O meu roteiro afectivo de e com José Afonso começou muitos anos antes do roteiro efectivo. E passa inevitavelmente por Setúbal e arredores, embora tenha começado em Aveiro, outra nossa cidade comum.
Explico: Aveiro, onde ambos nascemos, com quase 30 anos de diferença (quer dizer: ele nasceu mesmo na cidade, no Largo das Cinco Bicas, eu uns seis quilómetros mais a sul, na então vila de Ílhavo, mas vai dar no mesmo), foi também o lugar onde nos cruzámos “ao vivo” pela primeira vez, ainda na primeira metade dos anos 70 do século XX. Mas foi em Setúbal, uns anos depois, onde ele vivia e onde eu morei por uns meses, que mais nos cruzámos e definitivamente nos aproximámos.
A música de Zeca acompanhou-me desde a infância – o Menino D’Oiro é das minhas mais antigas recordações cantigueiras, ouvida no rádio ou cantarolado pela minha mãe, e as outras conheci-as à medida que fui crescendo e percebendo o mundo em volta – mas foi só já depois de Abril que o (ou)vi e estive com ele em carne-e-osso. Em Aveiro, pouco tempo após a Revolução, numa “sessão de cantigas” (como se chamava então aos espectáculos dos cantores da liberdade) que se realizou por iniciativa já não me lembro de quê ou de quem.
Eu era pouco mais do que um miúdo, a dar toques de aprendiz no ofício que havia de ser o meu: escrevia umas prosas para alguns jornais da região e de fora dela, a que haviam de seguir-se as colaborações regulares para uma revista que falou e deu que falar, o Mundo da Canção, MC para os amigos, do Porto.
Se esse primeiro encontro com José Afonso, em Aveiro, não teve grande história (e para ele, com certeza, nenhuma memória), já os que se seguiram foram naturalmente marcantes, como não podiam deixar de ser para qualquer jovem repórter – e, objectivamente, ajudaram a formar, na teoria e na prática, o jornalista que me tornei.
Quase a acabar a década de 70, uma inesperada sucessão de factores trouxe-me até Setúbal. Foi aqui que comecei a ganhar a vida como repórter, numa publicação que durou pouco – o Jornal de Setúbal – e por isso a minha permanência na cidade do Sado foi também de curta duração. Em finais de 79 estava já em Lisboa, a trabalhar noutro jornal, e é nessa altura que faço a minha primeira entrevista ao Zeca. Para o MC.
Em dez anos de vida, o Mundo da Canção nunca tinha entrevistado José Afonso – por nenhuma razão especial: talvez porque o Porto fica longe de Setúbal e não tinha havido até então oportunidade, ou apenas porque a música e a arte de Zeca estiveram em todas ou quase todas as edições do MC: foi com ele que se fez, em Dezembro de 1970, a capa do nº 12, a primeira a cores, dele e da revista; e foi com uma capa onde se destacava um disco dele, “Eu vou ser como a toupeira”, que o MC teve a edição de Março de 1973 apreendida pela PIDE.
Em 1979, Zeca tinha-se mudado já de Setúbal, cidade, para Vila Nogueira de Azeitão, onde vivia (no primeiro andar de uma casa da Rua da Sociedade Filarmónica Perpétua Azeitonense) e onde o reencontrei para essa primeira entrevista – e para boa parte das que se lhe seguiram. Era uma casa aberta a toda a gente. E essa conversa foi pretexto para alguns vai-vens entre Lisboa e Azeitão, e esteve na origem da foto (de Fernando Negreira) que irá ilustrar a capa interior das edições em vinil de “Fados de Coimbra e Outras Canções”.
Na meia dúzia de anos que se seguiu teremos feito, pelo menos, outras tantas entrevistas – a propósito dos discos, dos derradeiros concertos de 83, ou apenas dele mesmo – e muitas outras conversas, que não vêm ao caso. E que, por regra, sempre resvalaram das “cantigas” (como Zeca chamava à sua obra) para outras motivações que o animavam: políticas, culturais, quotidianas – isto nas entrevistas, porque nas conversas, por regra, falava-se de tudo isto, menos de canções.
Houve quem vivesse com Zeca muito mais histórias do que as que eu tive e poderia contar – e, estas, já estão a bem dizer todas contadas.
Recordo, por isso, apenas dois momentos que fará sentido lembrar no contexto deste roteiro: o primeiro, registado numa outra fotografia – que aqui se publica pela primeira vez – e que é também recordação de outro amigo, de Zeca e deste que se assina: Fernando Assis Pacheco, grande mestre e camarada de penografia e vida avulsa. A foto foi feita em Azeitão, algum tempos antes do concerto do Coliseu dos Recreios, em 83, quando fui com Assis e o fotógrafo Joaquim Bizarro até casa de Zeca, para mais uma entrevista – a pretexto do espectáculo, evidentemente.
Mais tarde, Assis fará também registo desse momento, em prosa publicada no JL em 1992, cinco anos após a morte de Zeca: «Privei pouquíssimo com o Zeca, não fiz parte dos seus amigos mais chegados, a última vez que estivemos juntos foi em casa dele e havia o sentimento pesado da morte que entrava já pela varanda, bulindo com os cortinados», conta Assis com mestria e modéstia. E mais adiante, no mesmo tom: «Em vinte anos não nos teremos encontrado duas vezes vinte vezes. Mas tive ocasião de escrever sobre os discos dele, ou somente sobre ele, entrevistei-o em Caldas da Rainha, lá fui uma tarde a Azeitão com o Viriato Teles – a cena dos cortinados – e depois foi o fim.»
Assis foi bastante mais próximo de Zeca do que, talvez por pudor, faz crer nesta crónica, que chega a ser comovente na descrição do «insuportavelmente belo» recital de despedida no Coliseu: «Ele sobe ao palco, ajeita os óculos, baralha-se com os papéis, tenta descobrir ao longe – mas não é possível, as luzes cegam-no – uma cara conhecida com quem dividir a emoção do momento. A minha servia, mas o Zeca está longe e não me topa. Digo-lhe adeus com a mão.»
O outro momento que faz sentido evocar neste roteiro, passa-se ainda noutra entrevista, na verdade a última que fiz com ele, em finais de 1985, após a publicação de Galinhas do Mato. Mais uma vez, em Azeitão, agora na última casa onde viveu, já a doença a tolher-lhe os movimentos e a voz, mas não o raciocínio. Rapidamente Zeca escapa-se às perguntas sobre o disco para falar daquilo de que realmente queria falar: o país e o mundo, e as pessoas que vivem num e noutro.
Zeca diz o que pensa sobre a situação política dez anos depois de Abril e do «sempre elogiado PREC». E a certa altura atira uma frase que, no universo colectivo dos amigos de Zeca, ficará como uma espécie de «carta de princípios» ou «manifesto», quase um resumo do que foi toda a vida dele. Assim: «O que é preciso é criar desassossego. Quando começamos a procurar álibis para justificar o nosso conformismo, então está tudo lixado! (…) Acho que, acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de ‘homenzinhos’ e ‘mulherezinhas’. Temos é que ser gente, pá!»
E é isto. Se calhar, é mesmo só isto.
In Lugares de José Afonso na geografia de Setúbal
Coord. Albérico Afonso Costa | Ed. AJA, Setúbal, 2019