Canek Sánchez Guevara, nascido em Cuba em 22 de Maio de 1974, começou por chamar a atenção do mundo, em primeiro lugar por uma questão genética: ele era filho da primogénita de Ernesto Guevara de La Serna, o mítico «Che» que lutou ao lado de Fidel Castro contra a tirania de Fulgencio Baptista — e que depois combateu no Congo e na Bolívia, onde morreu em 1967. A essa condição de «Neto do Che», suficiente para aguçar a curiosidade do mundo, juntou-se desde cedo a visão muito crítica do regime cubano, que Canek nunca escamoteou, embora recusasse fazer disso um modo de vida.
«Todas as minhas críticas a Fidel Castro e aos seus epígonos partem do seu afastamento dos ideais libertários, da traição cometida contra o povo de Cuba e da espantosa vigilância estabelecida para preservar o Estado acima das suas gentes», afirmou Canek em 2004, num testemunho publicado pela revista mexicana Proceso. «A minha crítica ao regime de Havana não surge porque ele seja comunista, mas sim porque não o é.»
Com este posicionamento, Canek demarcava-se da orientação política do governo cubano — ao mesmo tempo que descartava qualquer possibilidade de ser usado como bandeira pela direita anticastrista — e traçava um destino próprio, solitário e desalinhado como o pensamento livre que exprimiu sempre, consciente de que isso faria dele um protagonista mal-amado, quer à direita, quer à esquerda: à direita porque, embora fortemente crítico do regime, não renegava a sua origem familiar e ideológica; e à esquerda porque, ao apontar as deficiências e denunciar os dislates cometidos em nome da «revolução», converteu-se numa figura particularmente incómoda — muito devido ao apelido que transportava.
Refira-se a propósito que esta visão maniqueísta, hoje típica de boa parte da esquerda clássica um pouco por toda a parte, não fazia parte da prática inicial da revolução cubana original: durante os primeiros anos da década de sessenta, a crítica era não só era aceite como incentivada e praticada com genuíno espírito revolucionário — e são disso exemplo e prova publicações históricas (e já desaparecidas) como El Caymán Barbudo (onde assinaram textos notáveis nomes como Guillermo Cabrera Infante, Luis Rogelio Nogueras ou Heberto Padilla) ou a revista Pensamiento Crítico (publicada entre 1967 e 1971 sob a direcção de Fernando Martínez, tendo como colaboradores Victor Casaus, Eduardo Castañeda, Guillermo Rodríguez Rivera ou Juan Pérez de la Riva, entre outros). Mas essa realidade mudou à medida que o desencanto foi crescendo — na razão directa da burocratização do Estado e dos organismos culturais — e terminou definitivamente com o advento do chamado «quinquénio cinzento»2, no início da década de setenta. Instalou-se, a partir de então, uma cultura de silenciamento sistemático de qualquer dúvida ou questão que pudessem pôr em causa a infalibilidade do regime. Dentro e fora de Cuba, como assinalou Canek a propósito de um livro do anarquista uruguaio Daniel Barret:
Durante décadas, a crítica ao poder cubano (ou à «revolução», como se insiste em chamar ao Estado totalitário) foi propriedade tanto da direita como de liberais de todo o tipo. Assim, para a esquerda — singularizo, mesmo sabendo da multiplicidade de ideias e vertentes que a expressão abrange —, qualquer questionamento do regime, das suas limitações ou excessos, chegou a ser considerado um delito maior do que aquele que se devia denunciar. E assim a frase «dar armas ao inimigo» tornou-se comum, quase tanto como aquela outra, também do breviário popular, que avisa para que «a roupa suja lava-se em casa». Os temas delicados da construção do socialismo (fuzilamentos, repressão, controlo sobre os indivíduos, proibição da livre associação, capitalismo de Estado, classismo, burocracia, centralização da ideologia e da produção) foram justificadas em nome de causas maiores — o comunismo — ou, na falta dele, do mais poderoso dos inimigos, os Estados Unidos da América.
Chamar revolução ao Estado foi sem dúvida um grande golpe político do nascente governo cubano, e aceitá-lo a pés juntos, o mais grave erro dialéctico (e não só) da esquerda. Uma vez consumado o desatino, tudo encontra justificação plausível (ou pelo menos ideologicamente correcta) e qualquer dúvida ou crítica se sepulta de imediato sob o pesado e pouco atraente adjectivo de «contra-revolucionário» — ou sob aquele outro, ainda mais feio, de «gusano»4. Esta lógica (para lhe dar um nome) não apenas encontrou espaço no âmbito policial interno, como também na linguagem de certa esquerda internacional, bem-intencionada ou não, que no fim de contas acabou por comportar-se, também ela, como polícia do regime «revolucionário».
Com uma infância repartida por vários países e a adolescência vivida em Cuba, Canek saiu definitivamente da ilha em 1996, um ano após a morte da mãe, Hilda Beatriz Guevara Gadea (falecida em Havana aos trinta e nove anos, a mesma idade que tinha o «Che» quando foi morto na Bolívia), e encetou o seu próprio caminho de «vagabundo profissional, observador internacional, antropólogo urbano, filósofo de supermercado, cronista do que carece de interesse, escritor de nada em concreto», como afirmou numa das últimas (raras) entrevistas que concedeu. Politicamente, definia-se com termos e conceitos capazes de causar embaraços quer ao regime que o avô ajudou a implantar em Cuba, quer a todos quantos acreditam que a vida (e a política com ela) se vive a preto-e-branco:
Anarquista, libertário, liberal ultra-radical, democrata subterrâneo, comunista-individualista, ego-socialista. Enfim, qualquer coisa que não me seja imposta e que eu não possa impor aos demais.
Por outras palavras:
A ideologia como ausência de ideologia. O problema é este: etimologicamente falando, ideologia significa (ou significaria) estudo das ideias; mas convertemos as ideologias em novas religiões, quer dizer, ideologias enquanto ideias fixas que pretendem explicar um mundo dinâmico. Isso é uma visão religiosa, e eu, lamento dizê-lo, sou completamente ateu. Não acredito nem nas ideias…
Isto não queria dizer que não as tivesse, bem pelo contrário:
São na verdade incompatíveis o socialismo e a democracia? Eu penso que não, que não deve ser assim, e que onde não há liberdade individual não pode haver verdadeira liberdade social, porque afinal de contas a sociedade é sempre feita de pessoas. Não há socialismo onde as pessoas não têm verdadeiro poder de decisão no que respeita ao social, não há socialismo onde um ditador decide os destinos de um povo.
Educado «na discussão e no questionamento perpétuos», a ascendência familiar, sendo importante, não foi tão decisiva para a formação de Canek como o resto: «Penso que, mesmo que não fosse neto do comandante Guevara», afirmou em 2005, «se tivesse, apesar disso, crescido no ambiente em que cresci, pensaria mais ou menos como penso hoje, porque a minha relação com os ideais revolucionários não provém do meu apelido, mas sim do riquíssimo mundo de discussão e participação política em que cresci.»
Forjada neste ambiente de diálogo, reflexão e análise permanentes, a personalidade de Canek Sánchez Guevara facilmente entrou em rota de colisão com a doutrina oficial de Cuba, mas também com as outras. E, como era inevitável, a relação — afectiva e política — de Canek com a memória do avô Ernesto foi igualmente construída contra as várias correntes dominantes: «A esquerda reduziu-o a um guerrilheiro heróico, e a direita a um carniceiro da revolução», dizia. «E ambos os retratos são redutores.»
Em contraponto a estas interpretações fechadas da vida e obra do «Che», Canek preferia destacar aquilo que, em sua opinião, realmente importava:
À margem de qualquer princípio político-ideológico, há duas coisas que admiro sobremaneira em Ernesto Guevara: o seu internacionalismo e o seu aventureirismo, dos quais sem dúvida me alimentei também. Admiro a sua consequência; essa força que, ao contrário de outros, o fazia ir à frente das tropas, inclusivamente na derrota. Morreu como viveu, apostando no ideal, lutando pelo que acreditava ser correcto e com os métodos que considerava correctos. E quem sou eu para julgar isso? No entanto, é preciso dizer que detesto os seus poemas…
O sentido da ironia foi, sem dúvida, um dos traços de carácter que Canek herdou do avô.
No princípio deste século, a viver no México, Canek furtou-se deliberada e convictamente a qualquer tipo de actividade política organizada, preferindo em vez disso envolver-se em projectos diversos, individuais ou colectivos, que lhe eram intelectualmente estimulantes. Inevitavelmente, a sua visão iconoclasta da revolução e da vida atraiu as atenções da comunicação social, e valeu-lhe o rótulo — verdadeiro, mas redutor — de «neto rebelde». E é também como reacção a esse olhar simplista que, em 2004, e a pedido do amigo Carlos Manuel Estefanía, editor da revista Cuba Nuestra (publicada na Suécia por exilados cubanos), Canek escreve o (longo) resumo autobiográfico que adiante se transcreve, um texto que ajuda a traçar com mais clareza o seu perfil — embora o próprio desvalorizasse aquilo a que chamava «a biografia de um inútil» — e que resumia numa simples frase: «Vivo de acordo com os meus próprios valores, faço o que gosto de fazer. Definitivamente, sou feliz.» (...)
In "33 Revoluções", de Canek Sánchez Guevara
Tradução, introdução e notas de Viriato Teles
Edição Ponto de Fuga, 2017