Um século após as primeiras emissões de rádio de que há notícia em território português, e numa altura em que se assinalam os 80 anos do início das emissões regulares da rádio pública em Portugal, é oportuno lançar um olhar sobre o longo e acidentado caminho que marcou os primeiros anos da rádio no nosso País.
A Emissora Nacional de Radiodifusão (EN, transformada após a revolução dos cravos em RDP, Radiodifusão Portuguesa, e actualmente integrada, juntamente com a televisão pública, na RTP – Rádio e Televisão de Portugal) iniciou a actividade, com carácter regular, em 1935.
Mas a história da Rádio em Portugal começa bastante mais cedo e cruza-se desde muito cedo com a dos «senfilistas» (praticantes da TSF, telefonia sem fios) da primeira década do século XX. Vive os primeiros momentos de esplendor com as «emissões» dos Grandes Armazéns do Chiado, nos anos 20, mas é já só após a consolidação da ditadura do Estado Novo que a Rádio se afirma definitivamente.
Criada num tempo de ausência de liberdade, a rádio começa por ser moldada nos parâmetros da «política de espírito» proclamada e estruturada por António Ferro para melhor servir o regime. Mas nem por isso desprezou o seu papel de serviço público – ideologizado, claro está, e por isso naturalmente manipulador – que no entanto precisaria de mais quase meio século para poder sê-lo em toda a sua dimensão.
Introdução
Numa abordagem da génese do serviço público de rádio em Portugal não podemos deixar de ter em conta as duas concepções que estiveram na origem da radiodifusão enquanto meio de comunicação de massas, e que se traduziram em outros tantos modelos distintos que, nas suas linhas mestras e apesar de todas as transformações ditadas pela evolução política, social, tecnológica e comunicacional das últimas décadas, se mantêm até aos nossos dias: por um lado, o modelo liberal norte-americano, fiel à filosofia económica dominante e ao princípio constitucional da liberdade de expressão; e, por outro, o modelo estatal europeu, desenhado no convulsivo contexto sociopolítico do período entre as duas guerras mundiais.
Um e outro se revelaram, alternadamente ou em simultâneo, como modelos possuidores de defeitos e de virtudes. O modelo norte-americano, criado para ser independente dos poderes políticos, acabaria por ficar sujeito, quase desde o início, aos poderes económicos. A publicidade comercial, principal fonte de financiamento das estações de rádio, rapidamente deixou de depender dos programas existentes para se tornar ela mesma num elemento determinante na formatação dos espaços radiofónicos, concebida em função dos interesses dos patrocinadores.
Por outro lado, o modelo europeu, que ambicionava uma maior qualidade e se propunha ser um veículo de entretenimento, mas também de formação cultural e de informação das populações, possuía também óbvias fragilidades já que a rádio, dependente dos dinheiros públicos, podia facilmente ser instrumentalizada pelo Estado e transformada num veículo de propaganda, como aconteceu por várias vezes -ao longo do século XX, e não apenas em regimes totalitários.
Porém, nos primeiros anos não existia uma noção concreta da utilidade efectiva da rádio para as populações. Como observou Raymond Williams (1921-1988), «ao contrário de todas as tecnologias de comunicação anteriores, a rádio e a televisão foram sistemas desenhados sobretudo para transmissão e recepção como processos abstractos, com pouca ou nenhuma definição de conteúdos prévios»1.
Quando esses conteúdos começaram a ser estabelecidos (e foi só a partir de finais da década de 30 que a rádio passou a ser um verdadeiro concorrente da imprensa enquanto órgão de informação) as opiniões dos defensores e dos detractores da telefonia agudizaram-se: de «prodigioso meio de cultura» e «promotor da democracia e da igualdade» a factor de «confusão intelectual» e de «alienação política», praticamente não houve atributo não lhe fosse imputado2.
Em 1936, o professor Rudolf Arnheim (1904-2007) foi um dos primeiros a analisar a rádio numa perspectiva comunicacional, classificando-a como «uma arte do som». Com formação em Filosofia e História da Arte, Arnheim não escondia o seu fascínio perante o novo mundo de sensações que o então ainda recente meio de comunicação podia proporcionar: «Na rádio, os sons e as palavras revelam a realidade com a sensualidade do poeta, e nela se encontram os tons da música, os sons quotidianos e espirituais, fazendo assim a música penetrar no mundo das coisas (...) e a nova realidade criada pelo pensamento surge de modo muito mais imediato e mais concreto do que no papel impresso: o que até há pouco eram apenas ideias escritas, passou a ser algo materializado e bastante mais vivo.»3
Na mesma altura, o escritor Georges Duhamel (1884-1966) mostrava-se muito mais céptico relativamente às virtualidades da radiodifusão: «Longe de contribuir para a verdadeira cultura, a rádio propaga o gosto pelas noções superficiais de fácil apreensão e que logo se esquecem.»4, afirmou. Não deixa, porém, de ser curioso verificar que esta hipercrítica análise do fenómeno radiofónico foi produzida, em Outubro de 1938, aos microfones de uma estação de rádio.
Evidentemente que, como acontece com qualquer outro meio de comunicação, a rádio não é, em si mesma, naturalmente boa nem naturalmente má. Marshall McLuhan (1911-1980) deu conta de que «a rádio atinge as pessoas na sua intimidade, estabelecendo uma relação de pessoa a pessoa que abre todo um mundo de comunicação entre o autor-locutor e o ouvinte».5 Mas, a despeito deste carácter «personalizado» da comunicação radiofónica, foi justamente através da rádio que a «aldeia global» enunciada por McLuhan começou a ganhar forma.
Como refere José Augusto dos Santos Alves, a rádio «foi a primeira a abolir as distâncias, fazendo ouvir os antípodas», tal como veio a acontecer mais tarde com a televisão, e «a difusão, por estes institutos de comunicação de mensagens informativas, culturais ou distractivas, transmite uma nova dimensão às relações sociais»6. De facto, a vulgarização das transmissões de rádio, possibilitou à generalidade da população aceder a informações e conhecimentos que, através da imprensa, eram alcançáveis directamente apenas pelos que possuíam algum grau de alfabetização.
Neste trabalho iremos analisar sucintamente a evolução da rádio em Portugal, paralelamente ao que sucedeu na Europa e nos Estados Unidos, desde os primórdios até 1940, quando a «política do espírito», definida por António Ferro (1895-1956) para o regime saído do golpe militar de 1926, atingiu o apogeu. Veremos como se desenvolveram as primeiras emissoras portuguesas, desde as experiências isoladas dos radioamadores da primeira década do século XX até aos projectos profissionais mais sólidos surgidos a partir de 1920 e que culminaram no aparecimento, na década de 30, das três grandes estações que iriam manter-se durante toda a ditadura – Rádio Clube Português, Rádio Renascença e Emissora Nacional – bem como as relações de todas elas com a máquina de propaganda do Estado Novo.
Deste intrincado conjunto de relações procuraremos, por fim, demonstrar até que ponto a rádio portuguesa, na sua génese, correspondeu aos propósitos do serviço público, aqui entendido, de acordo com a perspectiva que se desenvolveu na Europa a partir da Revolução Francesa, como abrangendo o conjunto de necessidades, direitos e interesses colectivos que, pela sua natureza, escassez ou indispensabilidade devem ser geridos como bens sociais, tendo em conta o interesse comum dos cidadãos.
Antecedentes e origens da radiofonia
A origem da radiodifusão não pode ser dissociada do conjunto das grandes invenções e descobertas que marcaram todo o século XIX. Os estudos de Von Ritter, Georg Ohm e Michael Faraday na área da electricidade, a descoberta do electromagnetismo por Hans Christian Ersted, as teorias de James Maxwell, mais tarde confirmadas por Hertz, sobre a propagação das ondas electromagnéticas, a invenção do fonógrafo por Edison e do telefone por Bell7, são alguns dos feitos que antecederam e concorreram, em alguns casos decisivamente, para o aparecimento da actividade radiofónica8.
Contudo, se foram muitos os que contribuíram activamente para o aparecimento desse meio que iria revolucionar os sistemas de comunicação, não será excessivo afirmar que os elementos fundadores da radiodifusão se encontram em duas descobertas essenciais do século XIX, separadas entre si por pouco mais de 50 anos: por um lado o telégrafo, criado em 1838 por Samuel Morse9, que constituiu a primeira aplicação prática das leis do electro-magnetismo, descobertas por Ersted em 1819 10, e provou que a comunicação à distância em tempo real era possível; e, por outro, o aparecimento do sistema de telegrafia sem fios, desenvolvido nos últimos anos do século XIX, através do qual foi possível superar a barreira física que as linhas telegráficas representavam.
Em 1894, o italiano Guglielmo Marconi teve conhecimento das experiências realizadas, poucos anos antes, pelo cientista alemão Heinrich Hertz, através das quais foi possível demonstrar a existência das ondas de rádio. Usando o gerador de Hertz como emissor e, como receptor, o detector de ondas electromagnéticas criado quatro anos antes por Édouard Branly (que seria entretanto melhorado por Oliver Lodge), Marconi começou a realizar experiências em casa dos pais e, em pouco tempo, conseguiu fazer tocar uma campainha colocada a alguns metros de distância enviando um sinal de rádio. Alguns meses depois já era capaz de alcançar os três quilómetros, o que o entusiasmou a procurar apoios financeiros para desenvolver a sua descoberta. No entanto, o desinteresse dos italianos pela descoberta levou-o a instalar-se em Londres onde, com o apoio dos Correios, pôde dar seguimento às investigações e, ao fim de poucos anos, conseguia realizar a primeira emissão através do canal da Mancha11.
A importância do trabalho de Marconi, para além do interesse científico – pela primeira vez, a telegrafia sem fios deixava de ser para o mundo uma simples possibilidade teórica12 – tornou-se também rapidamente mensurável em termos sociais, políticos e comerciais. Logo em 1898, a Wireless Telegraph Company, criada por Marconi para a exploração da descoberta, firmava contrato com a marinha britânica para o fornecimento de equipamentos de transmissão que iriam revelar-se muito úteis na coordenação dos meios navais envolvidos na guerra dos Boers. De seguida, foi a vez de a companhia de seguros Lloyd’s encomendar a Marconi o equipamento necessário para pôr em contacto a sua rede de agentes espalhados pelos principais portos.
Obtido o sucesso comercial, o aperfeiçoamento do invento não tardou: a partir da descoberta da sintonia por Lodge, possibilitando a captação de uma mensagem na mesma frequência em que é emitida, e da utilização da antena inventada por Alexander Popov, que permitia a transmissão de ondas de rádio a grandes distâncias, Marconi conseguiu fazer com que, em 1901, um sinal emitido a partir da Cornualha atingisse o porto de St. John’s, na Terra Nova, percorrendo uma distância de mais de 3000 quilómetros.
Durante os primeiros dez anos, o invento de Marconi foi usado apenas para a transmissão telegráfica de sinais convertíveis em palavras. Somente em Dezembro de 1906 se realizou aquela que é considerada a primeira transmissão radiofónica, a partir de um emissor situado em Brant Rock, no estado norte-americano de Massachusetts. O seu autor foi o canadiano Reginald Aubrey Fessenden, que desde 1900 trabalhava no aperfeiçoamento do sistema de Marconi, de modo a permitir também a transmissão de sons. Logrou o objectivo quando conseguiu substituir as ondas amortecidas, usadas em radiotelegrafia, por ondas de amplitude constante, capazes de suportar as modulações da voz humana13. E, na véspera de Natal de 1906, reuniu a família e alguns amigos para assistirem à concretização da experiência:
«Fiz um pequeno discurso acerca do que estava a realizar e, a seguir, passei o Largo de Haendel no fonógrafo», explicou mais tarde. «Depois toquei, no meu violino, a composição Holy Night e terminei com um verso do Adore and be still. Voltei a tocar violino e tentei cantar, mas a minha voz não era muito boa... Continuei lendo um texto da Bíblica, precisamente a história do Natal do Evangelho de S. Lucas. Fechei a emissão desejando a todos – àqueles que, por sorte, me estivessem a ouvir – um santo e feliz Natal.»14
A emissão de Fessenden foi captada por vários navios no Atlântico e marcou o início, embora tímido, da era da radiofonia15, possível em grande parte graças ao trabalho de outro pioneiro, o norte-americano Lee De Forest, inventor do tríodo, uma válvula electrónica que permitia estabilizar a frequência e tornar mais eficaz a transmissão de som e seria mais tarde utilizada também nas emissões televisivas. Foi, aliás, De Forest quem realizou uma primeira transmissão de um espectáculo de música em directo pela rádio, em 1910, a partir da Metropolitan Ópera de Nova Iorque, e a ele se deve aquela que terá sido porventura a primeira acção de intervenção política radiodifundida, com um apelo ao direito ao voto das mulheres16. Para o sociólogo Patrice Flichy, Lee De Forest «foi um inventor tão importante como Marconi, pois ambos estabeleceram as técnicas de base da rádio e definiram os usos sociais»17.
No entanto, até 1920, a utilização da rádio como meio de comunicação para fins não militares esteve praticamente limitada aos radioamadores. Como explica Matos Maia, «uma das razões da infância prolongada da rádio foi o facto de, nos primórdios, ainda não ter sido produzido o equipamento necessário para as comunicações radiofónicas em massa»18. Mas não foi a única, e a deflagração da I Guerra Mundial contribuiu também para retardar o desenvolvimento da radiodifusão enquanto cultura de massas. Logo a partir de 1910, a rádio, embora ainda uma actividade amadora e experimental, ganha alguma importância em vários países europeus, sobretudo na Alemanha, onde as primeiras experiências de transmissões datam de antes do início do conflito19. E, em 1912, o engenheiro francês Raymond Braillard chegou a propor a uma estação belga um sistema para «a divulgação de mensagens dirigidas a destinatários desconhecidos»20, mas a actividade dos radioamadores foi proibida após o início da guerra e o projecto não chegou a avançar.
Do outro lado do mundo, nos Estados Unidos, um funcionário da sucursal norte-americana da Marconi Company, David Sarnoff, sugeriu em 1916 à direcção da empresa a criação de um aparelho, a que chamou «radio music box», que permitisse levar música às casas das pessoas, em complemento às emissões públicas que já se faziam nos jardins de algumas cidades. Mas viu a sua proposta recusada, por razões que igualmente tinham a ver com a guerra: os esforços da companhia estavam voltados para a exploração da rádio pelas forças militares e, além disso, a população em geral considerava a transmissão radiofónica como «um passatempo divertido, mas de pouca utilidade»21.
O projecto de Sarnoff seria retomado anos mais tarde, quando a Marconi Company se tornou na Radio Corporation of America, em 1919. Em Maio desse mesmo ano surge em Montreal, no Canadá, a XWA/CFCF, a primeira estação de rádio com emissões regulares.22 No ano seguinte foi a vez de surgir, nos Estados Unidos, a KDKA, uma estação financiada pela Westinghouse Electric Company e idealizada pelo engenheiro Frank Conrad, que transmitia regularmente programas musicais e de voz. A primeira emissão «oficial» da KDKA aconteceu a 2 de Novembro desse ano, a partir de um estúdio montado em Pittsburgh, no estado de Pensilvânia, e consistiu na transmissão dos resultados da eleição presidencial que opôs o senador Warren Howard ao governador James Cox23. Era o início da radiodifusão como meio de comunicação de massas.
Os primeiros passos da radiodifusão
Em Portugal, tal como no resto do mundo, a rádio começou por ser uma actividade amadora a que se dedicavam alguns técnicos de telegrafia e muitos curiosos sem formação específica, mas interessados na ciência da rádio.
Foi através dos «senfilistas» (como eram designados os operadores de telefonia sem fios) que a radiofonia deu os primeiros passos, ainda no tempo da monarquia. As mais antigas experiências radiofónicas de que há registo datam de 1902 e foram realizadas por um aluno da Escola Politécnica, José Celestino da Costa, mas a rádio era demasiado jovem e pouco conhecida, pelo que suscitava a desconfiança dos poderes constituídos. Em consequência, Costa acabaria por ter o seu equipamento técnico apreendido pela polícia24. As primeiras transmissões referenciadas em território português datam de 1912 e 1914 e são atribuídas, respectivamente, a Alberto Carlos de Oliveira (a partir de Cabo Verde, onde era telegrafista) e Fernando Cardelho de Medeiros, futuro fundador da Rádio Hertz (a partir de Lisboa), que efectuou a primeira transmissão de música via rádio. Em qualquer dos casos tratou-se de emissões muito rudimentares e que terão sido ouvidas por um reduzidíssimo número de radioamadores 25.
A primeira regulamentação da actividade radioamadora em Portugal surgiria apenas em 1916, através do decreto 2322, de 8 de Abril, considerando como amadores «os rádio-escutas, os amadores emissores e os estudiosos que se dedicavam à TSF sem qualquer objectivo económico»26. A instalação de postos emissores, porém, continuou muito condicionada e sujeita à vontade arbitrária da Administração-Geral dos Correios e Telégrafos. Tal não impediu, porém que, até aos princípios da década de 20, vários pequenos emissores fossem sendo instalados um pouco por todo o país, sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, dando origem posteriormente a um conjunto de pequenas estações, tais como a Rádio Guia, Rádio do Parque, Rádio Graça, Rádio Condes (em Lisboa), Ideal Rádio, Rádio Porto ou Rádio Orsec (no Porto).
No entanto, a radiodifusão em Portugal só teve verdadeiramente início, de uma forma regular e semi-profissional, em 1924, com a entrada em funcionamento do posto emissor P1AA, dinamizado por Abílio Nunes dos Santos Júnior. Filho e sobrinho dos proprietários dos Grandes Armazéns do Chiado, Santos Júnior era desde muito jovem um estudioso da radioelectricidade e um apaixonado pela telegrafia sem fios. A abastança familiar permitiu-lhe viajar pelo mundo e contactar com a realidade da radiofonia nos países onde a nova ciência começava a implantar-se e é com base nesse conhecimento que decide instalar, numa dependência dos Armazéns do Chiado, um posto emissor de rádio. O P1AA emitiu regularmente em onda média até 1929, altura em que passou a designar-se pelo indicativo de chamada27 CT1AA, de acordo com as normas da Convenção Radiotelegráfica Internacional realizada em Washington dois anos antes. Foi ainda em 1929 que passou a transmitir também em ondas curtas, visando as colónias portuguesas de África, com o nome de Rádio Colonial, estação que se manteve activa até 1938, quatro anos após o encerramento das emissões em Portugal28.
As emissões de Santos Júnior e da sua pequena equipa (três locutores, um inspector de emissões e alguns operadores) eram captadas num raio de aproximadamente 400 quilómetros29 e visavam essencialmente o entretenimento e algumas actividades de carácter cultural, com transmissão de concertos às quintas-feiras e sábados. Além dos estúdios de Lisboa, primeiro na Rua do Carmo e depois alargados à Avenida Duque d’Ávila, e do posto emissor, na Avenida António Augusto de Aguiar, o CT1AA dispunha ainda de ligações permanentes a algumas importantes salas da capital, com linhas telefónicas instaladas em duas salas da Sociedade de Geografia e nos teatros Variedades, Maria Vitória e Almeida Garrett. Dotada dos mais modernos meios técnicos da época, a estação de Santos Júnior incluía três estúdios de emissão, um deles com capacidade para uma orquestra de cem executantes. Era, sem dúvida, uma das mais importantes estações do seu tempo, e chegou a ser referenciada por uma revista inglesa da especialidade como uma das mais potentes emissoras europeias.30
O CT1AA surge referenciado em várias publicações também com as designações de Rádio Lisboa e Rádio Portugal, embora alguns historiadores sugiram haver uma diferença entre o programador (a estação de rádio) e o transportador (o posto emissor). Por outro lado, sabe-se ter existido uma Rádio Lisboa, ligada a um estabelecimento comercial com o mesmo nome e dinamizada por José Joaquim Dias Melo, e uma Rádio Portugal, propriedade do comerciante de equipamentos eléctricos Jaime Esteves. Uma revista de 1925, a Rádio Lisboa Magazine, inseriu no seu número de Maio uma notícia em que dava conta de um concerto, «o primeiro dado pela Rádio Portugal», que havia sido «emitido pelo posto de amador CT1AA gentilmente cedido para esse efeito pelo seu proprietário», mas uma referência noutra revista, TSF em Portugal, não faz qualquer distinção entre a Rádio Portugal e o CT1AA. Em todo o caso, acabaria por ser o indicativo que perdurou como mais sólida designação da emissora de onda média de Santos Júnior, até ao seu encerramento em 1934, nas vésperas do início das transmissões experimentais da Emissora Nacional.31
O final da I República e a Ditadura Militar
Apesar destas experiências pioneiras, a radiodifusão em Portugal registou durante a década de 20 um desenvolvimento tímido, marcado pelo aparecimento e desaparecimento de mais de uma dúzia de emissores, só em Lisboa, todos de iniciativa de comerciantes e amadores de telefonia. Até à instauração do Estado Novo, e ao contrário do que sucedeu noutros países europeus, como a Inglaterra, a Alemanha ou a Itália, o governo não se mostrou interessado na criação de uma emissora oficial, ou pelo menos não actuou nesse sentido.
Mas o aparecimento de rádios de iniciativa privada também não era incentivado, chegando mesmo os postos emissores existentes a ser encerrados por alguns meses, em 1925, por imposição da Administração dos Correios e Telégrafos. Em Portugal, como em outros países europeus, a rádio era um meio olhado com prudência por parte dos responsáveis governamentais que, no entanto, também não interferiam grandemente na sua actividade – à excepção de algumas situações pontuais, como o encerramento compulsivo atrás citado, que acabaria por ser revogado ao fim de pouco tempo por pressão das associações de radioamadores.
Esta situação de indefinição do estatuto da radiodifusão manteve-se até aos primeiros anos da ditadura militar, em contraste com o que sucedeu noutros países, como a Inglaterra, onde a BBC, criada em 1922, começa por ser uma empresa de capitais privados – sobre a qual, no entanto, o Estado exerce um forte controlo, ainda que com um mínimo de interferência directa – para se transformar em propriedade pública a partir de 1927. Os efeitos perversos da publicidade comercial sobre a programação, testemunhados pelos ingleses nas rádios norte-americanas, estiveram na origem desta decisão, uma vez que se entendia ser preciso «dar ao público não aquilo que este deseja, mas sim aquilo de que necessita»32 o que, na percepção dos responsáveis, não seria possível através da adopção do modelo em vigor nos Estados Unidos, onde a intervenção estatal na actividade radiofónica era inexistente.
Nos Estados Unidos, em 1925, apenas cinco anos após as primeiras emissões, o número de postos emissores que difundiam programas regulares destinados a um público não identificado atingia os 578. E se um ano depois das primeiras transmissões radiofónicas já havia 50 mil receptores em toda a federação, quatro anos mais tarde esse número já atingia os quatro milhões e no final da década de 20 rondava já os dez milhões.33 Até 1927 não se verificou qualquer intervenção do Estado no sector radiofónico, e esta situação só se alterou com a aprovação do Radio Act e a criação da Federal Radio Commission, destinada a vigiar a potência dos emissores e licenciar a sua actividade, de modo a regular o caos que começava a instalar-se no espaço radioeléctrico que, no entanto, permanecerá integralmente entregue a empresas privadas, sendo os custos de exploração suportados pela publicidade comercial.34
Na Europa do início dos anos 20, o panorama inicial era, de um modo geral, o oposto. Na maioria dos países, o Estado não se mostrava disposto a abdicar do monopólio da rádio, conseguido durante a I Guerra Mundial quando a actividade radioamadora foi praticamente suprimida e a radiodifusão privada era praticamente inexistente. Na Alemanha, em 1923, um pequeno número de empresas conseguiu autorização para realizar emissões públicas, mas dois anos depois todas estas estações seriam reagrupadas na Reichs Rundfunk Gesellschaft (Sociedade de Radiodifusão do Reich), antecessora da Deutsche Welle. A publicidade comercial é proibida e o governo institui uma taxa sobre os receptores de rádio, tal como acontecerá, algum tempo depois em Itália, com a Unione Radiofonica – e mais tarde também em Portugal, com a Emissora Nacional.
Já a França segue, de início, um caminho ambíguo, de algum modo semelhante ao que aconteceu em Portugal. Os primeiros postos radiofónicos pertencem ao exército, que desde os primeiros anos do século instalou antenas na Torre Eifel – um acontecimento que se revelou determinante para a conservação do monumento35 –, mas é a partir deles que são transmitidas as primeiras emissões para o grande público, a partir de 1922, a cargo de estações privadas. Nos anos seguintes, a situação da rádio neste país flutua entre o sector privado e o sector público, ao sabor das vontades dos vários governos, mas só em 1945 é decretado o monopólio estatal da actividade radiofónica, com a criação da Radiodiffusion Française (RDF), que irá manter o controlo quase total da radiofonia no país durante 30 anos.
Em Portugal, o primeiro decreto regulamentar sobre comunicações radioeléctricas seria publicado em 1930, após a instauração da Ditadura Nacional36, estabelecendo-se aí o monopólio do Estado sobre «todos os serviços de radiotelefonia, radiodifusão e outros que viessem a ser descobertos e se relacionassem com a radioelectricidade», podendo no entanto ser concedidas licenças a privados «para o estabelecimento e exploração de estações emissoras experimentais, ou para estudos científicos»37.
Tal não impediu, porém, que continuassem a operar, durante alguns anos, um conjunto de pequenas emissoras locais38 e outras de âmbito mais alargado, como a pioneira CT1AA de Santos Júnior, ou a CT1DY, fundado em 1928 por Jorge Botelho Moniz e Alberto Lima Basto, que em três anos depois vai dar origem ao Rádio Clube Português. As programações das várias rádios não variavam muito entre si e eram constituídas essencialmente por transmissões de música intercaladas com conferências e alguns blocos noticiosos. Os espaços musicais tinham, por vezes, o nome das editoras discográficas («Programa Polydor», «Programa Odeon», etc.) a cujos catálogos pertenciam as obras apresentadas.39
O advento do Estado Novo
Uma das primeira medidas da ditadura saída do golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi a instauração de um regime de censura prévia sobre todas as publicações periódicas, manifestos, cartazes, livros ou quaisquer outros documentos que tratassem matéria política.
Na regulamentação dos Serviços de Censura levada a cabo pelo governo em Abril de 1933, menos de um mês após o plebiscito que aprovou a nova Constituição, a fiscalização preliminar da imprensa era justificada como um «meio indispensável a uma obra de reconstrução e saneamento moral», pelo que não poderiam ser permitidas referências a «assuntos que se liguem directamente à ordem pública, notícias de atentados de carácter político, notícias de julgamentos por carácter político, notícias que originem o alarme e a intranquilidade ou o entravar da marcha dos negócios públicos»40, o que na prática conferia aos censores um poder quase absoluto e perfeitamente discricionário sobre o que podia ou não ser publicado41.
Mas já um ano antes, num conjunto de entrevistas que deu a António Ferro para o Diário de Notícias, é o próprio Salazar, recém-empossado como Presidente do Conselho de Ministros42, quem justifica a existência da censura como «elemento de elucidação» do regime43: «Não é legítimo, por exemplo, que se deturpem os factos, por ignorância ou má fé, para fundamentar ataques injustificados à obra dum governo, com prejuízo dos interesses do país. Seria o mesmo que reconhecer o direito à calúnia. Os factos são os factos e não pode permitir-se que se ponham em dúvida os actos ou os números que traduzem a própria vida do Estado, se há quem se lembre de fazê-lo.»44Para Salazar, a censura revestia-se também de um «aspecto moralizador» da imprensa que, na sua perspectiva, oferecia, «nalguns dos seus órgãos, a triste imagem dum saguão: intrigas, insultos, insinuações, pessoalismos, provincianismos, baixa intelectualidade»45. Seis anos mais tarde, noutra entrevista a Ferro, o ditador vai mais longe, ao afirmar que «a censura, hoje, por muito paradoxal que pareça, constitui a legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem»46. Para ele, «a realidade tem os seus limites: a Igreja, que sempre foi a grande protectora da inteligência, assenta sobre dogmas. As ciências não são livres senão na parte ainda não descoberta, ainda não iluminada pela verdade. (...) Há muita coisa contingente na vida, mas a verdade, como a autoridade, participa do absoluto.»47
É, pois, neste cenário restritivo que a rádio começa o seu processo de maturação, que irá revelar-se longo e difícil. Com a proibição da transmissão de publicidade comercial, consagrada nas primeiras normas legislativas para regulamentação da actividade radiofónica, o governo cerceava ainda mais a capacidade de sobrevivência de pequenas emissoras, ao impedi-las de aceder à única fonte de financiamento externo de que dispunham. A interdição iria manter-se ao longo de toda a década de 30, com excepção do Rádio Clube Português que, logo em 1937, foi autorizado a transmitir anúncios – uma permissão a que não foi certamente alheio o alinhamento de Botelho Moniz com o regime e o empenhamento da sua rádio no apoio às tropas franquistas durante a Guerra Civil de Espanha, de que adiante se falará.
O interesse pela criação de um organismo de radiodifusão do Estado manifestou-se logo após a criação, em 1930, do Conselho da Radioelectricidade, na dependência da Administração-Geral dos Correios e Telégrafos. Em Novembro de 1931 o governo aprovou um projecto para o estabelecimento da Emissora Nacional de Radiodifusão que, tendo embora iniciado emissões experimentais a partir da Primavera de 1932, só começaria a funcionar plenamente em 1 de Agosto de 1935. A este longo período de incubação não era alheia uma certa desconfiança que o ditador nutria pelos meios de comunicação modernos: «As grandes obras constroem-se no silêncio, e a nossa época é barulhenta, terrivelmente indiscreta. Hoje não se erguem catedrais, constroem-se estádios. Não se fazem teatros, multiplicam-se cinemas. Não se fazem obras, fazem-se livros. Não se procuram ideias, procuram-se imagens. Por outro lado, os meios mecânicos – o fonógrafo, a telefonia, etc. – matam a produção, congelam-na. A vida é, assim, toda exterior, toda artificial.»48
Por outro lado, e apesar da opinião em contrário de António Ferro, que em 1933 fundara o Secretariado de Propaganda Nacional, a criação de uma estação oficial não era, então, a principal prioridade do regime. Na verdade, com a acção fiscalizadora da censura, a interdição da publicidade comercial e o alinhamento da maioria das rádios existentes com a ideologia da ditadura, Salazar não sentiria, provavelmente, a necessidade urgente de ter uma estação emissora de carácter oficial. De resto, ao invés de Ferro, o ditador nunca teve verdadeira noção do imenso potencial da rádio como meio de instrumentalização das massas49, e além disso, em várias situações, as rádios privadas acabaram por se mostrar muito eficazes no cumprimento dos objectivos políticos do governo, com a vantagem acrescida de, pelo menos formalmente, não poderem ser consideradas como órgãos de propaganda do governo.
A Emissora Nacional e a «política do espírito»
Mais do que instrumentalizar e mobilizar as massas, Salazar procurava criar mecanismos de controlo para evitar que os meios de comunicação pudessem ser usados contra as políticas do Estado Novo. Não admira, por isso, que durante o período de emissões experimentais da Emissora Nacional, a principal preocupação tenha sido, não tanto o estabelecimento de linhas de orientação, mas antes o estabelecimento de uma intendência capaz de fiscalizar e depurar as inconveniências políticas e os eventuais desvios que pudessem verificar-se.
Para esse efeito foi convidado um antigo aluno de Salazar, Fernando Homem Christo, que embora descendente de uma família aveirense de tradições liberais (o pai, Francisco Homem Christo, foi um conhecido polemista e um importante jornalista, impulsionador de relevantes obras públicas do seu tempo) era um assumido admirador do fascismo50. Embora não tivesse qualquer cargo oficial na emissora desempenhou com dedicação as funções de comissário político do regime, vindo a ser o primeiro responsável pela definição do rumo da estação. Na esteira de pensamento de António Ferro, Christo entendia que «num Estado autoritário, um posto nacional de radiodifusão deve ser um meio de cultura e um instrumento de acção política, e esta segunda finalidade não é menos importante do que a primeira»51.
As linhas gerais segundo as quais deveria reger-se a Emissora Nacional correspondiam às da política de espírito, enunciada por António Ferro como «aquela que se opõe, fundamental e estruturalmente, à política da matéria, (...) aquela que proclama a independência do Espírito, que o liberta da escravidão do materialismo tirânico, insinuante, que pretende, constantemente, subordiná-lo, embriagá-lo»52. Tratava-se, como afirma Fernando Rosas, de um «investimento do regime na formação de almas a todos os níveis, designadamente na literatura, nas artes, na cultura e na edução em geral»53.
Enquanto que Salazar entende a propaganda como um simples serviço de informação das actividades do regime, Ferro, admirador confesso de Maquiavel e Mussolini, concebe-a num sentido mais vasto e totalizante, à maneira do que Goebbels fazia na Alemanha: «Decididamente voltado para o quotidiano das famílias, das escolas, das empresas, das aldeias, para o enquadramento dos lazeres, para a orientação ideológica da educação, da cultura e das artes, tudo centrado na formação do carácter, do gosto, do ideário dos portugueses. Tudo servido por uma estética vanguardista, originalmente casada com os conteúdos ideológicos do regime. Mas o objectivo eram os espíritos, as almas, a dois níveis: seguramente, reeducando ou preparando novas elites de enquadramento sindicais, corporativas, educacionais, artísticas – mas muito para além da simples reprodução do escol tradicional; e ainda para além disso: formando activamente as massas, tanto no sentido de as conformar, como de as educar moral e espiritualmente aos novos valores da cultura popular, nacional-ruralista e corporativa, ou seja, de acordo com os grandes esteios ideológicos do regime.»54
Fernando Homem Christo, colocado na Emissora Nacional em finais de 1934 teve um breve mas intenso trabalho no sentido de criar um «serviço político» capaz de assegurar estes objectivos. Dará, por isso, tanta importância à «propaganda do Estado Novo, da ideologia que o enforma, das medidas governamentais» como à «fiscalização de toda a parte falada, expurgando-a de impurezas ideológicas», pelo que, num memorando datado de Abril de 1935, propõe «uma estreita e constante colaboração com o Secretariado de Propaganda Nacional, a União Nacional e a imprensa oficiosa», nomeadamente o Diário da Manhã, com o qual sugere organizar «o fornecimento de um noticiário político interessante, que é uma outra forma de propaganda prevista e aliás muito simples.» Além destas questões doutrinárias, os aspectos formais não eram desprezados, bem pelo contrário: aos locutores, responsáveis pela parte falada da estação, «para além dos predicados técnicos a exigir-lhes, quanto à voz, é indispensável que o locutor seja capaz de dizer as coisas políticas naquele tom másculo, imperioso, incisivo e quase dogmático que esse género de afirmações exige.»55
No entanto, o excesso de zelo de Christo tornou-o alvo de críticas públicas, até por parte de alguns partidários do regime. Numa nota publicada num jornal da época, afirmava-se, a dado passo: «Uma estação emissora oficial pode e deve fazer a propaganda do governo, das suas directrizes, da sua orientação. Parece-nos, entretanto, que a sequência do seu programa musical não deve ser interrompida, a cada passo, com frases e citações. O excesso é tão perigoso como a falta de propaganda. Especialmente neste caso em que uma volta ao sintonizador nos dá música de novo, em outro posto qualquer»56. O texto não vinha assinado, mas a formulação era muito semelhante à de um outro que, dias depois, sairia no Bandarra, dirigido por António Ferro57.
Tocado pelas críticas, Christo acabará por elaborar um novo memorando onde preconizava novas «modalidades de propaganda política radiofónica» embora reconhecendo que «o público, na sua quase totalidade, prefere a música à matéria falada»58. Para ultrapassar este problema, o comissário político propunha uma solução draconiana: «É preciso conseguir que todos os radiófilos oiçam alguma propaganda política. Para tanto, há o recurso, possível dentro da legislação em vigor, de obrigar todos os postos emissores a incluir nos seus programas alguma propaganda política; desta forma, já os auditores mais renitentes, e que o sejam a ponto de mudar de posto sempre que a Emissora faça alguma propaganda, verão inutilizada a sua pequena manobra»59.
Isto não foi, porém, suficiente para atenuar as tentativas de António Ferro no sentido de colocar a Emissora Nacional sob a alçada do SPN. Christo tinha a seu favor o apoio do ministro das Obras Públicas e Comunicações, Duarte Pacheco, de quem dependia a estação oficial, mas Ferro jogava com o facto de uma das funções do SPN ser precisamente a de utilizar a radiodifusão, juntamente com o cinema e o teatro, como forma de propaganda. No seu «projecto de bases para a administração da Emissora Nacional», elaborado em Maio de 1935, o Secretário da Propaganda propunha a constituição de «um Conselho de Administração composto por um representante da Presidência do Conselho (Secretariado da Propaganda Nacional) outro do Ministério da Instrução Pública (Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes) e outro do Ministério das Obras Públicas e Comunicações (Administração Geral dos Correios e Telecomunicações)». Segundo este plano, a presidência do Conselho de Administração caberia ao representante da presidência do Conselho, isto é, ao representante do SPN – que seria ele mesmo60.
Fernando Homem Christo não queria depender de Ferro, e disso mesmo deu conta em carta enviada ao Chefe do Governo, onde afirmava: «Não escondo, antes o tenho posto bem patente, que me desgostaria profundamente passar a fazer propaganda radiofónica numa posição hierárquica que não seja a de cooperação com o Secretariado, que implicasse subalternização da minha inteligência»61. Perante estes factos, Salazar encontrou uma solução característica do seu estilo peculiar de gestão, nomeando uma terceira pessoa para o cargo: o capitão Henrique Galvão, nessa altura ainda um homem da sua confiança, que tinha dirigido a I Exposição Colonial, em 1934, uma das primeiras realizações da política de espírito, destinada a incutir uma consciência colonialista nos portugueses. Deste modo, afastava, duma assentada, Fernando Homem Christo e António Ferro do controlo da Emissora62, e colocava no lugar alguém que, pela sua ligação às colónias, podia contribuir eficazmente para o plano de expansão das transmissões a nível ultramarino, que então – estamos em vésperas da II Guerra Mundial – se mostravam bastante vulneráveis às emissões estrangeiras, muitas delas efectuadas em língua portuguesa, que por razões geopolíticas para ali eram direccionadas.
Porém, Galvão veio a deparar-se com graves dificuldades financeiras, e optou por um conjunto de cortes orçamentais que não foram pacíficos, tanto dentro como fora da estação. Desde logo a redução drástica do número de orquestras da rádio63, com a extinção de uma delas e a conversão da orquestra de câmara em orquestra ligeira, o que provocou a indignação dos músicos, que acusaram a nova direcção de estar a ceder à «vulgaridade popular». O despedimento do maestro Rui Coelho, responsável pela secção de música portuguesa, e o afastamento do maestro Ivo Cruz, organizador da orquestra de câmara, foram outras das medidas que levantaram grande polémica.
Apesar disso, a Emissora Nacional prosseguiu o seu caminho, economicamente apoiada em parte pelas taxas de radiodifusão que haviam sido criadas logo em 1934. Seis escudos por ano era quanto pagava cada detentor de um aparelho de rádio, o que, embora fosse uma quantia não módica para o tempo, estava longe de conseguir assegurar o financiamento integral da estação. O número de possuidores de aparelhos de recepção era ainda diminuto. Para obviar a este problema, e porque era de todo o interesse do regime que um número cada vez mais vasto de pessoas pudessem escutar as transmissões oficiais, a Emissora promoveu a venda de receptores de TSF a preços reduzidos, uma acção destinada apenas às famílias que provassem ter rendimentos mensais inferiores a mil escudos.
Para Henrique Galvão, a prossecução da política do espírito aos microfones da Emissora Nacional era, também, um objectivo central: «Na cultura geral, na cultura artística, na propaganda política e social, na expansão das ideias e ideais portugueses, servindo superiormente a Pátria nacionalista do Estado tem de servir uma população heterogénea e caprichosa em matéria de educação, instrução e cultura.»64 Em nome dessa heterogeneidade, a partir de 1936 a Emissora começou a diversificar o tipo de transmissões musicais, passando a incluir transmissões de concertos por outras orquestras que não as oficiais da estação, e passando mesmo a incluir momentos de «fados e guitarradas», um tipo de música que não correspondia aos conceitos artísticos defendidos pelo Estado Novo, mas agradava bastante às camadas menos instruídas da população.65
A orientação geral, porém, ia no sentido da «elevação cultural» de uma população onde a taxa oficial de analfabetismo rondava então os 60%. A rádio era, para tal efeito, um meio precioso, já que permitia educar, entreter e doutrinar as massas dentro dos parâmetros definidos pelo regime. Por isso, os mecanismos de controlo político no interior da Emissora eram de grande rigor e abrangiam não apenas tudo aquilo que dito aos microfones, mas também o modo como era dito. Estabeleceram-se então regras formais muito específicas para a leitura dos noticiários, podendo até as «inflexões de voz indesejáveis» levar à punição dos locutores.66
Rádio Renascença, o microfone da Igreja
Os esforços e as acções do regime no sentido de criarem um órgão de radiodifusão que servisse os objectivos doutrinários do regime inspiraram desde muito cedo em vários sectores do clero a ideia de criar uma rádio que fosse «púlpito, cátedra e tribuna»67 da Igreja Católica.
Os primeiros a sugerir tal hipótese, em artigos publicados no Diário do Minho a partir de 1931 foram os padres Magalhães Costa e Domingos Bastos. Este traçou mesmo aqueles que deveriam ser os objectivos da nova emissora, em termos particularmente claros: «A nós, católicos, pertence opor à propaganda do mal a propaganda do bem, lançando mão dos modernos processos do apostolado se não queremos ficar vencidos na luta pela inabilidade e tendo nós a força da verdade e todos os elementos de um triunfo completo.»68 Escusado será dizer que «a propaganda do mal» a que se referia o padre Bastos não era a da ditadura militar mas sim a do comunismo soviético que largos sectores da Igreja encaravam como uma autêntica ameaça demoníaca.
O conceito de «propaganda do bem» expresso por Domingos Bastos, não era novo. Foi à Igreja que, nos primórdios da imprensa, os Estados atribuíram o controlo sobre o que podia ou não ser publicado, através da concessão ou negação das licenças necessárias e também do poder censório que exerciam sobre a matéria impressa antes da sua distribuição. E foi através de uma das suas figuras mais influentes, Armand Jean du Plessis de seu nome, mais conhecido como Cardeal de Richelieu, que a noção de propaganda começou a ganhar sentido. 69 O arquitecto do absolutismo foi o primeiro a perceber que, melhor do que silenciar as opiniões adversas seria produzir e ampliar a informação favorável. Se a informação é a chave do poder, a vontade e a capacidade de a fabricar, transmitir e controlar determinam a natureza e a força desse poder.
Em 1933 a revista católica Renascença fez publicar um texto de Zuzarte de Mendonça, católico e amador de rádio, que defendia a criação de uma emissora capaz de propagar a fé religiosa para todo o país, para a qual desde logo sugeria um nome: Rádio Renascença. A proposta de Mendonça foi imediatamente acolhida como uma causa pela revista e teve no padre Lopes da Cruz, redactor do Novidades, um dos seus apoiantes mais entusiastas, desenvolvendo uma grande campanha junto dos católicos de todo o país e dinamizando grupos de amigos que se cotizavam para a futura rádio, e que seriam mais tarde englobados na Liga de Amigos da Rádio Renascença.
A hierarquia da Igreja, nomeadamente o Cardeal Patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, aderiu desde o início à iniciativa, que considerava com «uma das necessidades modernas do apostolado». Em dois anos, Lopes da Cruz conseguiu angariar cem mil escudos, quantia fabulosa para a época e que permitiu avançar com a instalação da emissora que, nos primeiros meses de 1936, iniciou as suas emissões experimentais. No primeiro dia de 1937, a Renascença deu início às emissões regulares (todos os dias entre as 20:15 e as 22 horas, com um período suplementar de emissão aos domingos, entre as 12 e as 13 horas) e, em Abril de 1938, foi oficializada no seio da estrutura eclesiástica como um organismo da Acção Católica70.
Para o regime de Salazar, que tinha na Igreja um dos seus pilares, o aparecimento de uma rádio católica era, evidentemente, encarado com muita simpatia. A sua actividade era susceptível de contribuir para o engrandecimento e a sedimentação das noções de «moral» e «bons costumes» que eram apanágio do regime, concorrendo assim para a desejada «orientação» da opinião pública71. No entanto, desde o início que os responsáveis da Renascença fizeram questão de acentuar que a emissora não pretendia transmitir programas exclusivamente religiosos: «A emissora católica não se destina apenas a transmitir longos sermões. Faremos também o que as outras fazem, embora sempre com critério e sentido católicos.» 72
Assim aconteceu, de facto. Em 1938, a Renascença mantinha-se no ar, todas as noites, entre as 20:30 e as 22:33, contando ainda com períodos suplementares, de duração variável, às quintas-feiras, sábados e domingos. A programação, essa, incluía a transmissão de missas dominicais, como ainda hoje acontece, programas da responsabilidade de organismos da Acção Católica, palestras e transmissões de concertos. Mas também uma emissão infantil, aos sábados, programas de ópera e de música ligeira – «música excelente, fina e popular, mas não a cançoneta torpe que inesperadamente golfa das fontaínhas de luz uniforme dos aparelhos, inacessíveis à coloração do pudor, lama e corrupção no seio das famílias», como afirmava um dos conferencistas residentes da estação, Artur Bívar 73. Foi, ainda, na emissora católica que tiveram lugar, por essa altura, uma série de «cursos de línguas» (italiano, alemão, inglês e francês) naquela que pode classificar-se como a primeira experiência de ensino à distância, via rádio, em Portugal. Um exemplo claro de serviço público, da parte de uma estação vocacionada essencialmente para a propaganda.
A rádio portuguesa na guerra civil de Espanha
Em 1931, o Rádio Clube da Costa do Sol, herdeiro do posto emissor CT1DY (que entretanto mudara de indicativo para CT1GL), transforma-se no Rádio Clube Português. Adoptara, como outras estações, uma organização societária aberta à população, o que lhe permitia a obtenção de receitas através da cobrança de quotas aos sócios, um sistema que inspirou a Rádio Renascença para a criação da sua Liga de Amigos. O seu mentor, major Jaime Botelho Moniz, era um militar do regime, o que valeu por diversas vezes ao Rádio Clube Português um tratamento privilegiado relativamente às restantes estações. Desde o início que o Rádio Clube se assumiu como uma tribuna «ao serviço da Pátria», que era outra forma de dizer «à disposição do Estado Novo».
Como prova dessa vontade, em 1934 o Rádio Clube inaugurou um emissor de ondas curtas, direccionado para as possessões portuguesas de África, tornando-se assim na primeira estação nacional a transmitir para os territórios ultramarinos. A cerimónia contou com a presença do general Carmona, e pouco tempo depois a estação recebeu a visita do próprio Salazar. Já depois da criação da Emissora Nacional, foram frequentes as iniciativas conjuntas das duas estações, chegando a orquestra sinfónica da rádio oficial a participar num concerto de apoio ao Rádio Clube, no Teatro São Luiz74.
Nacionalista convicto, Botelho Moniz foi um dos grandes inspiradores da criação da Legião Portuguesa, em 1936, e esteve também na origem da criação dos «Viriatos», grupos de voluntários portugueses que combateram contra as tropas republicanas na Guerra Civil de Espanha. Para Botelho Moniz, a causa franquista era também, de certo modo, uma causa nacional, uma vez que estava em causa a luta contra «o comunismo moscovita» que o Estado Novo elegera como inimigo principal. Por isso não espanta que, assim que as tropas de Franco se rebelaram contra o governo eleito da Frente Popular, Moniz não tenha hesitado em colocar o Rádio Clube ao serviço da «causa nacionalista» da Falange Espanhola. Mais de vinte anos depois, o major ainda justificava a sua opção: «O Rádio Clube Português tomou partido. (...) Começou a verdadeira guerra das ondas. Mas não tomávamos partido por uma facção espanhola. Batíamo-nos por Portugal e por aqueles que personificavam ideais comuns às duas pátrias» 75.
O Rádio Clube Português desempenhou um papel de grande importância na Guerra Civil Espanhola, sobretudo no que se refere à difusão de informação para as tropas franquistas que se deslocavam da Andaluzia para Madrid. Devido à localização dos seus postos emissores, o RCP conseguia transmitir em boas condições para toda a Extremadura, o norte da Andaluzia e grande parte das duas regiões de Castela, e, pelas ligações que mantinha com os representantes de Franco em Lisboa, conseguia transmitir para o país vizinho notícias sobre o que ali se passava76. Ao mesmo tempo, funcionava como uma autêntica barreira de contra-informação relativamente ao noticiário das rádios espanholas, desmentindo «de quarto em quarto de hora, as notícias que se dão aos microfones da Rádio Madrid, da Rádio Barcelona e da Rádio Valência (...) com singular descontentamento dos que armam marxistas e gritam vitória à Frente Popular»77.
O apoio a Franco nos órgãos de informação de Portugal não era exclusivo do Rádio Clube. Após uma fase inicial de aparente distanciamento relativamente às duas facções em conflito, a generalidade da imprensa, alinhada com o regime, passou a invectivar sistematicamente os republicanos espanhóis (invariavelmente classificados como «vermelhos», «marxistas» ou «moscovitas», quando não mesmo «assassinos», «bandidos», «canalhas») e enaltecer os falangistas, por regra adjectivados como «salvadores», «patriotas», «gloriosos» ou «vítimas». Os massacres, violações e todos os actos bárbaros eram invariavelmente atribuídos exclusivamente à «escória marxista», dirigida a partir dos centros decisórios do «comunismo soviético» e da «maçonaria internacional».78
Neste delírio propagandístico, porém, o Rádio Clube Português destacou-se claramente de todos os outros meios. O seu alvo era o público português, mas sobretudo os ouvintes espanhóis, principalmente os militares franquistas, para quem constituía a única forma de comunicação, uma vez que a grande maioria das rádios espanholas se encontravam, nos primeiros anos do conflito, sob controlo dos republicanos. Como afirmou, então, um jornalista francês, o RCP conseguiu a proeza de «conduzir, pela primeira vez na história, uma guerra pela TSF»79.
Ao longo de todo o conflito, e principalmente até à suspensão das relações diplomáticas entre Lisboa e Madrid, a estação de Botelho Moniz mostrou-se muito mais empenhada no apoio às forças de Franco do que a Emissora Nacional. O facto de Portugal manter relações formais e comerciais com Espanha, por um lado, e as pressões exercidas por Inglaterra no sentido de que o governo de Salazar se mantivesse neutral perante o conflito, não tornavam conveniente um apoio expresso aos falangistas. Mas o Rádio Clube Português, como emissora privada, não estava sujeito a esses condicionalismos, e podia com toda a tranquilidade transmitir canções sobre «o fascismo redentor» e contra «o bolchevismo destrutor», textos de incentivo aos franquistas, informações de carácter militar preciosas para os revoltosos, e mesmo emissões inteiras de propaganda em castelhano, em que chegou a participar o próprio Botelho Moniz.80 Confrontado por mais de uma vez com a actividade do RCP pelo embaixador de Espanha em Lisboa, Salazar justificou-se sempre com o facto de o Rádio Clube Português ser «um organismo privado», logo não sujeito ao controlo directo do governo.
O apoio explícito e empenhado do RCP aos franquistas terá sido a causa próxima do atentado bombista contra as instalações da rádio, em princípios de 1937, que obrigou à suspensão das emissões por 24 horas. Porém, a estação continuou a dar todo o suporte propagandístico ao movimento franquista, e no Natal desse mesmo ano organizou uma campanha de angariação de donativos destinados a auxiliar as vítimas da guerra. Como consequência do seu esforço, Botelho Moniz foi agraciado com uma condecoração, recebida ainda durante a guerra na Plaza Mayor de Salamanca.
Não obstante o carácter propagandístico e claramente parcial da actividade do RCP durante a Guerra de Espanha, este período marca o início de um género até então inexistente em Portugal: a reportagem radiofónica. A estação recorria sobretudo a informações recebidas directamente das frentes de combate, com as quais Botelho Moniz mantinha uma rede de contactos regulares, as quais confrontava depois com as notícias das emissoras espanholas captadas em Portugal – na maioria das vezes para depois as contradizer, ou pelo menos para as reutilizar depois de devidamente filtradas de acordo com os objectivos pretendidos. De algum modo, e embora pelas piores razões, pode dizer-se que foi nessa altura que nasceu o jornalismo radiofónico em Portugal.
Conclusão
Da análise dos anos iniciais da radiodifusão, conclui-se que o processo generativo do serviço público de rádio em Portugal foi não apenas lento, mas sobretudo marcado por um conjunto de condicionantes que determinaram de forma decisiva a sua prática nos anos que se seguiram. Assim, constatamos que durante a fase amadora da telefonia sem fios, a rádio de um modo geral correspondia, ainda que de forma incipiente, aos pressupostos do serviço público tal como ele foi definido na introdução deste trabalho, uma vez que satisfazia necessidades e protegia interesses colectivos.
A rádio procurava, efectivamente, ser um bem de usufruto social e, sobretudo na época da transmissão posto a posto, servia realmente as necessidades comunicacionais do público emissor-receptor. E nem as limitações técnicas com que a radiodifusão se confrontou nos primeiros anos impediram que assim fosse: os aparelhos receptores colectivos – instalados nas ruas, nas lojas, nos jardins – trouxeram a rádio para o espaço público, tornando-a parte integrante desse mesmo espaço público.
A comunicação desceu, assim, até ao povo, mas não lhe proporcionou necessariamente mais informação. Esta, que existia e foi parte integrante da pré-história da rádio, com os senfilistas, foi afastada, ou pelo menos viu a sua importância drasticamente reduzida, nos primeiros tempos da radiodifusão. Dos três grandes objectivos da moderna comunicação de massas – informar, educar, entreter – este último foi o primeiro a ser praticado de forma integral pelas estações radiotransmissoras iniciais.
Durante alguns anos, a informação continuou a ser uma função destinada quase exclusivamente à imprensa e, de resto, os jornalistas não fizeram parte do grupo de oficiantes fundadores da rádio. Quanto à educação, é certo que as palestras sobre vários temas integraram, desde cedo, a programação radiofónica, mas tinham ainda uma presença residual em antena.
A situação mudou com a profissionalização e o aparecimento das grandes estações de rádio nos anos 30. Aí, o objectivo passa já a ser a comunicação de massas, num sentido próximo da concepção actual. E, se o entretenimento continuou a ser a prática dominante, os outros aspectos começaram igualmente a ser tidos em conta. Mas, por outro lado, a apropriação que o Estado Novo procurou desde logo fazer do novo média transformou o que deveria ser um veículo de publicidade – e portanto de difusão de ideias e transmissão de informações – num difusor de propaganda – isto é, de indução de ideias e condicionamento de informações.
António Ferro deu de Salazar a definição de alguém que aspirava a «modificar, pouco a pouco, pacientemente, a nossa mentalidade, fazendo parar, bruscamente, as paixões dos homens, atrofiando-as, calando-as, forçando-nos, temporariamente, a um ritmo vagaroso, mas seguro, que nos faça descer a temperatura, que nos cure da febre»81. Foi com esse objectivo que orientou toda a sua política do espírito, destinada a moldar as artes e, através delas, também as almas. Foi com esse estigma que a rádio viveu em Portugal durante mais de 40 anos.
Mas nem assim ela deixou, apesar de tudo, de cumprir alguns dos desígnios de serviço público. Fosse pela transmissão de programas de um certo nível cultural – destinados, por um lado, às elites que o regime ambicionava enquadrar segundo os princípios da política do espírito, mas também ao povo que necessitava de ser cultivado, mesmo que lhe bastasse saber «ler, escrever e contar» – ou pela criação de espaços de cunho educativo, como eram os cursos de línguas da Rádio Renascença ou mesmo, de certa forma, os espaços infantis da Emissora Nacional.
A lógica da propaganda, independentemente da natureza democrática ou não democrática do Estado que serve, é por natureza e regra contrária à lógica do serviço público. A propaganda serve os interesses particulares do Estado, não necessariamente coincidentes com os interesses dos cidadãos. A propaganda manipula o interesse do público, serve-se dele, mas raramente o serve. Porém, será que isso chega para que possamos pura e simplesmente negar a existência dum serviço público numa rádio ou num sistema comunicacional onde a propaganda é elemento dominante? Ou ele pode ainda assim existir, mesmo sujeito a constrangimentos e limitações, mesmo manifestando-se apenas de forma esparsa e pontual?
Olhando (e sobretudo ouvindo) os poucos registos que ficaram desse tempo, somos tentados, apesar de tudo, a responder que sim. A verdade é que não houve até hoje nenhum meio de comunicação de massas que não tenha sido objecto da cobiça do poder logo desde o seu aparecimento. A rádio nasceu sob controlo do poder, tal como antes dela tinha acontecido com a imprensa e depois sucedeu com a televisão. E, sob esse domínio, sujeitou-se a uma relação ambígua, a única que podia assegurar a sua sobrevivência até chegar o momento em que poderia libertar-se, mesmo que ilusória e temporariamente.
Em Portugal, esse momento demorou mais de quarenta anos a chegar. Mas, nesse dia, a História teve como que direito a uma suave vingança, quando o Rádio Clube Português – a mesma rádio que, décadas antes, ajudou a implantar o fascismo em Espanha – se transmudou na Emissora da Liberdade e, no melhor acto de serviço público que pode imaginar-se, foi capaz, por uma vez, de transformar a distopia em utopia.
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Notas
1. Citado por McQUAIL, Dennis, in Teoria da Comunicação de Massas Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, 4ª edição, p. 26
2. Cfr. LAVOINNE, Yves, A Rádio, Lisboa, Vega, s/d, pp. 37 e segs.
3. ARNHEIM, Rudolf, Estética Radiofónica, Barcelona, Gustavo Gilli, 1980, p. 16
4. Citado por LAVOINNE, Yves, op. cit., p. 37
5. McLUHAN, Marshall, Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem, São Paulo, Cultrix, 2001, 11ª edição, p. 336
6. ALVES, José Augusto dos Santos, O Poder da Comunicação, Lisboa, Casa das Letras, 2005, p. 182
7. Embora atribuída a Alexander Graham Bell, a paternidade da invenção do telefone gerou alguma controvérsia, que se mantém até aos dias de hoje, já que, na mesma altura em que Bell levava a efeito as suas experiências, outros inventores trabalhavam no mesmo sentido. Tais eram os casos do alemão Phillipp Reiss, do italiano Antonio Meucci ou do norte-americano Elisha Gray, que vieram posteriormente reivindicar a autoria da descoberta. Gray chegou mesmo a registar o seu invento no U.S. Patent Office, apenas algumas horas depois de Bell, no mesmo dia 14 de Fevereiro de 1876. (cfr. BROWN, Travis, Historical First Patents: The First United States Patent for Many Everyday Things, New Jersey, Scarecrow Press, 1994). 125 anos depois, a 17 de Outubro de 2001, a Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos aprovou uma resolução que reconhece Antonio Meucci como o inventor do telefone. De acordo com a investigação do Congresso, em meados do século XIX Meucci desenvolveu em Nova Iorque um protótipo, a que chamou «teletrofono», que chegou a utilizar para comunicar entre o seu escritório e um quarto do segundo andar da sua casa. Desse invento, sabe-se que Meucci registou uma patente provisória em 28 de Dezembro de 1871, mas nunca conseguiu comercializá-lo. Com a mulher doente e debatendo-se com graves dificuldades financeiras, Meucci também não pode efectuar o registo definitivo da patente no prazo de três anos exigido por lei. Segundo a acta do Congresso, Bell desenvolvia as suas experiências no mesmo laboratório onde o italiano guardava os materiais e, após o registo, Meucci intentou um processo a Bell por fraude e apropriação ilegítima do protótipo, mas veio a falecer antes do julgamento e o caso foi arquivado. (cfr. «107th Congress, H Res 269», acta da resolução da Câmara dos Representantes, in www.loc.gov, The Library of the Congress).
8. Cfr. ENRICH, Juan Juliá, Radio – Historia y Tecnica, Barcelona, Marcombo, 2004, pp. 34 e segs.
9. A invenção do telégrafo eléctrico por Morse foi precedida de um conjunto de experiências que visavam o mesmo fim e que são frequentemente ignoradas, inclusive pelos estudiosos da matéria, mas nem por isso menos relevantes. É o caso dos trabalhos do médico espanhol Francisco Salva Campillo que, nos primeiros anos do século XIX, criou um complexo, mas ainda muito rudimentar, sistema de telégrafo electrostático, baseado nas descobertas de Alessandro Volta: era constituído por vários recipientes de água (voltâmetros) ligados por fios, um para cada letra do alfabeto. A “leitura” fazia-se através das bolhas gasosas, obtidas por electrólise, que se formavam nos receptáculos correspondentes a cada letra. Nos anos seguintes houve algumas tentativas no sentido de desenvolver este sistema que, pela sua difícil operatividade, não chegou a ter aplicação prática. O mesmo não aconteceu com o processo desenvolvido pelo russo Pavel Schilling em 1832: o aparelho utilizava apenas seis fios e as letras transmitidas eram detectadas pelo movimento de agulhas magnéticas impulsionadas por electroímanes. Uma versão modificada deste telégrafo chegou a ser construída e patenteada em Inglaterra, onde funcionou a partir de 1839, para troca de informações sobre o tráfego ferroviário entre Paddington e West Drayton. O processo de Morse, porém, revelou-se mais prático e eficaz, uma vez que utilizava um único fio condutor e um código que convertia cada letra numa combinação de traços, pontos e espaços. A primeira linha telegráfica baseada neste sistema foi inaugurada em 1844 entre Washington e Baltimore, numa distância de 64 quilómetros. Menos de dez anos depois já havia cerca de 70 mil quilómetros de linhas telegráficas nos Estados Unidos e na Europa e, até ao final do século, o sistema continuou a ser desenvolvido por diversos cientistas. (cfr. «Telegraphy», por Albert Preisman e George P. Oslin, in Collier’s Encyclopedia, vol 22, New York, McMillan, 1988, e Pequena História das Invenções, São Paulo, Abril, 1979)
10. Cfr. ALVES, José Augusto dos Santos, op. cit., p. 168.
11. Cfr. MAIA, Matos, Telefonia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1983, pp. 17-18
12. Marconi registou em 1896 a patente da telegrafia sem fios, mas na verdade não foi o único a desenvolver o método de transmissão à distância via rádio. Alexander Popov (1859-1905), físico russo, realizou experiências do mesmo tipo e ao mesmo tempo que Marconi e, tal como ele, construiu o primeiro rádio em 1894, mas nunca se preocupou em registar o invento. (cfr. RADOVSKY, M., Alexander, Popov, Inventor of Radio, Honolulu, University Press of the Pacific, 1991) Um ano antes de Marconi e Popov, em 1893, um outro aparelho de transmissão sem fios foi testado com sucesso pelo cientista norte-americano de origem sérvia Nikola Tesla (1856-1943), inventor do sistema eléctrico de corrente alterna. Tesla perdeu a primazia da invenção da TSF para Marconi porque apenas registou a patente em 1897. Mesmo assim, um ano após a sua morte, o Supremo Tribunal dos EUA decretou ter sido Tesla o primeiro criador da TSF. (cfr. «Tesla, Nikola», por Leland I. Anderson, in Collier’s Encyclopedia, vol. 22, New York, McMillan, 1988) Entre todos os pioneiros da rádio, o caso mais interessante será, porventura, o do padre brasileiro Roberto Landell de Moura (1861-1928) que, também em 1893, realizou com êxito, em São Paulo, as primeiras experiências de transmissão via rádio, não apenas de sinais telegráficos, mas também de voz humana. Porém, o seu «transmissor de ondas» não suscitou o interesse das autoridades nem da comunidade religiosa que o viam como «louco» e «herege» e chegaram mesmo a promover a destruição do laboratório onde trabalhava. Desanimado, Moura acabaria por desistir das pesquisas para se dedicar apenas à actividade religiosa, sabendo embora que o tempo lhe daria razão: «Em breve, outros inventores, mais afortunados do que eu, irão descobrir meus próprios inventos», terá afirmado. (cfr. ALMEIDA, Hamilton, Padre Landell de Moura, Um Herói sem Glória, Rio de Janeiro, Record, 2006).
13. Cfr. SANTOS, Rogério, As Vozes da Rádio (1924-1939), Lisboa, Editorial Caminho, 2005, pp. 28-29.
14. Depoimento de Reginald Fessenden, cit. por MAIA, Matos, op. cit., pp. 34-35.
15. Segundo o lexicógrafo António Houaiss, a expressão radiofonia surge referenciada pela primeira vez na língua portuguesa em 1939, na 5ª edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo. Refere-se ao «sistema de difusão e transmissão de sons, por meio de ondas hertzianas». Já radiodifusão pretende designar a «transmissão de programas noticiosos, educativos, culturais, de entretenimento, etc., através do rádio». (Crf. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Lisboa, Temas e Debates, 2005, vol. XV, pp. 6793-6794).
16. Cfr. SANTOS, Rogério, op. cit, p. 29.
17. Citado por SANTOS, Rogério, op. cit., p. 29.
18. MAIA, Matos, op. cit., p. 35.
19. Cfr. ALBERT, Pierre, e TUDESQ, A.J., História da Rádio e Televisão. Lisboa, Editorial Notícias, 1981, p. 17.
20. JEANNENEY, Jean-Noël, Uma História da Comunicação Social, Lisboa, Terramar, 2003, 2ª edição, p.123.
21. MAIA, Matos, op. cit., p. 35.
22. Cfr. RIBEIRO, Nelson, A Emissora Nacional nos Primeiros Anos do Estado Novo, Lisboa, Quimera, 2005, p. 44.
23. Cfr. MAIA, Matos, op. cit., p. 35, e SANTOS, Rogério, op. cit., p. 29 e segs.
24. Cf. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 97 e segs.
25. Cfr. MAIA, Matos, op. cit. pp. 36 e segs, RIBEIRO, Nelson, op. cit. pp 97. e SANTOS, Rogério, op. cit., p55.
26. Cfr. SANTOS, Rogério, op. cit., p. 58.
27. As primeiras estações de rádio eram designadas através de indicativos de chamada – o método usado pelos radioamadores para se identificarem e reconhecerem uns aos outros – e esse tipo de nomeação manteve-se durante vários anos para estabelecer a distinção entre as várias estações de radiodifusão pública.
28. Cfr. MAIA, Matos, op. cit. pp. 55 e segs.
29. RIBEIRO, Nelson (op. cit., p. 98) refere um alcance de 40 quilómetros para o CT1AA, mas trata-se com certeza de um erro tipográfico, uma vez que há referências, noutros autores, à captação destas emissões na cidade do Porto. O alcance das ondas de rádio está relacionado com a potência do emissor e há notícia de senfilistas que, com aparelhos que não ultrapassavam os 50 watts de potência, atingiam distâncias superiores a 200 quilómetros. Ora a estação de Santos Júnior utilizava dois emissores de 2 kilowatts (2000 watts) cada. Note-se ainda que por essa altura as transmissões de rádio eram feitas por onda média e onda curta, em modulação de amplitude (AM), capaz de alcançar longas distâncias – ao contrário das transmissões em modulação de frequência (FM), de menor alcance mas maior fidelidade sonora. A frequência modulada, aliás, só seria descoberta em 1935, por Howard Armstrong.
30.Cfr. MAIA, Matos, op. cit. pp. 59 e segs,e SANTOS, Rogério, op. cit., pp. 55 e 107.
31. Cfr. SANTOS, Rogério, op. cit. pp. 107 e segs.
32. Cfr. JEANNENEY, Jean-Noël, op. cit., p.127.
33. Cfr. JEANNENEY, Jean-Noël, op. cit., p.123 e segs.
34. Nos EUA, a primeira rede de rádio não comercial surgiu apenas em 1972. É a National Public Radio (NPR), de carácter essencialmente cultural e educativo, suportada por dinheiro concedido pelo Estado e por diversas fundações e instituições culturais. A NPR foi criada como reacção de algumas elites norte-americanas preocupadas com o risco de que a motivação popular e a luta pelas audiências levassem as rádios a servirem exclusivamente o público culturalmente menos qualificado. Em 1982 foi criada uma segunda rede não comercial, a American Public Radio (APR), abrangendo um conjunto de estações dos estados de Nova Iorque, Cincinatti, San Francisco, Los Angeles e Minesotta, com uma programação semelhante à nossa Antena 2. (Crf. JEANNENEY, Jean-Noël, op. cit., p.211).
35. Segundo explica Jean-Noël Jeanneney, «por volta de 1905, após ter sobrevivido cerca de quinze anos à Exposição de 1889, [a Torre Eifel] estava destinada ao ferro-velho. E eis que é salva, pois constitui a melhor das antenas possíveis, papel que não tinha sido, de modo algum, previsto pelos seus criadores: torna-se num precioso emissor militar.» (JEANNENEY, Jean-Noël, op. cit., p. 122).
36. A ditadura militar saída da «revolução nacional» que derrubou a I República, em 28 de Maio de 1926, adoptou esta designação após a eleição do então general Óscar Fragoso Carnona para a Presidência da República, em 1928. Foi durante o período da «ditadura nacional» que António de Oliveira Salazar a ascendeu ao poder, primeiro como ministro das Finanças (1928-1932), depois como Presidente do Conselho de Ministros (1932-1968), e criou, após a entrada em vigor da Constituição de 1933, o denominado Estado Novo, que se manteve até 1974.
37. Decreto 17 899, artº 1º, 27 de Janeiro de 1930, citado por RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 98.
38. Em finais dos anos 40, as pequenas rádios começaram a agrupar-se para conseguirem sobreviver ao predomínio das grandes estações nacionais. Surgiram, assim, os Emissores Associados de Lisboa, a partir da união das estações Rádio Graça, Clube Radiofónico de Portugal, Rádio Peninsular e Rádio Voz de Lisboa. No Porto, em 1953, foram criados os Emissores do Norte Reunidos, agrupando as estações Rádio Porto, Ideal Rádio, Electromecânico, Orsec e Rádio Clube do Norte.
39. A título de exemplo, veja-se um excerto da programação do dia 14 de Dezembro de 1930 da Rádio Hertziana (posto emissor CT1BO, que transmitia a partir de Lisboa no comprimento de onda dos 283,6 m) de acordo com o que era anunciado na revista Rádio-Programa dessa semana: a emissão iniciava-se às 13 horas com a «primeira transmissão dum concerto symphonico pela telefonia e apresentação da Orchestra Lisboa dirigida pelo Maestro Exmo. Sr. Frederico de Freitas», um espectáculo composto por duas partes: na primeira era apresentada a 5ª Sinfonia de Beethoven, as «Danças Guerreiras «Príncipe Igor», de Borodine, e «Rapsódia Slava» de David de Sousa, e na segunda os temas «Declaração» (fox-trot de António Melo), «A Java» (de Frederico de Freitas), «Saúr» (valsa de Frederico de Freitas e António Melo) e uma «Marcha dos Granadeiros». Às 22 horas, a emissão iniciava-se com «notícias da última hora» a que se seguiam excertos de várias obras musicais: «Parle-moi de ma mère» e «Qui sait de quel demon» (duas árias da «Carmen», de Bizet), «Oberon» (de Webber), «Chanson de Selveig» (Grieg), «Lo! here the Gentle Lark» (Bishop), «Scheherazade» (de Rimsky-Korsakov), «Parmi veder le lagrime» (do «Rigoleto» de Verdi), «Danza Española» (Granados), «Ah non credea mirarti» (da ópera «Sonambula», de Bellini), «Sul fil d'un soffio eteseo» (da ópera «Falstaff», de Verdi), «Pagliacci» («selecção por orchestra», de Leoncavallo), «Da voi lontan in sconosciuta terra» e «Mercé mercé cigno gentil» (da ópera «Lohengrin», de Wagner). Seguia-se um novo bloco de «notícias da última hora» e mais uma selecção musical, esta de carácter mais popular: «Santiago» Jimmy Valentine Six-eight - Rio Grand Band, «Fado da Inocência», «A Cruz», por Fernando Coutinho, «You've got me pickin petals off of daisies» (fox trot), «Doing the Boom Boom» (fox trot) por uma «orchestra jazz» não identificada, «Chitas» e «Beijos d'Amor», por Adelina Fernandes, «Gay Cov» e «Perhaps», dois fox trot por outra (ou a mesma?) «orchestra jazz», o «Fado Maria Alice» (one-step) e «Esperteza Saloia» (corridinho), a cargo do Maxim's Jazz. Note-se que, nesta altura a expressão jazz era usada em Portugal indiferenciadamente para designar tanto o tipo da formação musical executante (as também chamadas jazz-bands) como o género musical do mesmo nome. Para um dos intervalos da programação estava ainda programada um «conferência pelo Exmo. Sr. Virgílio Pereira da Costa. (Cfr. Rádio-Programa, s/n, 14.12.1930)
40. Citado em A Política de Informação no Regime Fascista, Comissão do Livro Negro do Regime Fascista, Lisboa, 1980, pp. 49 e segs.
41. A formulação legal das razões para a institucionalização dos serviços de censura é esclarecedora quanto aos objectivos pretendidos: «A censura terá somente como fim impedir a perversão da opinião pública na sua função social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que desorientam contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade.» (Dec-lei nº 22 469, artº 3º, 11 de Abril de 1933).
42. As cinco primeiras entrevistas de Ferro a Salazar foram publicadas no Diário de Notícias entre 19 e 23 de Dezembro de 1932. Salazar fora empossado como Chefe do Governo a 5 de Julho desse ano.
43. Crf. FERRO, António, Entrevistas a Salazar, Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 2007, p. 32.
44. Idem, ibidem.
45. Idem, p. 33.
46. Idem, p. 158.
47. Idem, p. 160.
48. Idem, p. 156-157.
49. Cf. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 112.
50. Fernando Homem Christo seguiu, ainda que de modo mais modesto, o exemplo do irmão mais velho, Francisco, conhecido por Homem Christo Filho (1892-1928), que de jovem revolucionário de simpatias anarquistas e republicano militante se converteu em monárquico e, depois, num apoiante incondicional do fascismo. Escritor reputado do seu tempo e polemista como o pai, acabou por morrer em Roma, num acidente de automóvel, quando se dirigia para um encontro com Mussolini, de quem era amigo pessoal.
51. Citado por SANTOS, Rogério, op. cit., p. 147 e segs.
52. Idem, ibidem.
53. Prefácio a FERRO, António, op. cit., p. XLVI e segs.
54. Idem, ibidem.
55. Citado por SANTOS, Rogério, op. cit., p. 147 e segs.
56. In Fradique de 18 de Abril de 1935, idem, p. 150.
57. O articulista dava como exemplo uma situação que funciona como um bom exemplo para compreender a lógica de funcionamento destes primeiros tempos da Emissora Nacional: «Pronunciam-se frases e conceitos doutrinários de Sua Ex.ª o Sr. Presidente do Conselho ou do Decálogo do Estado Novo, no meio de trechos do programa musical, na altura mais despropositada e mais risível. Assim, por exemplo: “vamos transmitir um Nocturno de Chopin”. Pausa. E quando devíamos começar a ouvir as primeiras notas, surge uma voz estridente: “No Estado Novo, não há direitos abstractos do homem..., etc.”. Concordemos em que não se pode levar isto a sério.» (Citado por SANTOS, Rogério, op. cit.,idem, pp. 150-151).
58. No memorando, Fernando Homem Christo propunha, designadamente, «iniciar brevemente esta forma de propaganda política, muito interessante e inédita entre nós (pois não se trata de peças radiofónicas), mas que os russos, cuja mestria em propaganda ninguém contesta, utilizam largamente. Trata-se de conversas, animadas e por vozes pitorescas, entre adeptos e inimigos do Estado Novo, e que não obedecem a um tema determinado, a uma tese. Três amigos (um nacionalista, um reviralhista e um comunista, por exemplo) encontram-se num café, à esquina do Rossio, no vapor de Cacilhas, no comboio de Sintra e, no meio dos ruídos inerente ao local (os quais se ouvirão), começam a conversar sem um fito, mas provavelmente sobre quaisquer acontecimentos recentes e de actualidade. Claro que a dialéctica do nacionalista triunfará. Estes números devem causar grande sensação.» (idem, p. 151).
59. Idem, ibidem.
60. Cf. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 115 e segs.
61. Idem, ibidem.
62. António Ferro acabou por conseguir o seu objectivo, mas apenas em 1940, quando, por razões de política externa relacionadas com a II Guerra Mundial, a Emissora passou a ser controlada directamente pelo SPN.
63. Em vésperas da inauguração oficial, a Emissora Nacional possuía duas orquestras sinfónicas, uma de câmara e uma de salão. Note-se que, por essa altura, a programação da estação era constituída maioritariamente por música (84% em 1935), grande parte da qual transmitida em directo a partir dos estúdios. Os restantes 16% do tempo de emissão eram preenchidos por notícias (5%), programas falados (7%), programas infantis (3%) e teatro (1%). (cfr. RIBEIRO, Nelson, op. cit., pp. 119 e 277).
64. Cf. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 126.
65. Nesse mesmo ano de 1936, a Emissora Nacional organizou um ciclo de oito palestras de Luís Moita subordinada ao tema O Fado, Canção de Vencidos, posteriormente publicadas em livro editado pelo autor e dedicado à recém-criada Mocidade Portuguesa. Nesses colóquios, o palestrante manifestava-se contra «a miséria moral e musical do fado» e tenta demonstrar os seus efeitos perniciosos, advogando a sua abolição em nome da reconstrução nacional. Será, no entanto, António Ferro, através do SPN, quem irá colocar o fado (tal como o folclore) ao serviço do regime, promovendo-o à categoria de «canção nacional».
66. Cfr. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 129. A título de exemplo, veja-se esta curiosa ordem de serviço, de 11 de Janeiro de 1937, assinada por Henrique Galvão: «Recomenda-se ao locutor Fernando Peça [sic] que deve evitar certas familiaridades que usa ao microfone. Por exemplo: No Retiro da Severa despede-se: “Até já” ou “Até logo”. Evite-se essa forma de locução.»
67. Cfr. MIGUEL, Aura, Rádio Renascença: Os Trabalhos e os Dias, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1992, p. 32
68. Idem, p. 55.
69. Cfr. ALVES, José Augusto dos Santos, op. cit., pp. 99 e segs..
70. Cfr. MAIA, Matos, op. cit., pp. 106 e segs., RIBEIRO, Nelson, op. cit., pp. 104 e segs., e SANTOS, Rogério, of. cit., pp. 181 e segs.
71. Como nota marginal, não deixa de ser curioso constatar que esta rádio católica e conservadora acabou sem querer por desempenhar um papel central no derrube do regime criado por Salazar, ao ser usada, ainda que à revelia dos seus responsáveis, como veículo de difusão da «senha» para a revolução de 25 de Abril de 1974: foi através do programa Limite que foi dado o sinal para o avanço dos militares sobre Lisboa, com a transmissão da canção «Grândola, Vila Morena», de José Afonso.
72. Padre Lopes da Cruz, citado por RIBEIRO, Nelson, op. cit., pp. 106.
73. Citado por RIBEIRO, Nelson, idem.
74. Cfr. RIBEIRO, Nelson, idem, p. 101.
75. Palestra no Rádio Clube Português, 18 de Junho de 1957. Citado por RIBEIRO, Nelson, idem, p. 103.
76. Cfr. OLIVEIRA, César, Salazar e a Guerra Civil de Espanha, Lisboa, O Jornal, 1987, pp. 204 e segs.
77. Diário da Manhã, 3 de Agosto de 1936, citado por OLIVEIRA, César, idem, ibidem.
78. Cfr. OLIVEIRA, César, idem ibidem.
79. Idem, ibidem.
80. Cfr. RIBEIRO, Nelson, op. cit., p. 103.
81 . FERRO, António, op. cit., p. 100.
Trabalho realizado no âmbito do curso de pós-graduação em Cultura, Comunicação e Tecnologias da Informação. ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, 2007-2008.
Publicado na revista Vértice nº 177, Out-Dez. 2015