Tudo se move, para lá da janela: árvores de papel, carros de brincar, casas de pau, cães de palha. Uma mancha de espuma percorre as ruas. Deixa água, algas, destroços, até à onda seguinte, em que tudo se renova.
A maré arranca o que o vento não consegue derrubar. O edifício resiste ao embate. Lá dentro, os corredores aparecem cheios de rostos temerosos e gente que reza instruções e evidências («há que manter a calma, camaradas: nada é eterno»). Todos falam ao mesmo tempo (vinte discos riscados tocando em simultâneo): todos dizem o mesmo com palavras diferentes, como na fila ou no comício — mania de falar: doze milhões de discos riscados tagarelando sem parar. O país inteiro é um disco riscado (tudo se repete: cada dia é uma repetição do anterior, cada semana, mês, ano; e de repetição em repetição o som degrada-se até que resta apenas uma vaga e irreconhecível lembrança do áudio original — a música desaparece, substituída por um arenoso murmúrio incompreensível). Um gerador explode ao longe e a cidade fica às escuras. O prédio é um buraco negro no meio deste universo que insiste em desmoronar-se com estrépito. Nada funciona, mas tudo continua igual. Sempre igual. Como um disco riscado que se repete sempre…
2
O vento atravessa as frinchas, a canalização assobia, o edifício é um órgão multifamiliar. Nada se assemelha à música do ciclone; é única, inconfundível, requintada. No pequeno apartamento, as paredes pintadas de uma cor qualquer, sem adornos nem imagens, combinam com os poucos móveis, o televisor de madeira, o gira-discos russo, o velho rádio, a máquina fotográfica pendurada num prego. O telefone fora do descanso e os livros no chão. A água escorre das janelas, as paredes lacrimejam, e formam-se charcos no chão. Lodo. Lixo e mais lixo. Um disco riscado e sebento. Milhões de discos riscados e sebentos. A vida inteira é um disco riscado e sebento. Repetição após repetição do disco riscado pelo tempo e a sujidade.
Na cozinha, duas latas de leite condensado, uma de tamal, um pacote de bolachas. Ao lado, um ovo, um pedaço de pão, uma garrafa de rum. Restos de duas refeições, com bolor. A batedeira num canto do patamar; a sertã sobre o fogão (a gordura na parede) e o frigidaire dos anos cinquenta, vazio e apagado, com a porta aberta. No quarto, a cama está ao centro. A casa de banho é minúscula, escura, sem água. O chuveiro quase nunca é usado: o balde e o jarro substituem-no. O tubo de pasta de dentes, o desodorizante, a lâmina de barbear: o espelho quebrado desenha uma cicatriz no reflexo.
Vai à varanda e uma rajada de vento atinge-o. Anónimo na imensidão da tormenta, abandonado à sua sorte e repetindo o disco riscado da vida e da morte, acende um cigarro ante esse postal do fim do mundo. Uma e outra vez, como um disco riscado, pergunta-se porque tudo parece imutável apesar dos arrebatamentos de cada mutação. O edifício resiste, sim, mas tudo o resto se afunda entre as algas e as coisas mortas deixadas pela maré. Finalmente sorri: com o passar dos dias, o mar vai curar a sua doença tropical e o repetitivo ciclo da rotina voltará, como um disco riscado, ao encontro da normalidade.
3
O disco riscado laboral. O escritório, a foto do governante, o guichê de metal, a cadeira das hemorróidas, a velha e anafada máquina de escrever, a esferográfica dum lado, os papéis amarelados, os carimbos, o telefone. O supervisor aparece. Sacode a papada, compõe com um gesto a alva goiabeira e aclara a garganta antes de falar. A voz dele lembra uma flauta quando recebe ordens e um trombone quando as dá. Como agora. Ao sair, deixa para trás o eco de uma porta batida com estrondo, e o outro fica por fim sozinho na repartição, mais negro, mais magro e mais nervoso do que é costume. Um pouco mais subordinado também.
Toca o telefone e o negro magro e nervoso atende sem demasiada convicção. Ouve apenas um ruído lá ao fundo — muito lá ao fundo, como um disco riscado — e desliga. Vai até à janela e acende um popular. A vida detém-se ante os seus olhos e não o espanta. Pensa que no fundo foi sempre assim, um repouso disfarçado de dy nam is. Olha para o seu relógio automático e soviético: dez da manhã e já não suporta o trabalho. É verdade que nunca morreu de amores por ele, mas agora está realmente farto (e de seguida, entre parêntesis, pergunta-se quando começou este agora). Tarde após tarde chega ao apartamento solitário e manhã após manhã abandona-o em solidão. Os vizinhos? Uma mistura de discos riscados destituído de interesse. O comité? Basta obedecer em silêncio, soltar um Viva! de vez em quando, e toda a gente fica contente. Na verdade, ninguém quer saber de ninguém.
4
Hora de almoço. O refeitório transborda de técnicos e burocratas e a fila parece a de uma estreia no cinema. A comida é tão barata como escassa, mas é melhor que nada e todos a agradecem. «Que estão a dar hoje?», perguntam os que esperam aos que saem. «O mesmo que ontem», respondem estes com indolência. Quando por fim chega a sua vez, observa com preguiça a bandeja militar: o círculo para o guisado, o quadrado para o arroz, o rectângulo para a batata-doce, o copo no seu redondel e, no sulco, os talheres. Come em dez minutos e sai em busca de cigarros. As escassas sombras do meio-dia não chegam para mitigar o calor, e menos ainda a humidade desta selva de estruturas decadentes e beleza secular. Ao longe adivinha-se o mar, mas hoje a sua brisa é pura ausência. Rosna uma queixa para o céu e detém-se junto à loja da esquina: Não há cigarros nem café, reza um cartaz escrito à mão. Como um disco riscado, rosna mais uma vez.
5
O dever e o querer. Matraqueia com raiva o seu dilema na máquina de escrever até perfurar o papel com pontos e vírgulas. Quer ficar sozinho na repartição, na cidade, no país, e que ninguém o chateie. A monotonia expressa-se de mil maneiras e apresenta diversos símbolos. O trabalho, a rádio, o noticiário, a comida, o ócio: Vivo num disco riscado, pensa, e de dia para dia mais riscado. A repetição adormece e essa sonolência repete-se também; por vezes a agulha salta, solta um estalido, altera o compasso e esbarra outra vez. Esbarra sempre outra vez.
Ouve passos firmes para lá da porta e sabe a quem pertencem. O relatório? Entrego-o num instante, responde. O supervisor olha para ele de lado, veias salientes no nariz, gestos bruscos, filho-da-puta. O supervisor repreende-o sem desalinhar o penteado (muita brilhantina, muita água-de-colónia, muito talco no pescoço, pensa). Sente vontade de o mandar à merda, mandar tudo à merda, mas só consegue mover a cabeça de um lado para o outro sem ritmo nem sentido, incapaz de compreender o porquê e o quê da repreensão.
— Ouve-me! — ruge o amo. — Tu estás a ouvir-me?
6
Fim da jornada. Oito horas a rever papéis, assinar circulares, pôr carimbos, escrever relatórios, fazer cópias, suportar o chefe, e pouco mais. Oito horas tão intermináveis como o Verão ou a solidão. Oito horas de entrega a nada. Mas hoje é dia de pagamento, e isso parece dotar de sentido o niilismo quotidiano, a farsa do contributo, o delírio do serviço.
Cheira o sobrescrito de papel grosso amarelo com o seu nome escrito à mão e conta as notas coloridas cujo valor, bem sabe, é tão relativo como a nossa realidade. Não quer voltar para casa e pensa antes num gelado; caminha sem pressa, vendo os discos riscados passar com os seus sorrisos de fim do mês, cheios de orgulho salarial. Não há silêncio na cidade: todos falam ao mesmo tempo, mais do que de costume, replicando o zumbido do zangão — e elas o da abelha-rainha. E aqui todas se julgam rainhas. Chega por fim à geladaria e a fila tira-lhe a vontade. Passa ao largo (entrar no cinema? esquece). Vira para San Lázaro5, afunda-se numa rua e naufraga num bar de esquina, escuro e aromatizado com urinas masculinas: balcão grande, mesas sujas, rum barato: nada mais. Ninguém sorri, ninguém o saúda. Cada um na sua.
Num canto, quatro tipos jogam dominó, como todos os dias do ano e todos os anos do tempo. Nunca varia o desfile de peças brancas, pontos negros, duplos-noves, gritos e blasfémias. Junto a cada jogador, o sempiterno copo de rum; ao centro, o cinzeiro cheio de beatas. É este, pensa, o disco riscado da cultura nacional. Noutra esquina, uma mulher taciturna, vestida com roupas sintéticas e polícromas, fala sozinha enquanto folheia o jornal de ontem. Quatro páginas, todas iguais, com o mesmo tom, a mesma lábia, a mesma trova, verbo e raiva.
A mulher resmunga.
Ele senta-se ao balcão, pede um rum, acende um cigarro e divaga para consigo: O universo é um disco riscado sem relatividade nem quântica alguma, cheio de sulcos de onde transcorre esta vida de poeira cósmica, gordura industrial e alcatrão quotidiano, pensa. Bebe um bom trago, faz um ruído com a garganta e inclina a cabeça, nauseado e agradecido:
O rum é a esperança do povo, pensa.
In "33 Revoluções", de Canek Sánchez Guevara
Tradução, introdução e notas de Viriato Teles
Edição Ponto de Fuga, 2017Comprar no Wook