Em meados dos anos 80, o Partido Socialista Revolucionário deu os primeiros passos para restituir à Esquerda o brilho e a criatividade que se haviam perdido na ressaca pós-revolucionária. O mensário Combate tornou-se, então, uma importante tribuna de debate de ideias, aberta a homens e mulheres de várias sensibilidades da Esquerda portuguesa não-alinhada. Entre outros méritos, está o de ter proporcionado a introdução de uma nova linguagem no léxico da esquerda portuguesa. Uma dúzia de anos mais tarde, o PSR foi a força política motriz do projecto do Bloco de Esquerda. Não se pode viver sem Utopia é uma colectânea de textos de diversos autores, publicados no Combate entre 1986 e 1998. E é também um pretexto para revisitar dois amigos que aqui fazem muita falta: Fernando Assis Pacheco e Júlio Pinto.
As ilusões que cantam e os cifrões que contam
Pode ser-se da esquerda radical e trabalhar na publicidade que ajuda a colorir o sistema capitalista? Júlio Pinto, 43 anos, ex-jornalista e antigo funcionário clandestino do PCP (de onde foi expulso em 1981 por ter ousado solidarizar-se com Carlos Antunes e Isabel do Carmo) acha que sim. Pistas para um debate, em que também se fala de assaltos, Frank Zappa e Tomás Taveira.
– Durante mais de dez anos foste jornalista. Agora és copywriter numa agência de publicidade. Como costumas dizer, trocaste «a ilusão da odjectividade, pelo espectáculo da mercadoria». Mudaste por necessidade ou por opção?
– Há opções necessárias. E até necessidades opcionais. Tenho uma velha e intensa relação de amor-ódio com os jornais, ainda não definitivamente resolvida. Mas não tenho vergonha de estar na publicidade. Antes isso do que estar às ordens de certa capatazia dos jornais.
– Dizes que não tens vergonha. Admites, portanto, que podias ter. Por seres de esquerda?
– De esquerda radical, já agora. Bem, o capitalismo é, essencialmente, o tal espectáculo da mercadoria. Nós, criativos publicitários, somos uma espécie de encenadores, cenógrafos, realizadores desse espectáculo.
– E quem são os figurantes?
– O público consumidor, é óbvio. Mas acontece o mesmo na política, por exemplo, que também tem os seus encenadores, cenógrafos, realizadores e a grande massa obediente e infeliz de figurantes. Com a agravante de, na política, os figurantes só entrarem em cena de quatro em quatro anos. E os políticos profissionais fazem questão de sublinhar o seu espírito de missão, de sacrifício, de serviço. Os publicitários, ao menos, não frequentam essa retórica. Não são salvadores da Pátria, e não é por eles que o capitalismo vai deixar de se afundar.
– A publicidade é uma arte, um ofício ou um artificio?
– É uma arte e um ofício. Portanto, um artifício. As ilusões que cantam mais os cifrões que contam.
– És um fabricante de ilusões?
– Fabricante, não. Um artesão, talvez. Mas duvido de que os artesãos consigam vender duradouramente ilusões. Acho que, no fundo, a publicidade reflecte, mais do que cria, os valores de uma sociedade num determinado momento histórico. Há, claro, exemplos de publicidade-de vanguarda, que vai à frente do tempo e contribui para a criação de novos hábitos e, até, novos valores. Mas isso é a excepção, até porque os donos da mercadoria não gostam de arriscar. Também aí a capitalismo é conservador e as vanguardas têm uma vida difícil.
– O neo-liberalismo e sua versão lusitana, o cavaquismo, tendem a transformar a sociedade dos cidadãos numa sociedade de consumidores. Os publicitários tornam-se, assim, um instrumento do poder...
– Numa sociedade dividida em lobos e carneiros, é sempre difícil escolher um papel humano. Somos todos, de uma ou de outra forma, instrumentos e vítimas de um poder que não temos força para destruir. Mas isso é válido, também, para os professores, por exemplo. Ou não será a escola um local privilegiado de repressão e normalização dos nossos filhos?
– O Léo Ferré dizia que «venderia o poder, se pudesse vendê-lo»». E tu?
– Se o Ferré se lembrasse de me contratar, essa seria a campanha publicitária da minha vida. De borla, claro.
– Já fizeste publicidade directamente política?
– Já. Fiz algumas coisas para o PSR e participei numa campanha para a Amnistia Internacional. Mas sempre fora da relação patrão-empregado. Se quisessem pagar-me para publicitar ou promover qualquer organização política, recusava.
– Mas não recusavas fazer publicidade a um banco, por exemplo...
– Até já fiz campanhas a bancos. Os bancos são como salsicharias, as fábricas de sabonetes, essas merdas todas. Compram e vendem o mesmo dinheiro que serve para comprar e vender salsichas, sabonetes ou camisas-de-vénus. Aqui há uns anos, ainda tinham um contra suplementar que, aliás, o Carlos Antunes referiu exemplarmente numa entrevista que lhe fiz para «O Bisnau»: eram, como ele dizia, «casotas inestéticas que só mereciam ser sacadas». Nos últimos tempos, os bancos melhoraram a imagem. Já foste ao BNU da Avenida 5 de Outubro?
– Já e gostei, mesmo sendo um banco. É a obra-prima do Taveira.
– Uma das obras-primas do Taveira, se me dás licença. Eu sei que não parece bem dizer isto, mas o Taveira é um provocador genial que me merece todo o apoio.
– Então já somos dois. Mas estavas a falar dos assaltantes.
– Sempre simpatizei com assaltantes de bancos. Já o Brecht dizia que assaltar um banco é um crime mil vezes menor do que fundá-lo. Mas hoje parecem-me francamente desmobilizados. Se calhar precisavam de uma boa campanha publicitária...
– Portanto, tudo se compra, tudo se vende, nada se transforma?
– Tudo se transforma. O problema é determinar quem conduz os processos de transformação. O Ieltsin e quem ele representa estão a transformar a defunta União Soviética. O próprio Cavaco e quem o lá tem estão a transformar Portugal, e temo que até os portugueses. Sempre achei que o mundo é para se transformar. Mas essa não é propriamente a vocação da publicidade.
– Falaste há pouco da tua participação em campanhas do PSR. Como publicitário, pensas que as campanhas dos socialistas revolucionários são conseguidas?
– O eleitorado acha que não. Mas eu penso que têm sido criativas, no essencial, e têm contribuído para a construção de uma imagem do PSR como partido extra-institucional. Na última campanha, contudo, parece-me que houve algumas nuances que enevoaram um tanto essa imagem. O PSR apareceu mais «certinho», mais recatado. Inclusive na forma de se dirigir ao tal mítico eleitorado. Pela primeira vez, tratou o potencial votante por você, no cartaz de campanha e nas intervenções do Francisco Louçã na televisão. É o que se chama, em publicidade, um posicionamento errado do produto, ou uma mudança de público-alvo. Mas, acima de tudo, faltou-lhe uma estratégia criativa global e coerente, que tornasse clara a diferença de fundo entre vontade de eleger um deputado e eleitoralismo. Penso que isso reduziu a eficácia da mensagem.
– Apesar disso, concordas que se tratava de uma mensagem diferente de todas as restantes. Incluindo as outras de esquerda?
– Sim, claro. A CDU, foi arranjar um slogan das salsichas Sicasal, transformando-o ligeiramente. O slogan da Sicasal era «de toda a confiança» e o da CDU «com toda a confiança». O PS, esse, procurou conciliar o Spielberg em versão Reboleira com o estilo «última tanga em Paris». Só lá faltou um depoimento do Eduardo Prado Coelho, mas provavelmente ele estava nos anos da Maria Aníbal Cavaco...
– Em termos genéricos, parece-me que continua a faltar alguma ousadia à publicidade feita em Portugal. Estás de acordo?
– Continua a faltar a ousadia. Nos últimos anos as coisas melhoraram um bocado, com a chegada dos brasileiros que, como toda a gente sabe, são portugueses à solta. Sabe, não. Devia saber. Porque há uma reacção xenófoba contra os brasileiros. Se calhar é um racismo especificamente português. Geralmente o racismo é contra os africanos e os indianos. Os chineses estão longe, têm sido mais poupados. Em Portugal há racismo contra os brasileiros. Possivelmente é o colonizador que devora os filhos mais bem sucedidos. Na publicidade isto é muito nítido. Os publicitários brasileiros vieram desafiar as instalações, há quem se sinta ameaçado na sua mediocridade e que, se calhar, pense que eles deviam era ir trabalhar para as obras, como os cabo-verdianos. A verdade é que esses portugueses à solta estão a fazer muito do que de melhor se pode ver na publicidade portuguesa actual.
– Apesar disso, a publicidade em Portugal tem tido a participação de diversos intelectuais. Estou a lembrar-me de gente como o Alexandre O'Neil, o Manuel da Fonseca, o Ary dos Santos, o Stau Monteiro...
– O O'Neil, tanto quanto conheço do que fez, era o mais talentoso de todos. Inventou um slogan muito simples, quase patético, que mais de dez anos depois ainda perdura: «Bosch é bom». Por acaso sei que o O'Neil chegou a pensar num muito parecido em que acrescentava um erre ao bê de bom. Não sei se foi a Brosch que rejeitou... O Ary tinha um talento demasiado torrencial para o meu gosto. O Stau trabalhou muitos anos na publicidade e nunca teve subsídio de férias ou de Natal, parece que os patrões da publicidade não se arriscavam a contratá-lo. O Manuel da Fonseca usou a publicidade como instrumento de subsistência para escrever coisas como a«Seara de Vento». Uma boa causa, portanto. E há mais exemplos. Eu disse há pouco que a publicidade reproduz, mais do que cria, a realidade. E também é menos forte, muito menos forte, do que a poesia. Os poetas sobrevivem sempre à publicidade.
– Estás a falar de ti? Eu sei que tens há muitos anos poemas inéditos, alguns que eu conheço e, passe o elogio, são no mínimo notáveis. Nunca pensaste em publicar um livro de poesia?
– Já. Já pensei em publicar a minha poesia e, se calhar, agora vou ter mesmo de fazer isso. Para me vingar da publicidade. E para comprovar que, de facto, a publicidade não é mais forte. Até já dei comigo a arranjar um título para o livro.
– Qual é?
– «Rol Provisório de Assassínios». Se calhar também podia ser «O Elogio da Badalhoquice», que é uma ideia sugerida pela leitura do último número do Combate, onde tive a surpresa de reencontrar o meu velho amigo Frank Zappa, que fazia o elogio das badalhocas contra os papás e as mamãs, a cultura da TV e do vídeo, os bons comportamentos todos.
– Citaste o Zappa, de quem eu também sou praticante. Mas ele também criticava as pseudo-feministas. Que é que pensas das utilização da mulher na publicidade?
– Penso o óbvio. A estratégia publicitária dominante – masculina, é claro – propõe a mulher como objecto de efabulação precoce. A maioria dos homens não está preparada para aguentar uma relação duradoura com a imagem da mulher erotizante de uma certa publicidade. Essa publicidade, no fundo, é mais castradora para o homem do que para a mulher. Mas há anúncios muito piores do que os chamados «eróticos», que utilizam o corpo da mulher. Os anúncios das margarinas, por exemplo, são pornografia pura. E não é preciso ter visto «O Ultimo Tango em Paris» para perceber isso. E, hoje, a publicidade utiliza indiscriminadamente o corpo da mulher e o corpo do homem. Corpos que a maioria das mulheres e dos homens também utilizam de uma forma ou de outra no seu dia-a-dia para se autopublicitarem. Se não fosse assim, aliás, o mundo seria ainda mais chato. O que me parece é que boa parte da humanidade tem ainda uma relação difícil com o corpo, os afectos e o sexo. Mas, uma vez mais, a culpa não é da publicidade.
– Existe espaço para a verdade no universo idealizado da publicidade?
– Deixei de acreditar no Pai Natal aos cinco anos...
Então agora vamos ficar sem o Assis?
E de repente um coração que estoira, demasiado grande e generoso, um coração enorme onde cabiam os sonhos todos de uma vida intensa. Dizem-me que morreste assim, Fernando Assis Pacheco, num instante, entre os livros da Bucholz e os projectos adiados de novas histórias vividas e contadas como só tu sabias.
A tua morte apanhou-me à traição, no átrio de um hotel de Innsbruck onde fui parar em época de gelada invernia por força da «profissão dominante»: mensagem manuscrita no inglês germanizado de Fräulein Pidle, a menina da recepção, com o recado do Pedro Castro, breve e terrível. Terrível demais para ser verdade.
«A morte tem inveja dos poetas», escreveu o Rogério Rodrigues que, tal como tu, sabe como é difícil falar dos amigos que de um momento para o outro desaparecem para sempre do nosso convívio. Invejosa, a grande magana não te perdoou, Assis, a irreverência, o talento, a generosidade.
«Faço versos para retardar o acidente coronário/ podia fazer ginástica de manutenção que era o mesmo/ disse de vez: ao diabo o nome nos índices remissivos!» Eras assim mesmo. Louco, directo, ternurento mesmo quando não querias que se desse pela lágrima camuflada nos poemas que distribuías pelos amigos em plaquetes semi-clandestinas, com a mesma naturalidade com que partilhavas o muito que sabias.
De notícias e de poemas, de púcaros e de manjares, infalíveis roteiros gastronómicos resumidos por vezes a duas ou três frases definitivas. Como quando, com o Eduardo Paes Mamede, te perguntei o que havíamos de manducar em terras gregas: «Comam o que vos parecer mais repugnante», disseste. E não é que resultou?
Falso fingidor, como todos os grandes poetas, procuravas sempre disfarçar os sentimentos naquela suave ironia que percorre todos os teus versos, todos os teus escritos. Agora, que morreste, não faltam os «amigos» a tecer loas descaradas e hipócritas q.b. Mas tu sabias, companheiro, quando escreveste aquele texto bonito sobre o Ruy Belo («Então agora vamos ficar sem o Ruy Belo?», perguntavas, e era como se gritasses), tu sabias cedo ou tarde tal iria acontecer.
Do que sobre ti se escreveu depois desse desgraçado 30 de Novembro guardo, ainda assim, meia dúzia de textos que não desdenharias. Sobretudo as palavras, sinceras e magoadas, de Jorge Amado e Cardoso Pires, a crónica do Fernando Alves, as recordações do Chico Bélard, os poemas de Manuel Alegre, a prosa contida de Afonso Praça nessa Visão que nunca soube merecer o teu (vosso) talento. Nada mau, dirias tu, que os tempos são de crise e mais vale um Amigo a sério que uma mão cheia de bajuladores.
E são muitos, ainda assim, os teus Amigos. Tu sabes, soubeste sempre, e foi por isso que aos 50 e poucos anos, foste capaz uma vez mais de romper as barreiras da respeitabilidade (que, como sabes, rima com mediocridade), o fato e gravata em que gostariam de te ver empacotado os que um dia, mais por conveniência deles que por convicção tua, fizeram de ti chefe de redacção d’O Jornal.
Foi por isso, essa vontade de não ceder às tentações normalizadoras da democracia de sucesso, que te fez apoiar o «último espaço poético da esquerda portuguesa» (é o Júlio Pinto quem o diz e eu assino por baixo), o PSR, que foi também o único partido por que alguma vez empenhaste as barbas. Afinal, melhor do que ninguém compreendias que para viver a vida a sério é preciso não levar muito a sério a realidade.
Um tio meu, que entrou em algumas das nossas conversas e era também dado à prática da grande poesia da vida, Américo Teles, escreveu uma vez num livrinho de circulação restrita que «a morte dos que nos são queridos só começa verdadeiramente no momento em que, por inexplicável desatenção do nosso espírito, os deixamos cair no esquecimento». É verdade, eu sei, e sei também que temos os teus poemas, o teu Benito, a recordação da tua gargalhada. Fraca consolação, mesmo assim, para quem contava contigo para tornar menos insuportável este quotidiano.
Agora que te foste, esta cidade e este país ficaram ainda mais chatos do que é costume. Nem que seja só por isso, deixa que te diga, emoção à parte, que não perdoo ao teu coração a partida traiçoeira que nos pregou. Fazes aqui, pá, muita falta.
Não se pode viver sem Utopia | Antologia de textos publicados no Combate entre 1986 e 1998
Colaborações de Alexandra Lucas Coelho, Ana Campos, António Gomes da Costa, Carlos Cunha, Eduarda Dionísio, Fernando Piteira Santos, Fernando Rosas, Francisco Louçã, Francisco Martins Rodrigues, Henrique Silvestre, João Mesquita, João Romão, José Manuel Morais, José Mário Branco, Júlio Machado Vaz, Júlio Pinto, Maria Irene Sousa Santos, Mário Dionísio, Mário Viegas, Madalena Barbosa, Miguel Vale de Almeida e Viriato Teles.
Edições Combate, 2008