Pelos teus olhos acesos de inocência
me vou guiando agora, que anoitece.
Miguel Torga
British poem
Ao fim da tarde os ingleses
ficam quase tão cinzentos como as ruas
do meu país distante. Embebedam-se
em silêncio
e fazem por acreditar que ainda estão vivos
quando arrumam a consciência nas páginas do Standard
e aguardam o dia seguinte
com a melancolia suave das pequenas esperanças.
Londres, Abril de 1982
Canção de outro dia
Para o Adriano Correia de Oliveira
Se quereis saber do meu amigo
venho agora perguntar.
Foi no sonho sem regresso
nunca mais há-de cantar.
Se quereis saber deste amigo
perguntai.
Dizem que sorriu. Depois morreu
sem pecado
sem recado
devagar. Dizem que era o rouxinol
com coração de menino
o amigo que partiu
contam histórias de encantar
(umas tristes outras lindas)
dizem coisas de pasmar:
que era grande e pequenino
que era um pássaro
que era o mar.
Se quereis saber do meu amigo
venho agora perguntar.
Das coisas todas da vida
trago muito que contar:
da dor e da poesia
da raiva toda escondida
à espera de outro lugar.
Do amigo que partiu
trago canções e sorrisos
trago a voz a desejar
dizer que o tempo corria
como nessa tarde fria
em que foi a enterrar.
– Que quereis mais do meu amigo
venho agora perguntar.
Lisboa, Dezembro de 1982
Desejo
Quisera amar-te aqui
como nas noites longas
loucas noites de Lisboa.
Amar-te apenas com os beijos
e os sorrisos aque aprendemos
quando voamos na névoa do desejo
por sobre as águas imensas.
Quisera que tudo fosse sempre deste modo
e a revolução se fizesse
um pouco mais que um sonho
a despertar nos teus olhos livres.
Havana, Agosto 1984
A meus pais, como se fosse inverno
Há um mar enorme nesses olhos
onde a lua se recorta.
Aqui crescem flores eu sei e no entanto
quantas dores
quantas lágrimas
quantas vidas por contar.
Há um mar enorme
a navegar
à procura de um acaso. Em todo o caso
a margem. Talvez
louca talvez suave
e pouco a pouco à espera
do inverno.
Lisboa, Outubro de 1984
Um dia destes
Um dia destes serei velho e aí talvez
descubra as fórmulas secretas dos alquimistas os segredos
dos outeiros que nunca povoaram as paisagens que pintei.
Serei velho como os velhos um milhão de certezas
e os sorrisos de desprezoa a invadirem-me as páginas
ou talvez um punhal cravado nos silêncios matinais
à espera do delírio fatal.
Um dia destes alguém vai dizer-me
que isto é tudo uma imensa lotaria
cigarro a cigarro consumida na inutilidade dos gestos
e então nada restará do que imaginámos viver.
Um dia destes talvez morra.
Pequenino
e infinitamente azul
como os lírios da Mesopotâmia.
Lisboa, Março 1985