Gente que sabe onde está

Gente que sabe onde está

Golpes de teatro, golpes de rins, golpes baixos. Só faltou mesmo um golpe de estado para compor o ramalhete. Foi uma semana particularmente animada, esta, que culminou numa sexta-feira a fazer lembrar os mais delirantes absurdos dos Monty Python. Mas, ao contrário destes, sem nenhuma piada – a não ser para um muito reduzido número de protagonistas/usufrutuários das manhas da política, dos truques do mercado e dos atalhos da lei.

A prestação de Joe Berardo na comissão parlamentar de inquérito à Caixa Geral de Depósitos foi o momento alto de uma tragicomédia de que ainda falta conhecer alguns detalhes da trama principal, mas cujo desfecho já toda a gente sabe qual vai ser: um final feliz para os maus da fita, e a tristeza do costume para os figurantes. Porque ao contrário do que nos ensinaram na escola e na catequese, está provado que o crime compensa, e só os parvos acham que se pode vencer na vida sendo honesto e cumpridor.

Ao mesmo tempo que Joe Berardo se divertia na Assembleia da República  garantindo aos deputados da comissão parlamentar que só contraiu empréstimos de centenas de milhares de euros com o intuito altruísta de ajudar os bancos, que não é proprietário de mais do que uma modesta garagem no Funchal e que, pessoalmente, não deve nada a ninguém –, enquanto isso, conheciam-se os mais recentes desenvolvimentos do chamado “galpgate”.

Desde o princípio que esta história tem contornos algo bizarros. Por mais questionável que seja o facto de governantes e deputados aceitarem convites de uma gasolineira para um evento público a que poderiam assistir pagando do seu bolso, tratar este caso como se de um escandaloso caso de corrupção se tratasse parece-me um tanto excessivo. Eu sei que há por aí muito quem se venda por um prato de lentilhas. Mas achar que um membro do governo ou do parlamento passa a ser permeável à prestação de favores a uma empresa em troca de bilhetes para o futebol, parece-me até desprestigiante para qualquer corrupto que se preze.

Entretanto, e segundo as notícias ontem divulgadas, o ministério público pede ainda como sanção acessória a inibição do exercício de cargos públicos para os acusados. Admito que tudo isto esteja de acordo com a lei, e até posso acreditar que haja matéria de facto suficiente para irradiar os prevaricadores da vida política. Mas então como explicar, por exemplo, a situação de um Isaltino Morais, julgado por corrupção e condenado a pena de prisão efectiva, que voltou a poder ser eleito para o cargo político que ocupava ao tempo dos factos que o levaram à cadeia  para mais quando esses actos ilícitos foram comprovadamente praticados no âmbito do cargo que desempenhava?

Sim, nós sabemos que, cumprida a pena, qualquer cidadão tem o direito de voltar à sua vida, uma vez que supostamente já pagou pelo crime cometido. Mas se, para o exercício de uma profissão vulgar, é frequentemente exigido aos cidadãos comuns prova de cadastro criminal imaculado, como podem estas regras não se aplicar a quem vai gerir (e decidir sobre) o património que é de todos?

Pode ser, porém, que o zelo e o rigor com que a justiça parece querer tratar o “galpgate” represente o início de uma nova era, na qual todos passem a ser realmente iguais perante a lei. Aguarda-se, pois, com muita expectativa o desenlace desta interessante novela. E de outras, como a do ex-ministro Manuel Pinho  o tal que terá legislado em favor da EDP, beneficiando a empresa em largos milhões de euros em troca de um lugar numa universidade, e sabe-se lá que mais.

E, já agora, também gostava que alguém se interrogasse sobre as razões que levaram tantos e tão experientes banqueiros a conceder créditos de milhões de euros a um pé-rapado como Joe Berardo nos quer fazer crer que é. Claro que um bom banqueiro é, por definição e regra, um católico fervoroso. Mas tanta caridade parece ser demais, mesmo para o crente mais pio.

Porém, em Portugal tudo é possível, ou não fosse este um país de milagres. Lembram-se da história dos submarinos, onde ficou provado haver corruptores (julgados e condenados na Alemanha) sem que por cá se tenha descoberto um único corrompido? Se não foi por intervenção divina, então foi por quê?

Nota final (e à margem):

O título deste apontamento glosa uma rubrica de humor da TVI, dirigida e apresentada por Ricardo Araújo Pereira, que tenho na conta de homem inteligente, cidadão atento e humorista com elevado sentido crítico. As crónicas que escreve semanalmente na Visão são, frequentemente, do melhor que pode ler-se na Imprensa portuguesa. E muitas das prestações televisivas que protagoniza desde os tempos do Gato Fedorento estão, sem dúvida, entre o que de melhor por cá se produz na área do entretenimento.

Mas é sabido que a quantidade é inimiga da qualidade. E a vontade de "estar em todas" leva, inevitavelmente, a deslizes e cedências à facilidade. E se é verdade que no melhor pano cai a nódoa, é igualmente certo que há manchas que levam mais tempo a sair do que outras  e até há sujidades que se entranham de tal maneira que é difícil lavá-las: por mais que se esfregue, fica sempre uma marca ou um mau odor a conspurcar o tecido.

A rábula que RAP protagonizou no passado domingo, a partir de um "directo" inqualificável da CMTV – em manifesto atropelo de todos os princípios éticos e deontológicos que regem o exercício do jornalismo  é de uma vulgaridade atroz e de uma total desumanidade. Ao caricaturar um doente mental que uma televisão sem escrúpulos colocou no ar em directo, RAP colocou-se ao nível de um qualquer Sinel de Cordes, igualando-se ao humor mais rasteiro e sem graça que, para mal dos nossos pecados, algumas rádios e televisões insistem em propagar. Uma tristeza.

Pode ter sido apenas um mau momento. Oxalá que sim. O país precisa de quem o anime, e RAP tem sido muito bom nessa tarefa. Seria uma pena que passasse agora a ser apenas mais um cómico de serviço em cata de audiências a qualquer preço.

Publicado em Aventar – 11.Maio.2019