Por duas vezes no curto espaço de uma semana, o cidadão José Hermano Saraiva, ex-professor de liceu, ex-ministro de Salazar e actual animador televisivo para assuntos históricos, teve a oportunidade de exprimir, em entrevistas, à RTP e ao Público, o seu pensamento sobre o regime que vigorou em Portugal até 25 de Abril de 1974.
Trata-se de um pensamento profundo, já se vê, que o professor ambicionou sempre a ser O Professor. Conhece-se o cismado rigor com que jura pela alma dos que já lá tem que Camões pisou aquelas pedrinhas da gruta de Macau. E, se lhe perguntarem, será mesmo capaz de apontar o lugar exacto onde D. Afonso Henriques foi apanhado pela própria mãe em atitudes indignas de um rei medieval, numa exacta esquina de Ourique que Saraiva saberá identificar com precisão.
Candidamente, com o facies draquilino que ostenta nos seus programas e o mesmo ar sabedor de quem tem todas as certezas na ponta das mãos em bico, o professor lá foi ao programa de Herman José para sugerir «uma leitura desapaixonada» de Salazar, «um homem do seu tempo» que «fez muitas coisas boas».
Dias depois, no domingo, foi a vez de, em entrevista a Ana Sousa Dias, no Público, garantir que «Salazar era antifascista», razão que, supõe-se, o terá motivado para «ajudar o Franco a ganhar a Guerra Civil de Espanha». É sempre comovente assistir assim a um gesto de ternura de um ex-empregado para com um ex-patrão, mesmo morto.
Já há alguns meses, pela pena que todos queremos crer insuspeita de Fernando Dacosta, tínhamos ficado a saber que o velho ditador gostava que lhe contassem a história do «Música no Coração» e que, qual um terno avô, «morreu esvaído em ternura». Agora, o professor revela-nos que era também um antifascista! São muitas emoções para um homem só.
Mas Saraiva disse mais. Disse que «os da Oposição que não eram comunistas nunca foram presos». Acrescentou que «podem ter sido até demitidos, mas prisão era para o Partido Comunista». O que, rematou, «naqueles anos era lógico» porque, como nos elucidou o professor, «o Partido Comunista era proibido em todo o mundo».
De resto, ele, o professor, até «era contra aquele regime, achava que devia haver liberdade» e assinou «as listas da oposição, que diziam que as eleições deviam ser fiscalizadas». Certamente para o recompensar, Salazar fez dele ministro.
No poder, certamente que o professor se teria apercebido do que se passava no país. Mas nunca viu «directamente esses fantasmas de terror de que agora falam». Repressão? Sim, havia a Pide, o Tarrafal, Caxias, o Aljube. Ainda que em Portugal «a repressão fosse incomparavelmente mais humana».
Uma questão menor, como se compreende. Tal como a questão da liberdade de imprensa: «Nunca ninguém foi preso por causa disso», esclareceu. Era, aliás, por essa razão que havia a Censura, para evitar que alguém escrevesse algo suceptível de o levar a ser preso. No fundo, no fundo, era tudo para nosso bem.
O problema é que, afinal, somos todos uns ingratos. Como ingratos foram os professores do seu tempo de ministro (porque «quem faz o ensino são os professores e o facto de um ministro ter ideias progressistas não faz com que os professores as tomem», diz o venerando cidadão) e os alunos de todos os tempos e, certamente, esses capitães que fizeram o 25 de Abril, graças ao qual o professor continuará a alegrar o nosso quotidiano com as suas histórias de lobos bons e capuchinhos vermelhos que comem avozinhas à hora do lanche.
Por este andar, ainda veremos o venerando mestre-escola a fazer propaganda ao Tide ou à lixívia Neoblanc. Porque se houvesse uma técnica para branquear roupa tão eficaz como o método saraiva para tirar nódoas da História, andávamos todos muito mais limpinhos. E então, sim, o professor poderia garantir, sem receio de errar que «branco mais branco não há».
Emitido no Rádio Clube de Sintra e publicado no Grande Amadora | 25.Fev.1999