mesma direcção. Contudo, o objectivo do advogado, com o título em forma de pergunta, não foi plenamente alcançado, uma vez que, poucas semanas depois dele ter aparecido, surgiu um outro livro, da autoria oficial de um tal Amadeu C. de Vasconcelos, cujo título afirmativo não deixava dúvidas da parte de quem vinha: Subversão, sim. Evangelho, não. Por mim, não fiquei lá muito surpreendido com esta reacção, ou não fosse verdade aquilo que diz o nosso povo: «O pior cego é o que não quer ver». Ou, dito ainda com mais propriedade: «O pior cego é o que não quer perder os seus inúmeros privilégios.» De resto, era também por aí que ia a tese da Pide contra mim: os agentes que me vigiavam e controlavam a minha actividade pastoral só viam subversão, lá onde eu só via Evangelho. Felizmente, o Tribunal Plenário do Porto teve o discernimento e a audácia de só ver Evangelho no exercício do meu ministério presbiteral e pastoral na paróquia de Macieira da Lixa. Foi por isso que me absolveu, ao abrigo da Concordata!

– Depois do 25 de Abril, o padre Mário continuou a ser «personna non grata» para boa parte da Igreja. Porquê?

– É que o 25 de Abril derrubou o regime salazarista, mas não mudou o sistema eclesiástico que tão escandalosamente o apoiou e canonizou. A hierarquia católica não foi sequer beliscada pelos que fizeram a Revolução. Ainda houve algumas tentativas por parte de certas assembleias-gerais de cristãs e cristãos que «exigiram» que os bispos de todas as dioceses do país resignassem, uma vez que todos tinham sido eleitos com o aval do regime salazarista deposto. Eram bispos do regime, do antes do 25 de Abril. Mas esta «exigência» moral nunca chegou a ter pés para andar. E nenhum dos bispos se incomodou muito com isso. Pelo contrário, depressa os bispos começaram a mostrar alguma arrogância em relação ao novo país que despontava e se manifestava nas ruas, nas empresas e nos quartéis. Por isso, a minha situação de presbítero identificado com a Revolução para a liberdade deixou de ter suporte junto dos bispos que sempre se haviam sentido confortados com o regime deposto e que passaram a sentir-se muito desconfortados, com a sua deposição. A sociedade civil olhava-me com simpatia e gratidão, pelo pequeno contributo que eu havia dado para a queda do regime, mas para a hierarquia e para os católicos de direita, eu era olhado cada vez mais como um «traidor», um «não-alinhado com a hierarquia», um «comunista», um «esquerdista», um «político». E a verdade é que nunca mais fui nomeado, até hoje, para qualquer ofício pastoral oficial. Fiquei com o estatuto de «padre vago», ou sem ofício pastoral, situação que eu aproveitei para me profissionalizar como jornalista, a fim de poder viver o meu ministério presbiteral totalmente de graça. O que ainda hoje acontece!

– Durante o PREC, assistiram-se a situações de crispação entre o poder revolucionário e o poder religioso. A Igreja não gostou do 25 de Abril?

– Quando falamos de Igreja, sempre haveremos de especificar de que Igreja falamos. Posso dizer que, duma maneira geral, a igreja hierárquica (os bispos residenciais e os párocos que funcionam como seus braços compridos nas múltiplas paróquias em que se divide cada diocese) não gostou do 25 de Abril. A igreja hierárquica sempre se identificou com o regime de Salazar, excepção feita ao conhecido Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que, a determinada altura do seu ministério episcopal no Porto, se demarcou de Salazar, mais do que do regime. É certo que a conferência episcopal saudou em comunicado o 25 de Abril, mas fê-lo com aquela habilidade diplomática em que é perita. Ao contrário, a Igreja-povo-de-Deus, em que já se inclui o conjunto dos fiéis, mulheres e homens baptizados, cantou e dançou a Revolução, em tudo quanto foi ocupações de casas vazias, comissão de moradores, comissão de trabalhadores, manifestações de rua, plenários de empresa, lutas de pescadores, trabalhadores rendeiros, sindicatos. Mas esta Igreja, numericamente grande, continua sem ter consciência da potência que tem e que é. E, por isso, é uma Igreja sem vez nem voz. Limita-se a ouvir os bispos e os párocos e a obedecer-lhes. E a contribuir financeiramente para a sustentação e bem-estar material de todos eles. Quando está nas lutas, praticamente nunca se assume como Igreja, apenas faz valer a condição profissional ou político-partidária dos seus membros. Chega por isso a parecer que a Igreja são apenas os bispos, os únicos, aliás, ou quase, que a própria comunicação social reconhece como tal.

– Tendo em conta o seu raciocínio, e contrapondo ao papel da Igreja em Portugal e na América Latina, por exemplo, podemos dizer que há várias igrejas dentro da Igreja?

– Podemos e havemos de dizer que há várias Igrejas dentro da Igreja. O mal não é esta pluralidade de Igrejas na Igreja. O mal é a uniformidade. Unidade da Igreja – «Creio na Igreja una», proclama o Credo – não pode confundir-se com unicidade nem com uniformidade. Há tanto mais Igreja, quanto mais plural ela for, como plurais são os povos e as culturas que fazem a Humanidade. Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja deixou de se auto-compreender como a Cristandade que infelizmente havia sido desde o século IV, com o imperador Constantino, para se auto-compreender como uma Comunidade de comunidades, uma Igreja de Igrejas. Por isso, o problema não é a pluralidade de Igrejas. O problema é a Igreja, em alguma ou em muitas das Igrejas que a constituem, deixar de ser fiel ao Evangelho de Jesus, deixar de ser obediente ao Espírito Santo, e converter-se numa religião mais, com sacerdotes como funcionários do religioso. O problema é a Igreja deixar de ser discípula de Jesus e «parteira» da Humanidade, para se converter em poder religioso e eclesiástico sobre as populações e os povos. O problema é a Igreja fazer aliança com os poderosos e os ricos, em lugar de viver incondicionalmente ao serviço do Reino ou Reinado de Deus dentro da História. Neste sentido, o papel da Igreja católica em Portugal, durante o regime salazarista, e o papel da Igreja em muitas partes da América Latina foi tão divergente, para não dizer tão antagónico, que qualquer observador minimamente atento, seria levado a pensar que não se tratava da mesma Igreja. E será sempre assim, enquanto a Igreja, em alguma das Igrejas locais em que ela misteriosamente acontece, deixar de ser o sal da terra e a luz do mundo, presença maiêutica ou libertadora no meio da Humanidade, para passar a ser unha-e-carne-com-o-poder-de-turno. Neste caso, mais do que falarmos em Igrejas distintas, haveremos de falar em traição, por parte de algumas Igrejas.

– O Portugal que temos hoje corresponde àquilo que imaginava para o país nessa altura?

–  O que eu possa ter imaginado o que viria a ser o país, passados estes anos sobre o 25 de Abril de 74, pouco importa. Nem eu hoje me lembro se cheguei a imaginar um qualquer cenário. Provavelmente, não. O que é importante para mim é que o país que hoje temos é incomparavelmente melhor do que era então. A Revolução acabou por se fazer carne da nossa carne, não ficou apenas em slogans. Hoje, somos um povo de povos, não somos um império colonial. Somos um povo muito mais secularizado, muito mais autónomo e independente das Igrejas e das religiões. O ateísmo é um fenómeno muito mais generalizado. E creio que continuamos a avançar a passos largos para uma sociedade que nasce e cresce fora das Igrejas, nomeadamente, fora da Igreja católica. O que, a meu ver e no ver do Evangelho de Jesus, é um dado positivo. Enquanto a Cristandade foi rainha – com o trono e o altar, a cruz e a espada sempre juntos – as populações e os povos foram sobretudo súbditos, vassalos, sem vez nem voz. Fomos um Portugal de pequeninos. Felizmente, o 25 de Abril cortou com este passado. Foi um Novo Começo. Nesta altura, ainda andamos à deriva em muitos aspectos, mas é melhor assim do que permanecer na situação de menoridade anterior. Vamos a caminho do que haveremos de ser. E isso é francamente positivo. Ousemos prosseguir, sem nunca ceder à tentação de olhar para trás, muito menos, de voltar para trás. Somos o que seremos. E, se já vamos a caminho, ao 25 de Abril 74 o devemos.

– Hoje, «sem paróquia nem altar», como faz para levar por diante o seu trabalho?

– Desde que me profissionalizei como jornalista e me vi na situação de padre ou presbítero da Igreja do Porto sem ofício pastoral, procurei abrir o meu próprio caminho eclesial fora do sistema eclesiástico, mas sempre dentro da Igreja de Jesus. Hoje, parece-me até que esta minha vivência é muito mais eclesial do que seria, se eu tivesse permanecido na condição de funcionário eclesiástico, como sucede com a generalidade dos meus colegas. Infelizmente, é isso que o sacramento da Ordem costuma fazer: funcionários eclesiásticos, ao incondicional serviço do sistema eclesiástico, na pessoa do funcionário eclesiástico-mor, o bispo residencial. Mas não é para isso o sacramento da Ordem. Na intenção do Espírito Santo que o faz acontecer na Igreja, o sacramento da Ordem destina-se a suscitar mulheres e homens que venham a ser, no hoje e aqui da Igreja e do mundo, outros Cristo, como Jesus, o de Nazaré, foi. Porque é de mulheres e de homens dessa têmpera, radicalmente libertadores, que a Humanidade carece, não de funcionários eclesiásticos! A verdade é que, a partir do momento em que me vi longe dos altares e dos templos, também me vi a ser cada vez mais presença fraterna e solidária entre os muitos católicos, mulheres e homens, que cada vez em maior número, deixavam e continuam a deixar de frequentar as paróquias. O mais curioso é que logo percebi que a Fé cristã jesuânica sempre se deu bem numa situação como a minha. Nunca devemos esquecer que também Jesus, o de Nazaré, sempre se deu bem longe das sinagogas do seu país e longe do altar do templo de Jerusalém. Não foi sacerdote, nem fez das suas discípulas e dos seus discípulos sacerdotes. Aliás, o Cristianismo de Jesus não é uma religião mais, entre as muitas religiões. É uma via ou caminho de libertação e de partilha que, se for percorrido até ao fim, nos humaniza e fraterniza. Deixei então de frequentar os templos e os altares, mas não deixei de frequentar as vidas concretas das pessoas, as suas casas e todos os outros locais frequentados por elas. Progressivamente percebi que o principal serviço de um presbítero, como o de um bispo, não é presidir aos cultos nos altares (coisa que faziam os sacerdotes dos cultos do paganismo), mas anunciar o Evangelho – Evangelizar os pobres – anunciar a Boa Notícia de Deus que um dia pudemos ver em plenitude no ser humano histórico, Jesus de Nazaré. E é esse serviço ou ministério que procuro realizar, com escândalo para muitas e muitos que continuam a pensar que um padre existe para queimar o seu tempo no altar, em missas em série, em actividades eclesiásticas que, na maior parte dos casos, em lugar de contribuírem para humanizar as populações e os povos, contribuem para alienar e oprimir quem insiste em as frequentar com regularidade. O simples facto de hoje já existirem pequenas comunidades cristãs de base, alternativas às paróquias territoriais (felizmente, também contribuí para o nascimento de algumas delas) está a dizer que a Igreja de amanhã só poderá ser uma Igreja de pequenas comunidades de iguais e de irmãs/irmãos, por isso, sem clero e sem qualquer hierarquia, para lá da do serviço maiêutico ou libertador. Hoje, a minha maneira de viver o ministério presbiteral ainda é olhada de soslaio e até com escândalo, por parte de muitos católicos tradicionais, mulheres e homens, mas num futuro não muito distante já será prática corrente. Quando a Igreja deixar efectivamente de ser Cristandade ou poder-com-o-poder-dominante, e for apenas presença-fermento na Humanidade; quando a Igreja perder de vez a excessiva visibilidade que hoje ainda tem como super-estrutura eclesiástica, e humildemente estiver a contribuir, como fecunda presença escondida, para uma maior visibilidade da Humanidade, progressivamente autónoma e protagonista. Por mim, já vejo e experimento este dia. E por isso posso dizer que sou um homem realizado e em paz.
 
– «Fátima nunca mais» é o título de um livro seu. Fátima foi uma fraude? Então o que é que aconteceu em Fátima em 1917?

– Fátima foi uma fraude. E continua a ser uma fraude. As chamadas aparições da senhora de Fátima são o que há de, cultural e teologicamente, mais parolo e parvo no nosso país. São o obscurantismo em acção. São o exemplo mais acabado do Portugal de pequeninos e de analfabetos que o catolicismo português produziu, em união com a monarquia, desde a fundação de Portugal, ao tempo de D. Afonso Henriques, o qual para ser reconhecido como rei pelo papa de então, teve que pagar quatro onças de ouro. Em Fátima, nada nos lembra Maria, a de Nazaré, a mãe carnal de Jesus. Tudo o que lá se faz é pura idolatria. É puro paganismo, travestido de cristianismo. Ou, se quisermos falar com mais propriedade, é Cristianismo pagão. Não tem nada a ver com o Cristianismo de Jesus, o de Nazaré. As pessoas geralmente não sabem que antes de Jesus, já tinha havido muitos Cristos. A novidade das comunidades primitivas que estão na origem da Igreja é que elas atreveram-se a reconhecer em Jesus de Nazaré, o Crucificado pelo Templo e pelo Império, o Cristo, o Libertador, o ser humano por antonomásia. Em mais ninguém. E foi assim que nasceu o Cristianismo de Jesus, ou o Cristianismo jesuânico. Em Fátima, o que há, desde 1917, é puro paganismo. Nada do que lá se faz tem as marcas de Jesus, o de Nazaré. Tem apenas a marca da mítica Deusa virgem e mãe dos cultos do paganismo mais primitivo, quando as sociedades foram matriarcais, e que, desde então, nunca mais descolou do inconsciente colectivo dos diversos povos do mundo, também do povo português. As chamadas aparições de 1917, de Maio a Outubro, são um tosco teatro montado pelo clero de então para tentar desacreditar a República de 1910 e que vingou como «aparições», graças ao obscurantismo e ao terror do inferno que o clero da altura, coadjuvado pelos padres da Santa Missão, explorou até ao delírio e à demência quase colectiva. Era nesse terror que viviam todos os dias as populações das aldeias, também a de Fátima. Acha que exagero? Basta vermos como tudo aquilo foi montado. Nada acontece por acaso. Antes de se iniciar o espectáculo, já se conhecia o guião. Seria apenas de 13 de Maio a 13 de Outubro. Apenas seis vezes. Sempre aos dias 13, à mesma hora. Fez-se constar que a senhora vinha do céu e era posta a falar a três crianças, previamente, escolhidas da mesma família. Mas ninguém da população poderia ver a senhora, nem ouvir o que ela dizia. Apenas as crianças. E destas, nem todas ouvem! Das três crianças, só a Lúcia, a mais velhita, seria autorizada a fazer perguntas à suposta senhora. As perguntas podiam ser ouvidas pelo público presente, não as respostas. As perguntas, postas na boca de Lúcia, são o exemplo acabado da parvoíce. E as respostas que Lúcia diz que a senhora lhe deu, ainda mais. Nunca em parte alguma do mundo, semelhante conversa teria interessado a alguém. Só em Portugal, nesse obscuro tempo da segunda década do século XX, ainda sem um pingo de Evangelho de Jesus e sem um pingo de Modernidade. O programa segue até final. Depois, para que a mentira nunca mais fosse desmentida, deixaram-se morrer as duas crianças irmãs, no auge da peste pneumónica. É caso para dizer: Nem a senhora de Fátima, tão milagreira ao que dela diz a publicidade bem paga que por aí se faz, lhes valeu! Uma infâmia de todo o tamanho, portanto. Pelo menos, a mais novinha, Jacinta, morreu a delirar com dores horrendas, no mais completo abandono por parte do clero. Restava a mais velha dos três. A solução foi encarcerá-la no Asilo de Vilar, no Porto, e convencê-la, através dos confessores, do bispo e de outras pessoas influentes da Igreja, todas interessadas em impor Fátima ao país e ao mundo, que ela era uma menina escolhida pelo céu para ser santa e para difundir no mundo a devoção ao Imaculado Coração de Maria. Coisa teologicamente mais parva nunca se viu, mas vale tudo, quando se trata de manter as populações e os povos sob o jugo do clero e do poder eclesiástico! Mas assim estava programado antes de começar a acontecer, e assim se fez. Lúcia lá partiu para o Porto, numa alta madrugada, sem que ninguém soubesse. E só passou a ter alguma autonomia, quando já nunca mais poderia ser ela própria e «voluntariamente» aceitou ser freira de clausura total, no Carmelo de Coimbra, onde viria a falecer, recentemente. E agora que não há mais o perigo de as três crianças dizerem a verdade, Fátima e a sua fraude têm mais do que nunca pernas para andar. A menos que as populações e os povos cresçam em consciência crítica e na sabedoria de Jesus, o de Nazaré. Porque então, renunciarão duma vez por todas à senhora de Fátima, às suas mentiras e aos seus cultos, como coisa demoníaca-idolátrica que tudo aquilo é! A minha alegria maior será ver chegar depressa esse dia! A concluir, digo ainda: tenho repetido que Fátima não faz parte do Credo. Por isso, pode-se ser católico e não acreditar em nada de Fátima. Mas, agora, vou mais longe e atrevo-me a dizer: quem quiser ser cristão católico jesuânico não pode acreditar em Fátima. Tudo aquilo é incompatível com a Fé cristã, com o Cristianismo de Jesus.

– Se Fátima é uma mentira, e se essa mentira é suportada e incentivada pela hierarquia da Igreja, ao mais alto nível, então eu posso concluir que o Papa é mentiroso?

– Não. Não pode concluir que o Papa é mentiroso. O que pode concluir é que a mentira foi e tem estado tão bem montada, que até conseguiu enganar um homem com a estatura e a formação do católico polaco Wojtyla, desde há 26 anos bispo da Igreja de Roma e Papa da Igreja universal. Para mal da Igreja e da causa do Evangelho de Jesus, trata-se de um Papa fatimista q.b., que confunde os cultos em honra da mítica Deusa virgem e mãe, já lucidamente combatidos pelos profetas bíblicos, muitos séculos antes de Jesus nascer, com a mulher história que veio a ser a mãe de Jesus, Maria de Nazaré, de seu nome. Esta confusão redunda numa aberração teológica sem paralelo. E o que a mim mais me impressiona é que as teólogas e os teólogos da Igreja católica e das Igrejas irmãs protestantes se mantenham em cúmplice silêncio. Nunca choraremos bastante, perante este desastre teológico e humano e suas consequências. Mas, infelizmente, não é a primeira vez que um desastre destes acontece. Quem não se lembra, por exemplo, que o judaísmo do tempo de Jesus, na pessoa dos seus líderes maiores, preferiu o Deus que se revelava em César de Roma, ao Deus que se revelava em Jesus de Nazaré? Mas é por causa de desastres destes que a Humanidade progride tão pouco em libertação para a liberdade e o Império que é mentiroso e assassino continua a ter pernas para andar e é saudado pelas populações e pelos povos do mundo como a salvação! Para nossa vergonha.

– Por falar no Papa: hoje já quase ninguém fala de João Paulo I, que – na minha modesta opinião de agnóstico – tinha o mais belo sorriso de que há memória na história da Igreja. No fim do seu curto papado, houve quem sugerisse que ele tinha sido assassinado. Acredita nessa hipótese?

– A esse propósito, escrevi há uns três anos o prefácio para um livro de um padre francês meu amigo que, infelizmente, nunca chegou a ser publicado nem lá nem cá. O livro tentava abordar o problema do assassinato ou não assassinato do Papa João Paulo I. É desse prefácio esta curta passagem que aqui revelo em primeira mão: «Se não o eliminaram fisicamente, o que é mais do que provável ter acontecido e daí a irrevogável decisão da Cúria em não permitir a autópsia ao cadáver – bastaria para tanto adicionar uma dose fatal de veneno sem sabor nem cheiro, digitalina, por exemplo, ao effortil que ele tinha que tomar todas as noites antes de se deitar e que o ajudava a manter, nos níveis ideais, as suas tensões habitualmente baixas – então mataram-no moralmente, mediante a prática de toda a espécie de golpes baixos que cometeram contra ele, próprios de uma máfia bem montada, bem organizada e bem dirigida, da qual fazia parte um restrito número de cardeais, por sinal, os mais influentes do Estado do Vaticano de então, e que não estavam nada dispostos a perder o poder de que desfrutavam, coisa que teria inevitavelmente ocorrido, se o papa não fosse fisicamente eliminado naquela precisa e fatídica noite de 28 para 29 de Setembro de 1978.» Infelizmente, a história da Igreja, como a história em geral, feita por homens e mulheres ainda em vias de o serem, tem sido fértil em crimes de lesa-Humanidade e de lesa-Natureza de bradar aos céus. O mais que provável assassinato de um papa tão humano como o Papa João Paulo I – o Jesus do século XX – ao lado desses crimes, é coisa de somenos importância. E a Cúria Romana não teve qualquer dificuldade em abafar o caso. Agora só falta mesmo propor a beatificação e canonização de João Paulo I, para que o crime de que foi vítima nunca mais seja lembrado!

– Porque é que a Igreja tem sempre tanta dificuldade em adaptar-se ao que é novo?

– Não é só a Igreja. Todas as grandes instituições e a generalidade das populações e dos povos. Os começos são sempre revolucionários. Mas depois as revoluções quase sempre acabam por se devorar a si mesmas. Desde que a Igreja se casou com o Império de Constantino, no século IV, e passou de Igreja a Religião oficial e única do Império, nunca mais pôde gostar do Novo, com toda a carga subversiva e provocadora que o Novo sempre traz. As coisas agravaram-se ainda mais, depois que a Igreja ficou no lugar do Império, à morte deste. E assim têm continuado até aos nossos dias. Sem lugar para o Novo dentro dela, a não ser como dissidente, como herege, como excomungado e, muitas vezes, como crucificado ou queimado na fogueira da Santa Inquisição! Mas, ironia da história, é o Novo, por mais reprimido e ostracizado que seja, que faz avançar o mundo e a vida. Felizmente, as coisas alteraram-se substancialmente na Igreja, no decurso da década de sessenta do século que nos precedeu, com o Concílio Vaticano II. Com ele, o Novo explodiu dentro da Igreja e nunca mais sairá dela. Tem uma expressão minoritária, é verdade, mas está eclesialmente legitimado. É dele que também eu vivo. E será ele que garantirá futuro ao triste presente da Igreja, tal como a Cúria Romana a tem moldado, sob o comando das hostes da Opus Dei. A grande instituição sabe que no dia em que deixar o Novo à rédea solta, os dias dela estão contados. Ela pensa que isso é um mal e, por isso, tudo faz para o impedir, nem que seja com recurso à morte violenta e à maldição/excomunhão, como fez o Judaísmo com Jesus. Para cúmulo, ao proceder assim, continua a pensar que dá glória a Deus. Não dá. Só se afunda na perversão e na inumanidade. Por isso, também eu digo, como Jesus: Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem!

– Ao longo dos tempos, os temas relacionados com o sexo têm sido um tabu para a Igreja. Mas Deus não disse a Adão e Eva «crescei e multiplicai-vos»?

– Não sei se Deus disse isso. Porque o conhecido relato de Adão e Eva, onde essas palavras aparecem, é apenas um relato mítico das origens. Não é um facto histórico. Nunca existiu, no princípio, um casal com os nomes de senhor Adão e senhora Eva. Adão e Eva são substantivos comuns, não substantivos próprios. E o pecado original nunca existiu num princípio. O que existe desde o princípio é o amor criador de Deus que está a tentar criar-nos à sua imagem e semelhança. Por pura graça. Mas tem sido difícil. Porque se Deus pôde começar a criar-nos sem nós, agora, no ponto em que a criação já se encontra, não pode prosseguir a sua obra sem nós, sem a nossa livre cooperação, uma vez que Ele teve o arrojo de nos criar criadores, como projectos irrepetíveis de liberdade. Entretanto, não posso deixar de reconhecer que o relato de Adão e Eva embora seja um relato mítico, acabou por ter uma influência decisiva na civilização ocidental como nenhum outro. Infelizmente, uma influência maléfica. Para mais, agravada, a partir do século V, com a desastrada intervenção hermenêutica e teológica de Santo Agostinho. Então não é que este bispo católico tomou à letra e como um facto histórico o relato mítico das origens e viu no prazer sexual (que ele conheceu antes de ser feito bispo e que depois doentiamente nunca mais se perdoou por isso) o próprio pecado original que, segundo ele, seria transmitido a todos os seres humanos através da relação sexual, sobretudo, quando esta fosse realizada com prazer por ambos os intervenientes? Esta monstruosidade foi ensinada nas universidades e nas catequeses através dos séculos, sem que ninguém se erguesse a dizer que era um insulto ao nome de Deus e aos seres humanos. E ainda hoje esta doutrina continua presente nas mentes dos seres humanos, inclusive, nos grandes negociantes do sexo. Ao fazer suas as perversas teorias de Santo Agostinho, a Igreja nunca mais foi capaz de encarar o sexo com a naturalidade com que Deus o olha. E fez dele o pecado do mundo, origem de todos os males. Durante séculos, só o tolerou como necessidade para a propagação da espécie. Mas o que ela gostaria era que fosse possível a propagação da espécie sem ter que se recorrer ao sexo, à relação sexual entre uma mulher e um homem. Por isso, ela não se inibiu de ensinar que a virgindade era superior ao casamento, porque a virgindade não conhecia nunca uma relação sexual. É esta falsa doutrina que está subjacente ao aparecimento de conventos e de mosteiros, que se encheram de frades e freiras, supostamente, virgens, sem qualquer actividade sexual. Foram muitos e muitos milhões de mulheres e de homens em todos estes séculos de Cristandade. Só que esta prática não tem nada a ver com Jesus e o Evangelho de Deus sobre os seres humanos, que Jesus nos revelou. Tem tudo a ver com os cultos idolátricos e sacrificiais em honra da Deusa do primitivo Paganismo. Ela, não o Deus de Jesus, é que se sentia honrada com a castração dos seres humanos. O Deus de Jesus sente-se honrado com a plena realização dos seres humanos, também ao nível sexual, afectivo, relacional, comunitário. Não é assim a Igreja católica e a Cúria Romana. Daí, toda a sua intolerância e toda a sua cruzada contra o prazer da vida, a começar pelo mais humano de todos, o prazer sexual. Fosse a Igreja seguidora, não das perversas teorias de Santo Agostinho, mas do Espírito que sopra e canta no mais belo livro da Bíblia, o Cântico dos Cânticos, e outra, muito outra seria a sua posição, neste domínio. Assim como outra, muito outra seria também a Igreja católica. A minha esperança é que ela ainda o venha a ser.

– As questões do aborto e da contracepção, por exemplo: a Igreja continua a ser inflexível nestas matérias. Porquê?

– Aqui, creio que os motivos são ainda mais graves. Acho que a Igreja hierárquica nunca se deu bem com a liberdade e a responsabilidade que decorre da liberdade. Prefere a lei à liberdade. A ordem imposta à responsabilidade. Educar para a liberdade é coisa que a hierarquia da Igreja nem sabe o que seja. Ela tem um medo que se pela da liberdade. O que ela quer é ter súbditos, funcionários, em lugar de seres humanos livres e responsáveis. Por isso faz toda a guerra que se conhece contra uma lei que despenalize o aborto. Ela sabe que há aborto em massa. E nada faz para ajudar a criar condições favoráveis à vida de qualidade que ponha cobro a este flagelo humano. Mas já não suporta que haja uma lei que despenalize o aborto. Uma lei destas pressupõe a existência de pessoas livres e responsáveis, capazes de decidirem sobre os seus actos, mesmo os mais íntimos. Se não houver uma lei dessas, as mulheres em situações de desespero podem fugir do aborto com medo da vergonha e da cadeia. E é nesse mecanismo do medo que a hierarquia da Igreja aposta. Não na liberdade e na responsabilidade de cada pessoa. Para formar pessoas livres e responsáveis, dá muito trabalho. Não é de um dia para o outro que se formam pessoas livres e responsáveis. Pessoas dominadas pelo medo sim. Pode conseguir-se num instante. No meu entender, é aqui que havemos de colocar a questão. Uma Igreja preguiçosa, instalada, superficial, aposta tudo no medo (do inferno, da cadeia, dos castigos, da denúncia na praça pública, da Inquisição, das fogueiras, da espoliação dos bens, da ameaça de morte), em lugar de apostar tudo na liberdade. A lei da despenalização do aborto acaba com o medo da cadeia e com a vergonha da exposição pública nos tribunais. Cria condições de mais liberdade responsável, mas não é por aqui que tem passado o esforço catequético da Igreja. Apenas no medo. Não foi o medo do inferno que levou as três crianças de Fátima a auto-flagelar-se para evitar que os «pobres pecadores» lá caíssem? Ora, se nem inferno existe, o que fica então de toda essa maldita catequese fatimista?

– O padre Mário, como se vê, tem sobre estas matérias uma posição muito heterodoxa. Tem a noção de que é uma voz incómoda?

– Não direi heterodoxa, mas ortodoxa. Heterodoxa é a posição da hierarquia da Igreja e da Cúria Romana. A minha posição inspira-se na liberdade para a qual Cristo, o de Jesus, nos libertou. Desde cedo me dei conta que a moral sexual oficial da Igreja é imoral. Por isso, tem que ser denunciada e combatida em nome da dignidade humana, da liberdade dos seres humanos, do Evangelho de Jesus. Jesus nunca foi por aí. A via de Jesus, que é a do Evangelho, vai pelo Cântico dos Cânticos. Uma sexualidade humana será sempre uma sexualidade festiva, realizadora dos seres humanos que a vivem de forma livre e responsável. Para tanto, há-de aparecer vinculada a um projecto que diga respeito ao bem da Humanidade. Sexualidade sem projecto de vida é muito redutora. E pode, à distância, contribuir para criar frustradas, frustrados. Não se entenda por projecto de vida, um casamento canónico ou civil. Entenda-se um projecto de vida que envolve e dá sentido a todas as nossas opções e decisões concretas do dia a dia. Creio que hoje tendemos a esquecer esta dimensão da sexualidade humana. Mas a verdade é que nós, os seres humanos, não somos apenas sexo. Somos corpos animados, corpos que se movimentam atraídos por utopias que dão sentido e gosto aos pequenos actos de cada dia. Sem isto, pode haver muita actividade sexual e pouca festa. Pode haver muito prazer, mas pouco crescimento em liberdade e em responsabilidade. Podemos não ir muito além dos animais. Racionais, mas animais. Quando do que se trata é de nos tornarmos humanos e, finalmente, fraternos/sororais. Ver as coisas assim é ser uma voz incómoda? Pois tanto melhor. É bom que se saiba que isto de se ser mulher, homem, tem o que se lhe diga. É, sem dúvida, a obra mais difícil a que Deus meteu mãos, perdão, com que Deus, ele próprio, se comprometeu. Para já, apenas teve um resultado absolutamente positivo: Jesus de Nazaré, o Homem!

– Um aspecto que diferencia a sexualidade humana da sexualidade animal é o prazer e a dimensão afectiva. O Reich, por exemplo, foi perseguido por defender que o sexo era uma coisa bela e não um pecado ou um mal necessário. E eu atrevia-me a fazer uma divagação eventualmente herética e a dizer que «fazer amor» é uma expressão que quase remete para o Sagrado. Concorda comigo?

– Concordo, evidentemente. Fazer amor, mas com amor (o que nem sempre acontece, infelizmente) é tão sagrado como fazer a Eucaristia, por exemplo. Beijar é orar, é o título de um livro, cujo autor é pregador de retiros num mosteiro. A afirmação apoia-se no já referido livro bíblico, o Cântico dos Cânticos, que abre precisamente com estas palavras tão sadiamente provocadoras, quanto humanas: «Beija-me com os beijos da tua boca! Melhores que o vinho, são as tuas carícias!» Mas o mais impressionante é que todo o poema é protagonizado por um casal que o não é de facto, é um casal de amantes, como hoje diríamos. E porque é que as coisas são assim aos olhos de Deus, o de Jesus? Porque a glória de Deus é que o ser humano viva. Poderíamos traduzir: a glória de Deus é que o ser humano atinja o orgasmo, a plenitude, o êxtase, tanto nas suas relações conjugais/sexuais, como nas suas relações sociais e comunitárias. Entenda-se, evidentemente, orgasmo em sentido amplo, como plenitude de vida humana. O raquitismo, todo o tipo de raquitismo não glorifica a Deus, pelo menos, o Deus de Jesus que o que mais quer é que os seres humanos vivam e vivam em abundância. Mas esta abundância está longe de se esgotar na relação sexual, no fazer amor em sentido meramente sexual. Aliás, o amor que não consegue ir além da cama não tem asas para fazer seres humanos. Por isso, pode haver mulheres e homens que, sem nunca fazerem amor, em sentido sexual, o fizeram como ninguém, quando se tornaram dom para os demais, na maior das gratuidades e no maior dos despojamentos. Mas para se chegar aqui, é preciso falar a língua da fraternidade/sororidade universal, coisa que o nosso tempo, infelizmente, parece que nem quer ouvir falar, obcecado que anda com fazer amor na dimensão sexual. Mas é para aí que até o fazer amor em sentido sexual tem que apontar. Pobre de quem não for capaz de o perceber a tempo e não ousar avançar nessa direcção. Porque então não terá chegado a tocar o especificamente humano, por mais actividade sexual que mantenha nos anos de vida propícios a isso.

– Já o ouvi dizer que o celibato imposto aos padres é uma auto-castração. E, nos primeiros tempos, os ministros da Igreja não eram obrigatoriamente celibatários. Qual é a razão da teimosia que faz com que se mantenham estas regras?

– O celibato imposto aos padres é uma aberração. A instituição que isso faz deveria ser considerada fora da civilização e da cultura. Outra coisa, muito diferente, é o celibato assumido livremente por mulheres e por homens que se experimentam chamados a dar esse testemunho do essencial. O celibato, como opção livre pelo Reino ou Reinado de Deus, é o amor levado ao extremo. Mas deve ser entendido e vivido no clima do Cântico dos Cânticos, não no clima da repressão afectiva e no medo das mulheres ou dos homens. A Cúria Romana mente, quando diz que o celibato dos padres não é imposto, porque os candidatos, quando aceitam ser ordenados, já sabem que só o serão se assumirem o celibato. E assumem-no com essa consciência. Mas, se assim é, então porque é que a Igreja de Roma não acaba com essa disciplina? No princípio da Igreja, o que se exigia é que até o bispo fosse homem duma só mulher! As coisas alteraram-se rapidamente. E uma das razões foi económica. A Igreja não queria que o seu património fosse repartido em herança pelos filhos dos seus ministros ordenados. E proibiu o seu casamento. E aos que já eram casados, proibiu que coabitassem com as respectivas mulheres. Depois, quando alguns padres claudicavam a tinham filhos sem casamento, a primeira coisa que a Igreja lhes exigia é que não reconhecessem os filhos, para que eles não se perfilassem como herdeiros do património eclesiástico. Finalmente, no Concílio de Trento, no século XVI, a Igreja exigiu que o sacramento do matrimónio fosse feito na presença do pároco da noiva ou do noivo, para evitar os chamados casamentos clandestinos, nomeadamente, os casamentos clandestinos dos padres. Sim, porque havia padres que viviam sossegadamente com uma mulher, porque haviam casado clandestinamente com ela. Hoje, o celibato mantém-se obrigatório, não já por razões económicas, mas por misoginia dos responsáveis maiores da Igreja, todos eles de idade avançada e funcionários eclesiásticos sem entranhas de humanidade. Tantos anos sem afecto, sem a presença do feminino na sua vida, de auto-repressão como que congelaram estes homens e eles tornam-se virtuosamente cruéis e até sádicos. Na sua insensibilidade, imaginam que Deus gosta de ser servido por eunucos, como eles, e então vá de impedir por todos os meios, também por meio duma lei feita por eles (porque a lei do celibato obrigatório não vem de Deus, nem tem dimensão humana: é pura criação da Igreja católica romana, não da Igreja católica toda, uma vez que a Igreja católica oriental já segue outra disciplina bastante mais humana) que impeça os padres de casar. A proibição é mesmo de casar. Porque se um padre «prevaricar», mas não casar, basta que se confesse desse «pecado» e poderá continuar a exercer o ministério. Mas se, depois de «prevaricar» várias vezes, entender em consciência que é mais digno casar com a companheira com quem «prevaricou», aí cai o Carmo e a Trindade. A autoridade eclesiástica é implacável: ou a mulher, ou o exercício do ministério. As duas coisas ao mesmo tempo é que não! O que me leva a ter de concluir que o problema da Igreja católica romana continua a ser a mulher e o prazer sexual, duas realidades que Deus criou e abençoou, mas que a sua Igreja, pelos vistos, não suporta e tudo faz para corrigir o próprio Deus. Bem avisados andarão os padres que queiram casar, se mandarem às urtigas o exercício do ministério que os impedia de serem verdadeiramente eles próprios. Afinal, o exercício da paternidade numa família constituída no amor recíproco dá origem à primeira célula da Igreja de Jesus, a chamada Igreja doméstica. Uma Igreja sem altar, é certo. Mas com mesa comum. E com um leito conjugal, que é muito mais sagrado do que o altar, que tem tudo de paganismo, ao passo que o leito conjugal e a mesa comum têm tudo de dádiva, de graça, de dom, de humanidade. Sem uma e sem outro, a vida humana não teria futuro. O que não se pode dizer do altar que, como se sabe, não faz falta nenhuma, nomeadamente, numa vida feita de liberdade e de responsabilidade.

– Ao longo dos séculos, as mulheres foram tratadas, de certo modo, como humanos de segunda categoria, e a Igreja foi sempre uma instituição essencialmente masculina. No entanto, actualmente há cada vez mais há vozes a reclamar, por exemplo, o acesso das mulheres ao sacerdócio. Algum dia isso se concretizará?

– O que reclamo da Igreja de que faço parte é a radical igualdade entre homens e mulheres e a indissolúvel unidade entre mulheres e homens. Tudo o mais virá por acréscimo. No início, com Jesus e o seu Movimento, as coisas foram assim. Com manifesto escândalo para a época. Mas Jesus não cedeu e afirmou esta radical igualdade e esta indissolúvel unidade, sem querer saber do escândalo. O que, evidentemente, passou a ser constitutivo da Igreja que se reivindica do seu nome. Por isso, a Igreja de Roma, ao não aceitar esta radical igualdade entre homem e mulher, no acesso aos ministérios ordenados, está de certo modo fora do Movimento de Jesus, porque não acata uma das suas dimensões constitutivas. Quanto ao acesso das mulheres ao ministério ordenado (prefiro falar de ministério ordenado, em lugar de “sacerdócio”, já que na Igreja não deve haver sacerdotes, muito menos sacerdotes como casta clericalizada, porque Jesus nunca quis uma tal espécie de funcionários do sagrado junto dele), é vidente que este deve ser total. Onde chegarem os homens devem chegar as mulheres. O que não for assim é discriminação e, por isso, é pecado e pecado que brada aos céus. De modo que as mulheres baptizadas, como os homens baptizados podem e devem exercer o ministério de presbítero e de bispo, e devem estar presentes também no ministério ou serviço de Pedro, que preside e anima a Igreja em todo o mundo. Os séculos para trás foram séculos de pecado e de Mentira que contribuíram para adoecer e oprimir o mundo, quando deveriam ter sido séculos de Graça e de Verdade que teriam curado e libertado o mundo. Por mim, confio que esta Igreja de Roma, tal como está, não tem futuro. Dentro dela, o Espírito Santo já faz sentir a sua acção e presença. E implementar-se-á, em breve, um novo modelo de Igreja, comunidade de comunidades, em que os ministérios ordenados serão protagonizados por mulheres e por homens, casados ou célibes, indistintamente, e em moldes totalmente novos, nada do que hoje por aí se faz, em que aqueles que os exercem são mais funcionários eclesiásticos do que seres humanos. Acabará, então, esta aberração. Em seu lugar, nascerão ministérios ordenados protagonizados por mulheres e homens com coração e sentimentos, por isso, capazes de abraçar, beijar, acompanhar, numa palavra, de sentar-se à mesa dos demais, como uma irmã, um irmão com outras irmãs, outros irmãos.

– Sendo, como é, tão crítico em relação à Igreja Católica, alguma vez pensou em deixar de ser padre?

– Nunca tal ideia me passou pela cabeça. Sempre me experimentei padre/presbítero por vocação. Em mim, ser padre é resposta a um chamamento. Vejo-me muito na linha do chamamento do jovem Samuel bíblico. Chamado para apontar muitos dos desvios históricos da Igreja que me ordenou. E para apontar caminhos alternativos. É uma missão incómoda, mas necessária. Alguém tem que o fazer, o Espírito assim o quer. E quem for chamado a esse serviço será feliz se o realizar. Contra ventos e marés. Porque me experimento assim, creio que a própria Igreja que um dia me impôs as mãos e me confiou o ministério de Evangelizar os pobres também não se terá arrependido de o ter feito. Pode não gostar do que eu faço e do que eu digo, mas não pode deixar de reconhecer a justeza do que eu faço e do que eu digo. Por isso, me acompanha com perplexidade, mas também com atenção. E sei que muito do que eu faço e do que eu digo não tem caído em saco roto. Está à vista de toda a gente.

– E alguma vez se arrependeu da «opção de classe» que fez?

– Opção de classe é coisa que não fiz, senão na medida em que o Evangelho de Jesus também a faz. «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano de graça da parte do Senhor». É com estas palavras do profeta Isaías que Jesus de Nazaré se apresenta e ao seu programa na sinagoga da sua terra. É por isso que a Igreja sempre deve começar a sua missão por esta «opção de classe». É a única maneira de podermos chegar a toda a gente. Fica assim claro que são estes os gostos de Deus, pelo menos, do Deus de Jesus. Só podem ser também os meus gostos. E como é que alguma vez me poderia arrepender de ter feito esta opção, se só ela me faz ser cada vez mais irmão universal?

– Fé, esperança, caridade. Das três, qual é para si a essencial?

– Todas são essenciais. As três são virtudes teologais. Animado e fortalecido por elas, posso viver no Sistema, mas como solidário e irmão dos empobrecidos e excluídos; posso viver no Tempo, mas como cidadão do Amanhã; posso viver no Amor, mas como homem-para-os-demais. Quando falo de Fé, é da Fé de Jesus que falo, mais ainda do que Fé em Jesus ou em Deus. É da Fé que move montanhas, nem que sejam as montanhas do Império. Não falo da Fé religiosa, manifestamente pagã, que leva as pessoas a pedir a Deus aquilo que só elas podem e devem fazer com o seu esforço e com a sua militância. A Esperança faz-me ver o Invisível no visível e para lá do visível. Consequentemente, leva-me a bater-me por causas que vão muito para além dos imediatismos e dos interesses egoístas e mesquinhos do momento. E o Amor faz-me viver os afectos quotidianos, mas como quem se dá às pessoas, não como quem as possui e se serve delas. Enquanto estou na História, estas três virtudes são igualmente fundamentais para mim. Mas só o Amor permanece para lá da História. A Fé acabará. A Esperança acabará. O Amor, nunca acabará. Por isso digo: é pelo Amor que sou e serei. Mesmo que alguma vez, por hipótese absurda, eu chegasse a perder a Fé e a Esperança, seria salvo pelo Amor que é o outro nome de Deus. Por pura graça sua.

– O Vaticano é hoje o único estado absolutista da Europa. Mas, e olhando para a agonia pública a que João Paulo II tem estado sujeito, dá vontade de perguntar: até que ponto é real o poder do Papa?

– O Vaticano é o único estado absolutista da Europa e o Papa é o único chefe de estado com poder absoluto. Concentra nele todo o poder, legislativo, executivo e judicial. Até dispõe de poder sobre Deus, porque se auto-declarou infalível. É claro que as coisas são assim, no dizer do Código de Direito Canónico que o próprio Papa aprovou! Na realidade de todos os dias, não é nada assim. A Cúria Romana é que detém o poder. E quando o Papa dissentir dela, ela lá está para lhe fazer a vida negra até o fazer mudar de ideias. Ainda assim, nunca esquecerei o Papa João XXIII. Com a sua experiência diplomática, foi capaz de fintar a Cúria e convocar um Concílio Ecuménico, sem antes a consultar. Ela bem barafustou, mas a decisão já era notícia em todo o mundo. De modo que o remédio foi aceitar o facto consumado. Mas foi só uma questão de tempo. O Concílio aconteceu – foi o Vaticano II – mas as decisões mais revolucionárias que aí foram tomadas depressa foram metidas na gaveta. A Cúria Romana não descansou enquanto não elegeu um Papa – João Paulo II – que fizesse esquecer o Vaticano II. É assim o poder absoluto. Corrompe absolutamente. E, se é sagrado, como no caso, então a corrupção é inimaginável. Pertence à Igreja, comunidade de comunidades, distanciar-se da Cúria Romana e deixá-la a falar sozinha. Porque se a Igreja existe por convocação do Espírito Santo, dela não faz parte a Cúria Romana. Podemos dizer que a Cúria Romana está na Igreja como Pilatos no Credo.

– Li há tempos uma entrevista sua em que defendia o fim do papado como instituição, e a criação, em seu lugar, de um serviço maiêutico de coordenação da Igreja. De que forma é que se poderá lá chegar?

– Enquanto a Cúria Romana existir e o Papa for o chefe de estado do Vaticano, será praticamente impossível lá chegar. Mas, como a Cúria Romana não faz parte da Igreja, cabe à Igreja avançar para novas soluções. Com humildade. Inteligência. E audácia. Um serviço maiêutico de coordenação da Igreja tem de ser colegial. Constituído por mulheres e homens. Pelo menos uma mulher e um homem por cada continente. Poderíamos regressar ao Grupo dos Doze, do tempo de Jesus. A localização também não tem que ser sempre a Europa e, na Europa, a cidade de Roma. Pode e deve ser rotativamente em cada um dos cinco continentes, com destaque para os continentes da América Latina e da África. Com as possibilidades que a Internet hoje nos oferece, este serviço maiêutico de coordenação nem será difícil de funcionar com muita fecundidade. Não será um poder. Será um serviço. Na linha daquele comportamento que Jesus de Nazaré exigiu às suas discípulas, aos seus discípulos: o que quiser ser o maior faça-se o servo de todos; o que quiser ser o primeiro faça-se o último de todos. Também não deverá ser vitalício. Por um período máximo de 10 anos, por exemplo. E deve resultar duma eleição. A Igreja que está em cada continente, elegeria os seus dois membros, uma mulher e um homem de Fé cristã jesuânica bem comprovada na prática solidária e martirial em prol da Humanidade mais empobrecida e mais oprimida. Utopia? Mas pela utopia é que vamos. E se a Igreja desiste da utopia, ainda será Igreja de Jesus?

– Para isso é necessário haver um 25 de Abril no Vaticano? Ou será antes uma Revolução de Outubro?

– Um 25 de Abril não será suficiente. E uma Revolução de Outubro também não. Aliás, para chegarmos aqui, nem sequer é preciso recorrer a esses exemplos da História recente. Basta que a Igreja tenha a humildade e a audácia de voltar a ser fiel ao Espírito Santo, aos pobres do mundo (hoje, a esmagadora maioria da Humanidade), às vítimas da História. Basta ter a humildade e a audácia de nascer de novo, do Alto. Basta ter a humildade e audácia de Jesus, o de Nazaré, e como ele resistir duma vez por todas às três tentações que batem à porta de qualquer ser humano e de qualquer instituição coordenada por seres humanos. Em concreto: 1) Resista à tentação do Dinheiro, que é hoje o grande Ídolo demoníaco que manda no mundo e que corrompe e perverte tudo e todos, lá onde continuar a ser adorado. Em contrapartida, tenha a humildade e a audácia de ser uma Igreja serva e pobre em bens materiais, nem mãe nem mestra, simplesmente, companheira parteira da Humanidade. 2) Resista à tentação do Poder, o segundo grande Ídolo demoníaco, que é mentiroso e assassino, genocida e ecocida, e que àqueles que não mata, transforma-os em súbditos e vassalos, mais objectos do que sujeitos. Em contrapartida, tenha a humildade e a audácia de ser uma Igreja libertadora, metida na História, congregada em redor de mesas comuns, em lugar de ser uma Igreja metida nos templos e em redor de altares ou de imagens de caco ou de madeira. 3) Resista à Religião e ao Deus da Religião, totalmente identificado com o Sistema e o Império, que continua aí como o terceiro grande Ídolo demoníaco que aliena e infantiliza as pessoas e os povos. Em contrapartida, tenha a Humildade e a audácia de fazer da Política, enquanto arte de cuidar da vida e do Universo, dos seres humanos e de toda a criação, o seu principal culto litúrgico, não na linha da caridadezinha e das IPSSs, mas na linha da libertação para a liberdade, capaz, por isso, de fazer crescer as pessoas e os povos, de modo que sejam estas e estes os protagonistas da História e não ela, nem os seus principais responsáveis.

In Contas à Vida | Sete Caminhos | 2005